quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Feliz 2019, Brasil!

Publicado no Jornal da Manhã em 27/12/2018 e no Diário dos Campos em 29/12/2018.

Brasil, que em 2019 você se dê conta de sua grandeza. Há cinco países que reúnem tamanho do território, população e valor da produção (PIB) que os credenciam para potências mundiais: EUA, China, Rússia, Índia e Brasil. Nós, talvez junto com a Índia, ainda não acordamos para a nossa grandeza. Que acordemos, e deixemos de estar deitados eternamente em berço esplêndido. Sim, nosso berço é esplêndido. Nosso território tem riquezas que nenhum outro tem: petróleo, minérios estratégicos, solos agricultáveis, rica biodiversidade, água boa e farta, abundante energia solar. E temos também vantagens humanas: conformidade de idioma, cultura, religião.
Que acordemos também para a dignidade. Se nossa história nos fez sempre colônia explorada, que tomemos a decisão de deixar de sê-lo. Hoje a dominação não mais se faz com canhões e fuzis, mas com a manipulação da informação, da economia, a corrupção de autoridades locais. Os assassinatos não são mais de pessoas, mas de economias, de nacionalidades, de identidades, de dignidades. Que tenhamos o amor próprio e o discernimento para enxergar quem são nossos verdadeiros inimigos, e não deixemos que eles nos roubem a honra, a probidade e os sonhos.
Que 2019 seja um ano de reconciliação. Que sejamos capazes de superar conflitos pela diferença de ser e pensar. Antes de tudo, uma sociedade tem de ser livre, inclusiva. Os ódios que têm sido cultivados entre nós não são úteis ao Brasil. São úteis àqueles que invejam nossas riquezas, e temem que nos emancipemos e delas desfrutemos nós mesmos. Esses ódios são estranhos a nós. Têm sido cultivados por interesses estrangeiros que não querem nos ver bem sucedidos. Que acordemos para a cobiça externa que quer ver nossa discórdia e fracasso.
Que compreendamos que reconciliação inclui aqueles que marginalizamos. A raiz do crime e da violência é a miséria, material e moral. A forma mais eficaz de combatê-la é a justiça e a inclusão social. Se lhe for dada a chance de ser um cidadão digno, a esmagadora maioria vai escolher a dignidade, não o crime. Que em 2019 saibamos fazer com que a escolha pela inclusão e dignidade vença a escolha pela exclusão e o crime.
Que em 2019 tenhamos consciência do maior valor do ser humano: a liberdade. Que compreendamos que o custo da defesa da liberdade, o engajamento, o enfrentamento, o desassossego, o desgaste, é irrisório se comparado ao custo de sua perda. A liberdade é o bem essencial para alcançarmos a dignidade, a identidade. E a liberdade começa com a de podermos viver de acordo com nossa natureza. É preciso respeitar as singularidades de um índio, um negro, um asiático, um europeu, um mestiço. A educação não pode abdicar de transmitir valores primordiais como verdade, justiça, soberania, honestidade. Nem pode deixar de perscrutar a História no resgate de aprendizados essenciais para o funcionamento das sociedades. Nem pode ser acusada de doutrinadora ao fazê-lo.
E o maior voto para o ano de 2019: que o imenso desejo de mudança do Brasil se concretize. Que a esperança de superar os desmandos das autoridades e a violência dos excluídos criminalizados gere uma energia de transformação irresistível. Que a probidade e a solidariedade do cidadão simples e honesto varra a desfaçatez enraizada nos poderosos. Que o ímpeto de emancipação debele a violência da intolerância e da miséria.
Se os brasileiros acreditarem no Brasil livre e grande, assim será o Brasil.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Militarismo e servilismo

 Publicado no Jornal da Manhã em 07/12/18.


Conheci certa vez dois fidalgos oficiais de exército, um francês, mais envelhecido e maduro, outro português, de meia idade. Encontrávamo-nos num evento científico, eles já não eram mais militares da ativa. Tivemos oportunidade de nos conhecer bem, fizemos juntos uma viagem de estudos de vários dias pelo Maciço Central francês. Os dois eram ótimas pessoas, tenho-os em alta conta, embora desde então, já lá se vão mais de três décadas, nunca mais os tenha encontrado. Mas não esqueço até hoje o que aprendi com eles.
Naquela viagem, conversa vai conversa vem, constatei que o francês era um fervoroso defensor do militarismo. Ele alegava que só o regime militar consegue garantir a disciplina, e com ela a ordem e o progresso. Segundo ele só a hierarquia militar consegue fazer com que cada um cumpra suas obrigações com eficiência e probidade.  Contestei, argumentei que disciplina, honestidade, comprometimento e ordem podem ser alcançadas num ambiente de liberdade, responsabilidade, respeito e justiça sem a necessidade da obediência cega que é a lei dentro da caserna, onde as ordens superiores têm de ser cumpridas sem questionamento. O francês não concordou comigo, mas notei que o português, embora calado, pareceu estar do meu lado.
Mais tarde naquele mesmo dia, quando estávamos só eu e o oficial português, ele me contou sua marcante história. Ele tinha se tornado oficial muito jovem, vindo de família tradicional, na época em que todos os jovens portugueses eram obrigatoriamente enviados pelo menos por um período para as guerras de independência das colônias portuguesas na África. Ele fora destacado para Moçambique, e de lá trazia uma experiência trágica. Obrigado a seguir ordens superiores, ele conduzira um grupo de oitenta comandados a uma emboscada de morte, já quase ao final da guerra. Embora ele suspeitasse da emboscada, seus argumentos não tinham convencido os superiores, que, por certo, eles mesmos não participaram da operação. O semblante e a voz do oficial português ao contar-me essa história são inesquecíveis. Ele se considerava o culpado por todas aquelas mortes.
Lembro também da canção de 1968 que se tornou hino dos jovens inconformados que resistiam à ditadura militar no Brasil, a belíssima “Pra não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré, que tem uma estrofe que diz: “Há soldados armados, amados ou não/Quase todos perdidos de armas na mão/Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição:/De morrer pela pátria e viver sem razão”. O oficial português e seus comandados encarnaram bem o que dissera anos antes a canção brasileira.
Quantas guerras, quantas ditaduras, quantas tiranias ainda teremos que viver até aprender que é possível a justiça, a honestidade, o respeito sem a necessidade da obediência cega às ordens que muitas vezes equivocam-se, pois a hierarquia é feita de pessoas, e as pessoas ora equivocam-se ora são servis a interesses inconfessáveis? Quantas agruras ainda teremos que viver até compreender que é possível construir uma sociedade de cidadãos conscientes, probos e engajados, em que instituições democráticas e sólidas garantam que o nosso lado selvagem mantenha-se controlado pelo nosso lado civilizado sem a aberração da obediência cega e do servilismo? Quantos fracassos ainda teremos que amargar até compreender que é preferível o desassossego da participação e do enfrentamento sadio de diferentes pontos de vista do que a omissão, a submissão e o servilismo que advêm do conformismo e do totalitarismo?
Há filósofos e sociólogos atuais que afirmam que nossa civilização está muito complexa, e as pessoas preferem delegar a responsabilidade por tudo que acontece a “autoridades” do que assumirem elas mesmas a responsabilidade por suas vidas e a vida da coletividade. Estaríamos nós renunciando à liberdade? Desacreditamos da possibilidade de uma sociedade livre, democrática e virtuosa? Estaríamos preferindo a obediência cega da hierarquia militar às atribulações e desafios da construção de uma verdadeira e duradoura democracia?
Napoleão, Mussolini, Hitler, Idi Amin, Pinochet, Saddan Hussein, entre tantos outros exemplos, parecem nos indicar que regimes militares são desastrosos para os países e os povos que os adotam. A sociedade é mais que seus militares. E eles, como regra, aprenderam que é preciso morrer pela pátria e viver sem razão.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Livre arbítrio



Nos inalcançáveis firmamentos celestiais, o Mestre, circunspecto, inspecionava sua grande bola de cristal (ou seria uma nuvem de plasma suavemente manipulada?). Do outro lado, Pedro, seu fiel imediato, verificava painéis e planilhas luminosas que pareciam flutuar no ar. O Mestre pareceu intrigado, e, como sempre, apelou para Pedro:
─ Pedro, o que está acontecendo lá naquela joia única no universo, que reúne todas as improváveis condições para dar suporte à vida, a Terra? No meu monitor aparece uma frequência vibratória indicativa de instabilidade...
─ De fato Mestre, a Terra vem passando por um período de desequilíbrio. Um retrocesso civilizatório. Mas isso é normal, é assim que a humanidade evolui, lembra-se? Aquela espécie experimental que colocamos por lá? Pois eles no começo eram bandos errantes, depois agruparam-se e protegeram-se em cavernas. Com o tempo, começaram a cultivar e ter reservas de alimentos para os invernos ou secas mais rigorosos. Juntaram-se em cidades, desenvolveram linguagens e meios de comunicação, aprenderam a transmitir conhecimentos. Evoluíram muito, das cavernas hoje estão em cidades sofisticadas, têm surpreendentes e compactos equipamentos e tecnologias de comunicação que carregam no bolso...
─ Mas, com tanta evolução, por que você fala em retrocesso?
─ Bem, eles evoluíram muito na tecnologia, mas ainda pouco em ética, em sentimentos, em espiritualidade, em discernimento. São ainda bastante parecidos com os primatas de onde vieram. Dentro deles ainda existe o réptil, o primata ancestral, mas já desperta também o ser humano já quase divino. O que está acontecendo nestes tempos ditos de retrocesso é que o réptil e o primata primitivo estão sendo muito estimulados por tudo o que anda acontecendo por lá. Agressividade, competitividade, truculência, desonestidade, mentira têm sido muito mais valorizados que pacifismo, cooperação e urbanidade.
─ Como pode ser isto? Se já foram melhores, como é possível regredirem?
─ A história do planeta, e da humanidade, tem sido uma sucessão de progressos e retrocessos. Felizmente, no final das contas sempre o progresso é maior que o retrocesso, e continuam evoluindo. Veja por exemplo o caso do Brasil, lembra? Aquele país especial onde o Mestre colocou benesses incomparáveis mas um povo recalcitrante que tinha ainda muito o que aprender?
─ Lembro, lembro, claro. É nossa esperança que aquela mistura de índoles, de raças, de credos, de nacionalidades conduza aquele povo a uma percepção da riqueza da diferença e da tolerância. O que anda se passando por lá? Eles têm aprendido a respeitar-se e a compreender-se?
─ Então, as coisas por lá andam bem complicadas. Ainda não conseguimos avaliar bem o que significam...
─ Como assim? Perdemos o controle?
─ Mestre, como sabes, nosso controle é relativo. Procuramos influenciar para a evolução, mas sempre deixamos que eles decidam seu destino. É o princípio do livre arbítrio que não podemos nunca transgredir.
─ E o que anda acontecendo por lá?
─ Pois depois de mais de vinte anos de um regime em que os militares mandavam, a justiça não valia para quem pensava diferente deles, o congresso não tinha liberdade de decisão, em que muitos crimes contra os direitos humanos foram cometidos, a pressão da sociedade enfim resgatou um regime democrático. Elaboraram uma nova constituição e viveram uma fase de relativa liberdade que durou trinta anos. Mas não souberam superar a corrupção e a sanha dos outros países, invejosos das muitas benesses que colocamos lá, e que não vacilam em cooptar vassalos entreguistas dentro do próprio país. Os políticos, juízes, dirigentes caíram em descrédito. Aí apareceu um novo líder dizendo-se a salvação contra a corrupção e a insegurança. Exalta a violência das armas e os torturadores, menospreza o meio ambiente, a educação, os trabalhadores, as minorias. E o povo, confuso pela enxurrada de informações mentirosas e amedrontado com a desfaçatez dos poderosos votou nele em massa. Um fenômeno. Mas até agora não se sabe bem se ele é a solução dos problemas, ou se é um fantoche manipulado pelos invejosos que querem saquear as riquezas do país. Tanto seres humanos de índole violenta, que viram nesse fenômeno um comparsa, como gente de bem e pacíficas mães de família votaram nele na sincera esperança de uma mudança que signifique principalmente o resgate da honestidade e segurança.
─ Mas isso é um anseio nobre e justo! Não é, Pedro?
─ Sim, parece que sim. Vamos ver. Mas é possível que honestidade e segurança sejam ilusões, engodos que estão sendo imputados ao povo. Na verdade, o fenômeno pode vir a ser o fantoche que vai entregar o país aos interesses estrangeiros. Ele tem declarado que vai privatizar empresas nacionais estratégicas. E demonstra incompreensão das causas ambientais, causas indígenas, inserção social de imigrantes e minorias. Está no sentido contrário da tolerância que pretendíamos. E tem uma ideia de educação que ultraja o que pensam verdadeiros educadores. Confunde liberdade de pensamento, de expressão e debate com doutrinação. E acaba defendendo a censura, o cerceamento de ideias.
─ Mas Pedro, todos sabem que não damos asas a cobras. Será que seria o caso de interferência do nosso Departamento de Inspirações Civilizatórias?
─ Já fizemos isso. Estão sendo enviadas as vibrações para inspirar povo e dirigentes para que o enorme impulso para mudança seja no sentido da solidariedade, nosso principal valor. E da inclusão social e tolerância do diferente e também para a soberania do país frente à rapinagem internacional. Mas, sabe como é. Na verdade depende deles. Nossa influência é limitada. O livre arbítrio, a vontade deles, é mais forte do que o que podemos influenciar.
─ Por isso detecto a instabilidade por lá no meu monitor plasmático! Tomara que as inspirações que temos enviado surtam efeito. Tomara que percebam que muita coisa que acontece por lá visa fazer o país regredir e entregar suas riquezas para a cobiça internacional. E que isso divide e povo e acende rancores e preconceitos. Tomara que aquele povo e seus dirigentes despertem, percebam que têm tudo para ser um exemplo para o mundo.
─ É, mas primeiro têm que ser capazes de pensar com a própria cabeça. Têm que deixar de ser deslumbrados e condicionados pelas fabulosas tecnologias de comunicação e manipulação que inventaram e que estão fascinando-os...

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Ponta Grossa no divã II

Publicado no Jornal da Manhã em 22/11/18 e no Diário dos Campos em 23/11/18.

Em março passado foi publicado o texto Ponta Grossa no divã, que lembrava bizarrias que marcam a cidade: o mito da maldição do beato João Maria; a única cidade brasileira que deu vitória a Guilherme Afif Domingos; a associação de empresários punida pelo Ministério Público por pregar que beneficiários de programas sociais não pudessem votar; a mesma associação que apoia o general que defende a intervenção militar; a vereadora que simulou o próprio sequestro; o time de futebol de altos e baixos...
Outras bizarrias que levaram o nome da cidade aos jornais nacionais poderiam ser lembradas: a biblioteca com as paredes todas de vidro, inclusive as dos banheiros; os bordéis de menores ao longo da rodovia que atravessa a cidade; a criminosa explosão da loja de fogos de artifício pelos inconformados concorrentes...
Mas Ponta Grossa não é feita só de bizarrias: é uma cidade polo de uma região singular; congrega importante parque industrial e agronegócio com notável patrimônio natural; abriga universidades públicas consolidadas com marcante influência regional; é cidade média conectada à capital e tem atraído empreendimentos industriais, imobiliários, da área de saúde e comércio de monta; tem boa infraestrutura e oferece qualidade de vida muito superior às grandes cidades; é pródiga no recurso natural mais estratégico do Século XXI – a água de qualidade.
Justamente por coexistirem na cidade atributos e interesses tão diversos, Ponta Grossa tem potencial para tornar-se um exemplo, para o Brasil e o mundo, de convivência frutífera. A sabedoria do ser humano há de ser capaz de compreender que o convívio harmonioso dos diferentes enriquece. Ainda aprenderemos isto, superando os instintos primários que nos movem à ambição desmesurada, à competitividade e à violência.
Mas uma parcela da população ponta-grossense parece teimar em reproduzir bizarrias na cidade. Reitera a necessidade de uma segunda sessão no divã. A última foi o manifesto-censura ao Reitor da UEPG, publicado em jornais no dia 20 de novembro. O Reitor é censurado por enaltecer a cultura no momento em que, segundo suas palavras, tenta-se amordaçar a arte, o pensamento, a liberdade de cátedra. Ainda segundo ele, o tradicional Festival Nacional de Teatro promovido pela Universidade continua a ser uma bandeira democrática hasteada em céu turvo.
Surpreendente como estas palavras puderam alvoroçar essa parcela da população da cidade. No meu entender, deve ser aquela parcela que ainda não atinou que já não estamos mais no tempo das sesmarias nem da monarquia. E que, sem conseguir identificar-se com o espírito republicano, almeja que se instale um mando militarista, que sempre traz consigo o autoritarismo, a truculência, a iniquidade.
A Universidade não se destina somente ao ensino e à pesquisa. Nem a formar técnicos e professores sem discernimento. A Universidade destina-se a formar antes de tudo cidadãos responsáveis, com qualificação técnico-científica, para assumir posições profissionais na vida respeitando princípios civilizatórios. Se não formamos cidadãos, arriscamos formar um especialista em práticas nefastas, sejam elas os golpes financeiros, a propagação de mentiras, a manipulação das massas, as máquinas de matar e destruir. O cidadão é formado com valores éticos, reflexão e discussão do diferente, exercício no contato com a sociedade através dos projetos de extensão, dos projetos culturais como o Fenata e tantos outros.
A Universidade deve ser capaz de inspirar a sociedade a progredir. Não deve ser uma reprodutora das limitações da sociedade. Por isso a sociedade investe nela. Na esperança de que ela seja o farol a mostrar caminhos para o progresso social. E por isso há tantos protocolos regulando o ingresso e a permanência nos quadros da Universidade.
E o Reitor, mais que ninguém na Universidade, deve sim defender a liberdade de expressão, inclusive a sua própria. É o saudável embate de opiniões que conduz às alternativas mais adequadas para cada situação. Do contrário estaríamos ignorando a ideia de “banalidade do mal” de Hannah Arendt, que esclarece que dirigentes sem a coragem de contrapor-se a barbáries institucionalizadas são os responsáveis pela ascensão de regimes de terror, como o foi o nazismo na Alemanha.

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

A vida e as armas

Publicado no Jornal da Manhã em 08/11/18 e no Diário dos Campos em 10/11/2018.

Assustei-me de perceber uma possível conexão entre temas que podem parecer tão desconexos: o livro/filme “Contato”, de Carl Sagan, a série “Cosmos” do mesmo astrofísico, o documentário “Vida Extraterrestre” da série “Explicando” da Netflix, o filme “Vida” de Daniel Espinosa (2017) e, por fim, o fenômeno de ascensão da extrema direita no mundo, incluindo Bolsonaro no Brasil.
Em “Contato”, “Cosmos” e “Vida Extraterrestre” aparecem questões cruciais: por que não temos notícias de outras civilizações, visto que, dada a vastidão e idade do universo conhecido, é de se supor que não tenhamos sido a única espécie inteligente a surgir no mundo? Se existem outras civilizações, como elas teriam ultrapassado sua adolescência tecnológica? Se não existem, teriam elas todas se extinguido durante essa tal adolescência tecnológica?
Em “Vida”, uma ficção científica quase terror, os humanos, supostamente seguros na estação orbital internacional, cultivam um organismo unicelular dormente, encontrado a baixíssimas temperaturas no solo de Marte. Para deslumbre dos pesquisadores, assim que estimulado o organismo desperta e desenvolve-se. Mas o que no início parecia um ser gracioso e amistoso, ao desenvolver-se foge do controle, passa a ser uma ameaça, os cientistas tentam exterminá-lo. Então o organismo alienígena revela uma qualidade implacável: a luta pela sobrevivência. Surpreende a todos, quebra todos os protocolos de isolamento e segurança vigentes na estação orbital laboratório.
Se pensarmos um pouco, o mesmo instinto implacável pela sobrevivência é o que tem guiado a evolução das espécies no planeta Terra. O nosso desígnio primordial é sobreviver, nossos instintos básicos são de competição para superação dos competidores, reais ou imaginários. No passado do planeta, fenômenos naturais tais como mudanças na composição da atmosfera, congelamentos planetários, queda de meteoritos, promoveram extinções em massa que propiciaram o desenvolvimento de novas espécies melhor adaptadas. Foi assim que os mamíferos prosperaram após o declínio dos répteis decretado pela queda do grande meteorito há sessenta e cinco milhões de anos.
Agora talvez estejamos vivendo a adolescência tecnológica da humanidade. Nossa engenhosidade já nos permite construir artefatos para destruir o planeta, já somos capazes de desencadear o aquecimento global ou de degradar a atmosfera a ponto dela não mais nos proteger da radiação solar, somos capazes de poluir os mares, as águas doces, os solos, o ar, somos capazes de ameaçar a biodiversidade e o equilíbrio ecológico, somos capazes de manipular a informação divulgada globalmente e induzir populações inteiras ao consumo, ao desentendimento, à intolerância, à guerra... Não são mais os fenômenos naturais que estão no limiar de promover mudanças globais.
A engenhosidade humana desenvolveu-se aparentemente sem que tenha sido acompanhada pela evolução ética e espiritual. Somos capazes de comprometer todos os sistemas naturais que são os responsáveis pela manutenção da vida na Terra, inclusive a nossa vida. Passamos a ser a espécie dominante no planeta, superpovoando-o, mas não logramos aprender regras básicas de convivência de modo a preservar direitos equitativos, a garantir o respeito à diversidade e a coexistência pacífica.
A ascensão da extrema direita no mundo, marcada pela intolerância e violência, parece resultar destes dois fatores: primeiro, nossos implacáveis instintos de sobrevivência, que nos fazem competitivos e agressivos; segundo, a nossa adolescência tecnológica, já somos capazes de destruir o planeta e a humanidade, mas ainda não somos capazes de controlar nossos atos e avaliar suas consequências.
Será a humanidade capaz de guiar-se não só pelos instintos básicos de sobrevivência? Será capaz de ultrapassar o crítico momento da adolescência tecnológica para alcançar um estágio de temperança, tolerância e paz?

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Os cinco problemas do Brasil


Poderíamos dizer que os cinco problemas que estão nos fazendo crer que abalam o Brasil sejam a corrupção, o ódio, o complexo de vira-latas, nossa colonização predatória, a história de país escravocrata e exterminador de indígenas. Com certeza todos estes fatores contribuem para o que somos hoje como povo e nação. A corrupção arraigada corrói nossas riquezas e nossa moral. O ódio gera a desunião que impede a solidariedade para o progresso. O tão falado complexo de vira-latas faz-nos sempre almejar o ideal estrangeiro. A colonização predatória, que nos fez quintal rapinado até que para cá veio em fuga a família real portuguesa, nos fez um país sem alma. A prolongada escravatura e a extinção dos indígenas só reforçaram os traços mais primitivos, segregacionistas e cruéis da índole humana.
Alguns desses fatores demandam reflexão. No momento vivemos um surto de ódio sem precedentes, inimaginável para o antes tido como cordial povo brasileiro. O país da miscigenação de raças deveria ser um exemplo de tolerância. Mas não. Ódio entre ideologias, entre classes sociais, entre nordestinos e sulistas, entre os de pele clara ou escura, entre as opções de gênero, religião ou time de futebol. Nunca as diferenças foram tão demonizadas. Carece relembrar como foi, e porque foi, acirrado esse ódio tão generalizado. Convém lembrar que o ódio, ao longo da História, tem sido a arma principal dos dominadores para subjugar os dominados. “Dividir para conquistar”. No Brasil há décadas vem-se cultivando a semente do ódio. Durante a ditadura militar jovens idealistas e nacionalistas cujo crime era pensar e se manifestar eram tachados de subversivos, fazia-se crer que eram o mal da nação. Hoje a mão de ferro dos militares foi substituída pela grande mídia, pelo whatsapp e as mentiras, tantas vezes repetidas que viram verdade. Nunca antes apelou-se tanto para o reflexo condicionado, que obtém respostas irrefletidas tanto de cães de laboratório quanto de mães de família e cidadãos de bem.
Mas os cinco verdadeiros problemas do Brasil são outros. São o petróleo, os minérios, a água potável, a biodiversidade e os solos agricultáveis. Não há riqueza igual no planeta reunida num único país. E essa riqueza gera cobiça dos poderosos. Que não querem ver seu poder ameaçado, e investem pesado para que por aqui nunca prospere uma nação com o povo unido em torno do ideal de justiça social e soberania. Fomentam o ódio, a corrupção, a mentira, a confusão e a divisão. A velha fórmula dividir para conquistar ainda funciona muito bem, renovada com as fantásticas novas tecnologias de informação. Elas evoluíram muito mais rapidamente que nossa capacidade de assimilá-las judiciosamente.
Se sonhamos despertar do berço esplêndido e nos tornarmos uma nação justa, próspera, livre, soberana, antes temos que despertar para quais são os verdadeiros problemas do Brasil.

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

O grande erro do PT

Publicado no Jornal da Manhã em 11/10/2018.

Durante a campanha eleitoral, martelou-se a ideia de que a disputa estava polarizada entre o extremo radicalismo da esquerda e o radicalismo extremo do fascismo. E agora, após os resultados do primeiro turno há quem desesperadamente entenda que estamos entre o bolivarianismo e o nazismo.
Mesmo antes, mais agudamente desde 2013, o PT tem sido estigmatizado como o partido da corrupção. Vamos voltar a 1989, quase trinta anos atrás. Na primeira eleição direta pós-ditadura, Lula surpreendentemente chegou ao segundo turno, e ameaçava ganhar as eleições do caçador de marajás criado pela Globo, Fernando Collor. Na semana que antecedeu a decisão do segundo turno vários acontecimentos: o uso passional dos depoimentos de uma ressentida e rancorosa ex-companheira de Lula; a vergonhosa edição do debate Lula X Collor pela Globo beneficiando o caçador de marajás; o estouro do cativeiro de Abílio Diniz na véspera da votação transmitido em rede nacional em tempo real, os sequestradores vestindo camisetas do PT. Só anos mais tarde reconheceram-se as provas de que as camisetas foram criminosamente impostas aos sequestradores, que não tinham nada a ver com o partido. E que a Globo manipulou o debate, e que a ex-companheira era uma irremediável ressentida.
Ou seja, mesmo antes da pecha de partido da corrupção, o PT há muito tempo vem sendo demonizado. Tentaram antes imputar-lhe a pecha de partido dos terroristas e sequestradores, que não colou. E a pecha de único partido da corrupção só colou pelo incomensurável empenho midiático e judicial de exaltar os malfeitos de quadros do PT e esconder aqueles de todos os outros partidos, que igualmente os cometem. Porque infelizmente a corrupção é um ingrediente inescapável da sórdida política brasileira.
A demonização do PT não terminou. Quem não viu Adélio Bispo, o agressor do atentado a Jair Bolsonaro, legalmente considerado perturbado e fanático, vestindo camiseta vermelha quando foi transferido de presídio na semana que antecedeu o primeiro turno? Não conseguiram provar, embora tenham muito tentado, ligação do agressor com o PT, então enfiaram-lhe a camiseta vermelha, um apelo subliminar sem palavras a reflexos condicionados que têm sido inculcados a décadas.
E ligar o PT ao risco do Brasil virar uma Venezuela parece-me a apoteose do desvario dos comportamentos condicionados e dos consensos construídos que por muito tempo serão objeto de estudo de cientistas políticos, psicólogos e sociólogos. O Brasil e a Venezuela têm sim algumas coisas em comum. A primeira delas é terem grandes reservas de petróleo, a principal fonte de energia e matéria prima mundial, e cujo controle está na mão de transnacionais que não toleram qualquer ameaça a seu cartel. A segunda é que os dois países tiveram governos que ousaram sonhar com a soberania nacional, inclusive sobre suas reservas petrolíferas. Mas comparar o PT com o que se passa na Venezuela é uma cegueira só explicável pela facilidade com que o ser humano, tal como os cães de Pavlov, é controlado pelos estímulos repetitivos e pelo reflexo condicionado.
O grande erro do PT é ser o Partido dos Trabalhadores, que nasceu de lutas sindicais, e não capitula abrir mão dos princípios de inclusão e justiça social e soberania nacional. Se ele fosse o Partido do Mercado, o Partido da Hipocrisia, o Partido do Fisiologismo, o Partido Camaleão, o Partido de Aluguel, o Partido da Elite Entreguista, não teria sido vítima de tão agudo e continuado esforço de demonização.
Esse esforço de demonização criou o fenômeno Bolsonaro. Agora os criadores desse fenômeno parecem estar confusos, assustados com sua criatura.

terça-feira, 2 de outubro de 2018

Extremistas radicais



Nesta campanha eleitoral, temos ouvido muito: não é possível ficarmos só com o radical extremismo do fascismo versus o extremismo radical do petismo. É preciso uma terceira via, urgente, pelo bem do Brasil!
Qual é o conceito de extremismo que está sendo aplicado aqui? Antes de refletirmos sobre o extremismo das duas alternativas que parecem estar se consolidando como preferências nas pesquisas eleitorais, vamos nos deter sobre outros extremismos.
No mundo, fala-se no extremismo de terroristas que derrubam prédios, explodem bombas em templos e mercados, atropelam multidões com caminhões desembestados. E que falar de nações que explodem bombas pulverizando cidades inteiras, com suas escolas, seus hospitais, seus templos, toda a sua população civil, parte dela engajada em causas pacifistas e humanitárias? Que falar de nações que com o falso argumento de repressão a armas de destruição em massa invadem e destroem países de cultura milenar com a real finalidade de apoderar-se da principal matéria prima do mundo atual, o petróleo? Que falar de nações que, se não pelo uso das armas, mas com a manipulação da mídia e com doutrinação ideológica compra mercenários e sabotadores infiltrados e interferem no destino de outras nações impondo-lhes governos subservientes ao interesse de lobbies transnacionais em prejuízo das populações e soberania locais?
No contexto brasileiro, fala-se de partidos radicais. Os partidos de esquerda seriam, de acordo com consenso construído pela grande mídia, todos eles radicais. Então que falar dos partidos fisiológicos, que não têm ideologia, ou têm como única ideologia o manter-se no poder, custe o que custar à população, às instituições e ao conceito de ética do país? Que falar dos partidos que adoram o deus mercado, e em sua idolatria sacrificam o povo simples, as empresas e os recursos naturais do país, e a soberania nacional?
Sobre as duas alternativas que estão se consolidando para as próximas eleições: qual o extremismo do PT? Ou extremismo é confundido com os casos de denúncia de corrupção, e o querer manter-se no poder? Então neste caso todos os partidos são igualmente extremistas, nenhum deles escapa das duas acusações. Talvez com a diferença que o PT disputa o poder no voto. Enquanto outros partidos usam campanhas midiáticas insidiosas, odiosas, mentirosas, que estigmatizam, enganam e dividem o país. Ou o extremismo condenável é querer dar oportunidades para o povo simples? E o candidato intolerante, autoritário, truculento e armamentista? Qual o seu extremismo? Acho que a este as manifestações do último sábado dia 29 de setembro no Brasil e no mundo dão já uma boa resposta. Apesar da grande mídia ter-se bastante esforçado para esconder essas manifestações.
A opinião sobre o que seja extremismo radical é criada pela grande mídia, que cumpre seu papel de formadora de consenso utilizando-se das estratégias que são cientificamente pesquisadas e que já foram reveladas e esmiuçadas por diversos pensadores, entre eles o filósofo estadunidense Noam Chomski em seu livro “Controle da mídia – os espetaculares feitos da propaganda” (Graphia Editorial, 2003).
É preciso que aprendamos a pensar por nós mesmos se não quisermos ser como gado tangido, com nossas opiniões manipuladas por uma ciência que se especializa em construir consensos que interessam aos poderosos que dominam o mundo e submetem os países destinados a serem eternas colônias fornecedoras de matérias primas. É preciso que nossa opinião fundamente-se no nosso discernimento, e não em conceitos estranhos e absurdos que nos são inculcados. Como o conceito do que seja extremismo, que está sendo tão evocado no momento.

domingo, 16 de setembro de 2018

Autocrítica da crise (mea-culpa dos dissimulados)

Publicado no Jornal da Manhã em 24/08/18.

Que vivemos um momento de crise sem precedentes ninguém parece discordar. O desemprego avança, o crescimento e os investimentos estão estagnados, a dívida pública cresce, direitos trabalhistas regridem, a miséria volta a fazer parte do nosso cotidiano, o fascismo, o ódio e a violência revelam-se sem escrúpulos, a juventude demonstra que não acredita nos benefícios da educação nem no futuro do país, prefere vias alternativas para a sobrevivência ou sair do Brasil. Mas isso não é tudo. Os políticos e o judiciário nunca estiveram tão desmoralizados, a mídia nunca foi tão facciosa, o cidadão comum nunca esteve tão confuso diante de informações tão manipuladas ou mesmo propositalmente falseadas.
É bom que nos perguntemos: como chegamos a isso? E ao procurar respostas, é bom que tenhamos consciência de qual, ou quais cérebros estamos empenhando nessa procura: o cérebro ancestral reptiliano, que é movido a instintos básicos de sobrevivência e domínio territorial? o cérebro límbico, que é movido a laços de sangue, amizade e mesmo compadrios, estes muitas vezes ilícitos? ou o neocórtex, responsável pelo raciocínio lógico, a reflexão capaz de estabelecer relações de causa e efeito?
Do necessário equilíbrio de desempenho destes três cérebros nascem a coragem, a empatia, a compaixão, o discernimento. Qualidades imprescindíveis se almejamos uma sociedade mais justa, mais solidária, mais humanizada. Caso contrário podemos descambar para o ódio, a segregação, o nepotismo ou a crueldade e a dominação aparelhadas pela ciência.
Neste momento peculiar que vivemos no Brasil muito se tem falado das razões da crise. Fala-se na herança maldita deixada pelos governos anteriores, fala-se na incapacidade do partido que dirigiu o país de fazer autocrítica e reconhecer seus erros. Diante da crise que vivemos hoje, é imperioso que saibamos fazer crítica imparcial. O partido que dirigiu o país cometeu erros? Certo que sim, talvez o maior tenha sido submeter-se aos poderosos e afastar-se da população que o elegeu. E não conseguiu apoio popular no momento de enfrentar a sabotagem que lhe foi movida. O principal partido que estava na oposição cometeu erros? Tasso Jereissati, seu conceituado ex-presidente, acaba de reconhecer na mídia vários erros graves: a contestação do resultado eleitoral, objeção que estremeceu a democracia; o apoio a pautas-bomba que impediram o governo de governar; o apoio ao governo Temer que traiu o programa que o elegeu e aprofundou a crise; o não expurgo do senador presidente do partido Aécio quando este foi flagrado em conversas e acordos inadmissíveis para um homem público de bem.
Mas a crítica e a avaliação da crise que vivemos não devem restringir-se aos políticos e seus partidos. Já se tem visto a grande mídia questioná-los amiúde. E quem tem questionado a grande mídia? Quem tem questionado as corporações nacionais e internacionais, as associações e lobbies de empreendedores? E quem tem questionado o papel desse ente quase fabuloso, o intangível mercado? Quem tem questionado interesses internacionais empenhados em fazer fracassar o Brasil próspero e soberano, pois a eles interessa ter-nos como permanente colônia com mão de obra barata, exportadora de matérias primas sem valor agregado para depois importá-las industrializadas?
O momento que vivemos parece colocar o Brasil numa encruzilhada: ou escolhemos um caminho de violência e ódio, ou um caminho de submissão aos rapinantes interesses internacionais e seus prepostos locais, ou um caminho de justiça social e soberania nacional. O equilíbrio entre nossos cérebros, o reptiliano, o límbico e o neocórtex, deverá ajudar-nos a fazer uma análise equilibrada. Não podemos continuar agindo em política como passionalmente agimos com o futebol, a religião, os ídolos das artes marciais.
Oxalá logremos esse equilíbrio. Oxalá acordemos para o papel que têm exercido entre nós todos esses grandes protagonistas da nossa realidade: os partidos e seus políticos, o judiciário, a grande mídia, as corporações e lobbies de empreendedores, o mercado, os rapinantes interesses internacionais e seus prepostos nacionais. Mas, sobretudo, que logremos ser capazes de avaliar o papel mais importante: a nossa própria conduta e exemplo, o nosso voto.

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Independência e sabotagem da Nação

Dia de comemoração da Independência, quase duzentos anos! Dia de reflexão. O Brasil hoje encontra-se em profunda crise, um retrocesso quase inimaginável. O desemprego avança, a dívida pública cresce, direitos trabalhistas regridem, a miséria volta a fazer parte do nosso cotidiano, o fascismo, o ódio, a violência revelam-se sem escrúpulos, a juventude nas escolas públicas demonstra que não acredita nos benefícios da educação, prefere vias alternativas para a sobrevivência.
Como chegamos a este ponto, depois de um perceptível avanço na democracia após a ditadura militar? Tentar responder a essa pergunta é essencial para podermos colocar o país de novo num rumo de progresso social, econômico e político, fortalecendo sua autonomia perante a rapinagem internacional.
O Brasil é um país continente. Com clima generoso, é o detentor dos maiores caudais de águas doces do mundo. É também o país que recebe a maior insolação, a energia do futuro. Tem minérios, solos agricultáveis, petróleo, uma espantosa biodiversidade que encerra incontáveis insumos naturais conhecidos e desconhecidos. Abriga uma vasta população com identidade cultural, religiosa e de idioma. Um povo de índole pacífica, amistosa e hospitaleira, os brasileiros são alegres, criativos, artistas por natureza.
Tudo isto faz do país uma jóia preciosa e rara, neste nosso planeta precioso e raro. Há muito despertamos a cobiça estrangeira. Mas de todas as ameaças, aquela que vem da águia cujas garras e bicos parecem querer subjugar todas as nações e povos do planeta é a mais ameaçadora. A águia é um predador implacável, insaciável. No Brasil, derruba governos eleitos (Getúlio, Jango, Dilma), implanta ditaduras e doutrinas de segurança criminosas, coopta uma elite mercenária tirana dominada por preconceitos atávicos e egoísmo desmesurado. Elite que não logra atinar com o ideal de uma nação justa e soberana, onde a igualdade de direitos e a ausência de privilégios fariam com que todos vivessem melhor.
O notável economista John Maynard Keynes na primeira metade do século XX já alertava que a economia saudável depende de três pressupostos: disponibilidade de bens, recursos para adquiri-los e vontade para produzi-los. E que esta vontade depende da expectativa. Para o economista, os empreendedores são movidos por um “espírito animal” selvagem, por isso a necessidade do controle da economia pelo Estado.
No Brasil, fez-se um esforço para aumentar a capacidade do povo simples para adquirir bens básicos, através de programas sociais, aumento dos salários menores, programas de investimento em obras de infraestrutura para avançar no pleno emprego, distribuição da renda. Mas a elite mercenária, presa de atavismos escravocratas que marcam a ferro e fogo a história do país, não suportou ver o outrora miserável prosperar. Controladora dos meios de produção, da mídia e dos políticos e legisladores, essa elite atrasada e assustada freou investimentos, travou o necessário aumento da disponibilidade de bens, desempregou, minou expectativas, alardeou e potencializou uma crise que poderia ter evitado, emperrou o crescimento, sangrou a economia.
E enquanto o fazia, usando a mídia a seu serviço, acusou o governo popular de ser o único responsável pela corrupção e os desacertos do país. Conseguiram o golpe que, mais uma vez em nossa história, derrubou o governo legítimo e colocou em seu lugar um fantoche dos interesses das corporações transnacionais e da elite mercenária, que estão fazendo o país voltar aos tempos da colônia fornecedora de matérias primas e de mão de obra escrava. A lógica de tais interesses é simples: prioridade para o mercado em detrimento dos trabalhadores, fortalecimento de uma casta de mercenários nacionais entreguistas com altos ganhos, internacionalização da economia, concentração da renda, empobrecimento da população simples.
E só o conseguiram porque a elite do país cumpre muito bem seu papel de mercenários entreguistas, que não conseguem colocar o interesse coletivo, o ideal de nação, acima de seus atavismos e ambições egoístas. Esta elite está sabotando o Brasil, um país que tem tudo para ser uma grande nação. E que não será independente enquanto a vontade popular não prevalecer.

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

A ACIPG e o voto consciente


 Publicado no Diário dos Campos em 23/08/2018
Alegro-me deveras de constatar a ACIPG – Associação Comercial, Industrial e Empresarial de Ponta Grossa –  engajar-se em campanha a favor do voto consciente. Concluo que agora a prestigiosa associação estará ela mesma esforçando-se por conscientizar-se das posições que tem abertamente defendido na cidade.
Primeiro, a posição de que os cidadãos que são beneficiários de programas sociais como o Bolsa Família e outros não possam votar, pois sobre tais cidadãos poderia pesar a acusação de compra de voto. Fico muito feliz de ver a associação repensar esta assertiva por ela feita anos atrás. Até eu cheguei a pensar que, perante tal ponto de vista, não teria legítimo direito de votar, pois participava de projetos de pesquisa financiados pelo governo. Como beneficiário, era também alguém propenso a querer dar meu voto ao governo que me beneficiava. E como eu, também tantos outros beneficiários de programas governamentais, de crédito rural, de casa própria, de financiamento de veículos, negócios, empreendimentos, eletrodomésticos, não poderiam votar.
Depois, a posição de que a proteção ambiental atravanca a produção e a economia. Essa posição já havia sido fortemente defendida quando da criação das unidades de conservação federais na região nos idos de 2005-2006, como o Parque Nacional dos Campos Gerais. Mas foi nos ataques à Área de Proteção Ambiental da Escarpa Devoniana, no ano passado, que a defesa dessa posição ganhou mais veemência. Entendo que ao propor a conscientização, a associação está se propondo a refletir sobre o papel das unidades de conservação, uma preocupação internacional prioritária. Elas têm a função de preservar condições ecológicas e ambientais imprescindíveis para proteger a vida no planeta, não só a biodiversidade que nos cerca, mas a própria espécie humana, garantindo inclusive o equilíbrio ecológico necessário para a manutenção da produtividade agrícola que nos abastece de alimentos e outros recursos vitais.
A terceira posição que espero que a associação esteja revendo em sua proposição de consciência é a do anúncio da defesa da intervenção militar como solução para os problemas atuais do Brasil. Quem faz tal defesa ou ignora História ou ignora o que sejam valores civilizatórios. Quem acredita que intervenção militar seja diferente de ditadura militar é de uma irremediável credulidade. Deveria conhecer melhor a história da ditadura militar no Brasil, que começou como um golpe para salvar o país. Deveria ler o livro “Brasil: nunca mais”, com prefácio do conceituado e saudoso Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, uma expressão do Catolicismo no Brasil, para conhecer a quais barbáries o estado de exceção pode conduzir. Barbáries que impõem sequelas ao país até hoje, ainda não nos recuperamos da violenta repressão a uma geração inteira de pensadores, de artistas, de nacionalistas, de idealistas, de homens públicos com verdadeiro espírito democrático.
Confiante que sou no poder da solidariedade e inclusão social, do senso de empatia e respeito para com a natureza e dos princípios republicanos para a transformação da sociedade de desacertos que vivemos hoje, saúdo a convocação da associação ao voto consciente. Mas fico com a forte impressão que, se pensamos em uma sociedade melhor, é ela, a associação, aquela que com mais urgência precisa fazer um severo exame de consciência.

domingo, 8 de julho de 2018

Diálogos celestiais também falam de futebol



─ Pedro, que comoção é aquela que estou sentindo naquele planeta miraculoso que criamos para experiências... como é mesmo o nome?
─ Terra, Mestre.
─ Isso, isso, a Terra. Onde colocamos benesses sem fim e aquelas almas recalcitrantes recolhidas por todo o universo que ainda tinham muito que aprender. É de lá que vem essa energia que estou sentindo que destoa de todo o cosmos?
─ É de lá mesmo Mestre.
─ O que se passa por lá? Alguma catástrofe natural? Alguma convulsão daquelas almas, que pelo que já vimos vivem a meter-se em guerras e conflitos?
─ É a copa do mundo de futebol, Mestre. Seleções dos países enfrentam-se, a vitoriosa é a campeã mundial de futebol. Acontece a cada quatro anos.
─ Mas, futebol?! Não é aquele esporte jogado até por moleques descalços e famintos de periferias miseráveis, em campos de terra ou areia nas várzeas ou nas praias? A bola às vezes improvisada com trapos e trastes velhos?
─ Isso mesmo. Justamente por isso tornou-se um esporte mundial, praticado por todos. A copa do mundo é o único evento esportivo que para todo o planeta. Todos a acompanham, até mesmo os países cujas seleções não chegam a classificar-se para o certame, que é muito disputado. Mas hoje em dia mudou muito. Continuam acontecendo peladas nas praias e várzeas como antes, é lá que aparecem os talentosos. Mas os craques são negociados a peso de ouro. Fortunas incalculáveis giram em torno dos clubes, das seleções, dos campeonatos e dos direitos de imagem.
─ Então é isso! E essa vibração que senti é em consequência de algum confronto especial?
─ Sim, foi uma partida em que jogou o Brasil, lembra-se? Aquele país que o Mestre propositalmente abençoou dentro daquele planeta já abençoado, mas que não vinha dando certo por causa dos desacertos de seu povo e dos dirigentes por ele escolhidos? Pois o Brasil já foi uma potência no futebol. Dizem especialistas que o esporte foi o responsável por erradicar um certo complexo de vira-lata que acometia aquele povo peculiar. O adversário do Brasil desta vez foi a Bélgica, dos chamados diabos vermelhos, um país da Europa. E eles venceram o Brasil. Foi um jogo disputado, mas os diabos vermelhos souberam se impor. Marcaram o primeiro gol meio casualmente, e então o time do Brasil abalou-se, desestruturou-se. Quase levou outros gols logo em seguida.
─ Óxi! Até no futebol essa concorrência... Nós tramamos para emancipar aquele país e seu povo, e vêm os diabos vermelhos e os derrotam?
─ Pois é! O Brasil vem sofrendo derrotas amargas. Há quatro anos a copa foi lá no país, e sofreram uma humilhante derrota dentro de casa, para adversários que eram tidos até então como fregueses históricos...
─ Estou me lembrando disso. Não foi quando nosso Departamento de Compensação de Iniquidades teve de interferir, por conta de uma grosseria sem precedentes para com a presidenta, a primeira mulher eleita para governar o país?
─ Isso mesmo Mestre. Sua memória está melhorando com aquelas rezas de Santa Luzia e as infusões de alho com losna.
─ Mas diga-me, como o Brasil que já foi uma potência no futebol anda sofrendo essas derrotas? Desta vez nosso Departamento de Compensação de Iniquidades não interferiu. Ou interferiu?
─ Não foi preciso, Mestre. O time pareceu encarnar a frouxidão do povo do país diante de adversidades recentes que têm acontecido por lá. Aquela grosseria com a presidenta eleita na copa anterior foi só um detalhe. Muita coisa tem acontecido desde então. Sabe aquelas benesses todas com as quais abençoamos aquele país continente? Os solos férteis, a água abundante, os rios e a energia hidrelétrica, os minérios, o petróleo e tantas outras coisas? Pois os brasileiros não estão zelando por elas. Estão deixando oportunistas inescrupulosos que usurparam o poder entregarem as riquezas do país a poderosos e corruptores interesses internacionais.
─ Uma pena, Pedro. Mas já prevíamos isso não é? Não foi por esse motivo que colocamos juntos no mesmo país benesses naturais e um povo ainda com muito a aprender?
─ Sim, foi isso mesmo. Foi proposital. Uma experiência.
─ Torço para que essa experiência dê certo! E aquele povo aprenda que é no caráter que praticamos no dia a dia que se forja o caráter para as grandes batalhas.

sábado, 23 de junho de 2018

Veneno remédio: o futebol e o Brasil


 Publicado no Diário dos Campos em 23/06/2018 e no Jornal da Manhã em 25/06/18.

A suada vitória nos acréscimos do Brasil sobre a Costa Rica nesta copa nos faz lembrar o excelente livro “Veneno remédio: o futebol e o Brasil” do interdisciplinar José Miguel Wisnik (professor de literatura, músico, ensaísta). No livro, o autor discute a importância do futebol para a construção da identidade e da autoestima do brasileiro, ajudando-nos a superar o complexo de vira-lata aprofundado com o “maracanazo” de 1950, quando o time do Uruguai calou um Maracanã lotado com perplexos cento e setenta mil torcedores, vencendo com uma heróica virada sobre a seleção canarinha.
O que pouco se sabe no Brasil, o que é explicado pelo escritor uruguaio Eduardo Galeano em seu livro “Espelhos: uma história quase universal”, é que o time do Uruguai tinha motivos de sobra para superar-se e vencer o favorito Brasil. Antes da copa os jogadores uruguaios tinham travado uma batalha moral e judicial em seu país, em favor da profissionalização e de contratos mais justos para os atletas. Tiveram de fazer greve e enfrentar a ganância de dirigentes e empresários, e nessa luta urdiram a têmpera e a solidariedade para vencer o Brasil naquela memorável final.
Contra a Costa Rica reapareceram alguns ecos daquela final, ainda que bastante mudados. Enquanto o time do Brasil procurou, principalmente com sua estrela maior, levar vantagem com simulações de faltas, o resultado não apareceu. Quando, muito em função da pressão da proximidade do fim da partida, as simulações deram lugar à garra e à objetividade, os redentores gols enfim aconteceram. Simulações buscando vantagens ilegítimas tornam o conjunto frouxo e ineficaz. A garra e a entrega trazem resultados.
Podemos fazer um paralelo entre essa angustiante partida de futebol e a situação do país. Assim como o time brasileiro, cheio de craques e com domínio do jogo mas com muitas oportunidades perdidas, o Brasil também tem muito potencial, mas tem perdido as oportunidades para consolidar-se como uma grande nação. Nossos potenciais são a nossa dimensão continental, as imensas riquezas naturais, a mestiçagem de povos e culturas com relativamente discretos conflitos, um único idioma, uma religião predominante, uma índole inegavelmente pacífica e amistosa.
Nossos erros, que acabam por aniquilar os muitos potenciais que temos, são também numerosos. O maior talvez seja a cegueira de não saber jogar como equipe. O exagerado individualismo de muitos, que na busca de satisfazer um egoísmo insaciável comprometem o desempenho do todo. Ao invés de levarem adiante uma jogada de equipe que beneficiaria o coletivo, procuram a glória e o proveito pessoal, e para isso não hesitam em simulações, fraudes, farsas, e o pior, perdem a cabeça e começam a cometer violências e falcatruas escandalosas.
Pena que, no nosso caso, os juízes pareçam ser irremediavelmente parciais e coniventes, e não contem com o auxílio de um arbítrio supostamente menos tendencioso e suspeito, como o vídeo assistente dos juízes desta copa.

domingo, 3 de junho de 2018

Lições da crise

Publicado no Diário dos Campos em 09/06/2018 e no Jornal da Manhã em 14/06/2018.
Quais aprendizados devemos colher da crise de caminhoneiros que parou o Brasil e transtornou a vida de todos?
É bom que tiremos lições dessa crise, sob pena de que ela não seja só uma crise, mas signifique um colapso. Lembrando, crise é quando o velho já está morto, e o novo ainda não nasceu. Colapso é quando o velho já está morto, e o novo já não tem como nascer. Que saibamos reconhecer os erros e dar vida ao novo, antes que seja tarde.
Quais erros temos cometido? São vários. Primeiro o erro de depender exclusivamente do transporte rodoviário, uma escolha de meados do século passado, que visou implantar a indústria automotiva neste nosso país continente. Escolha que priorizou o interesse das multinacionais automotivas, ignorando as peculiaridades do Brasil.
Depois o erro de depender de um sistema de produção de alimentos e produtos básicos que demanda transporte por longas distâncias. A produção e comercialização locais, diretas entre produtor e consumidor, praticamente inexistem. Se o transporte rodoviário para, o país para. Que tremenda vulnerabilidade logística!
Depois o erro de submeter o preço e a comercialização de bens estratégicos, como o petróleo e seus derivados, ao interesse de corporações transnacionais e seus acionistas, e não ao interesse da população e da soberania do país. É o grosseiro erro de acreditar que o mercado é melhor do que o Estado na gestão dos recursos estratégicos do país. Quem defende este erro ou é um ambicioso beneficiário direto de seus equívocos, ou alguém que ainda não refletiu sobre o conceito de “espírito animal” de John Maynard Keynes, um consagrado economista do século XX respeitado nos meios acadêmicos mas propositalmente esquecido pelos atuais adoradores do deus mercado. O “espírito animal” de Keynes manifesta-se sobretudo nos empresários, que encontram no adágio da livre concorrência o subterfúgio para a prática do salve-se quem puder, onde o mais velhaco é o mais favorecido. Um Estado verdadeiramente democrático forte é essencial para balancear o espírito animal e evitar as enormes desigualdades sociais que temos visto.
Há ainda o erro de acreditar em políticas de coalizão, em que interesses e princípios muito díspares conluiam-se oportunisticamente para exercer o poder, afastando-se do interesse da população e da ideia de construção de uma nação republicana e soberana. Mais hora menos hora as deserções e traições acontecem, as crises políticas sobrevêm.
E há ainda erros crônicos, decorrentes dos erros anteriores. Um sistema educacional fracassado, que não consegue formar cidadãos críticos e lúcidos, capazes de refletir e de intervir construtivamente nos destinos do país. Uma mídia viciada, que atende aos interesses de quem visa perpetuar privilégios de uma classe dominante atrasada. Um povo ignaro e manipulável, que facilmente é condicionado a abraçar causas retrógradas, como apoiar candidatos autoritários e pedir pela intervenção militar. Quem clama pela intervenção militar hoje ou é alguém mal intencionado, que enxerga nesse retrocesso a oportunidade para benefícios próprios, ou é alguém que desconhece o significado de uma intervenção militar, não viveu a ditadura nem conhece história.
A crise deflagrada pela paralisação dos caminhoneiros deveria fazer-nos refletir, e agir, sobre estes tantos erros que temos cometido, e com certeza muitos outros a eles associados. Se soubermos deixar de lado o nosso “espírito animal”, nossas ambições e paixões pessoais, e colocarmos o bem comum acima de nossas inseguranças e ganâncias, poderemos aproveitar a crise para corrigir os erros.
Que saibamos aproveitar a crise, antes que ela se torne um colapso de consequências imprevisíveis. Que esta crise marque o crepúsculo de uma época de sucessivos equívocos. Que o Brasil acorde de seu longo sono.

segunda-feira, 28 de maio de 2018

A crise por trás da crise dos caminhoneiros

Publicado no Diário dos Campos em 06/06/2018 e no Jornal da Manhã em 04/06/2018.

Por trás da crise da greve dos caminhoneiros, Felipe Coutinho, o presidente da AEPET – Associação dos Engenheiros da Petrobras – nos revela quais as verdadeiras causas dos seguidos aumentos dos preços dos combustíveis, que fizeram as estradas ficarem bloqueadas e o Brasil parar (ver em https://felipecoutinho21.wordpress.com/2018/05/27/entrevista-ao-brasil-247-sobre-a-politica-de-precos-da-petrobras/). A entrevista mostra que o Brasil tem exportado o petróleo bruto, que é refinado no exterior, principalmente nos EUA, e volta ao país com o preço mais alto, o valor agregado da industrialização lá fora. Enquanto isso, as refinarias brasileiras operam a 70% de sua capacidade. Ou seja, o petróleo que mandamos refinar lá fora e importamos mais caro poderia estar sendo refinado aqui.
 Como importamos os refinados pelo preço do mercado global, e este oscila ao sabor dos interesses das mesmas corporações transnacionais que importam nosso petróleo bruto e nos exportam de volta mais caro, a Petrobras vê-se na contingência de reajustar os preços de acordo com as diárias variações do mercado. Esse foi o principal motivo da paralisação dos caminhoneiros. Os custos do combustível sobem quase diariamente, o que não acontece com o valor do frete, que é sua receita.
E por quais motivos o governo estaria permitindo esta perversa negociação, que exporta o óleo cru como matéria prima relativamente barata e a importa na forma de refinados com valor agregado, enquanto poderia estar refinando aqui para a produção de combustíveis no país com preços livres das oscilações do mercado global?
Felipe Coutinho nos explica que a intenção do governo atual é, num futuro próximo, privatizar o refino e a comercialização de combustíveis no país. As potenciais empresas interessadas no negócio são justamente as transnacionais do petróleo. A elas não interessa um negócio onde os preços não acompanhem os preços praticados no mercado global. Então desde já o Brasil estaria se ajustando ao esquema pretendido.
Este esquema é o mesmo que tem vigorado desde o Brasil colônia. O país estaria destinado a ser um exportador de matérias primas relativamente baratas e um importador de produtos industrializados com valor agregado. A riqueza fica no país que agrega valor, e não no exportador de matérias primas. Isso aconteceu/ce com as madeiras nobres, a cana de açúcar, os minérios de manganês, alumínio, ferro e outros, a carne, a soja, e agora o nosso mais recente recurso natural exportável, o petróleo dos campos do pré-sal, descobertos em 2007. E fiquemos atentos, os próximos a serem visados são nossos aquíferos.
A lógica por trás de esquemas tão esdrúxulos é a lógica de priorização do interesse do mercado, em detrimento do interesse da população e da soberania nacional. Os recursos naturais de uma nação deveriam gerar riqueza dentro dessa nação, criar empregos, distribuir renda, contribuir para a prosperidade do Brasil, para a inclusão social e a diminuição da pobreza e das imensas diferenças sociais de nosso país. A riqueza oriunda de tais recursos deveria ser investida em saúde, educação, melhoria da infraestrutura, e em outras carências crônicas do Brasil.
Nunca a riqueza nacional, e no caso do petróleo estamos falando de uma riqueza exportável que descobrimos há uma década, deveria estar a serviço da sanha de inescrupulosas corporações transnacionais, regidas pela lógica do mercado e do lucro. O lema da Petrobras, criada em 1953, é “O petróleo é nosso”. Houve forte pressão popular para o caráter estatal da empresa, celebridades da época, como Monteiro Lobato e outros, engajaram-se na campanha de mostrar à população a importância do Estado manter para si o controle sobre riqueza tão essencial, pois os benefícios desta riqueza deveriam reverter em prol da população e da soberania do país.
Parece que essa rica história foi esquecida. É hora de relembrar população e governo que se o Brasil tem pretensão de acordar do berço esplêndido, e de ser o país do presente e não o eterno país do futuro, é preciso que deixemos de ser colônia exportadora de recursos naturais para satisfazer a sanha das corporações transnacionais e do mercado.