sexta-feira, 20 de novembro de 2020

A enganosa inflação oficial e o preço real

 

O mercado e o governo preveem inflação de 3,2% para o ano de 2020. Mas o aumento de preços de alimentos apurado só até o mês de outubro/2020 é de 18%. Como pode ser isto?

Analistas dizem que é porque a previsão do mercado baseia-se num amplo leque de produtos e serviços, que vão desde ingressos no teatro, no futebol, até o arroz com feijão e o óleo de soja. Efeito da pandemia, muitos dos preços estão congelados, ou nem estão sendo praticados. No cálculo, pondera-se tudo sem distinção, resulta um número que agrada ao desgoverno, mas que não reflete o que a população está gastando para sobreviver.

Qual o motivo do preço dos alimentos ter disparado? Arroz, feijão, soja, café, suco de laranja, carne, o trigo para o pão, etc., são commodities, produtos cujos preços são fixados em dólar no mercado internacional. Em janeiro de 2019 o dólar valia R$3,66. Em outubro de 2020, R$5,77. Com a alta do dólar, na ausência de políticas públicas e leis que regulem exportações de forma a garantir primeiro o abastecimento do mercado interno, o agronegócio exporta tudo o que pode. O lucro é muito maior. Falta mercadoria no mercado interno, exportamos a soja a preço de dólar, falta óleo de soja no supermercado brasileiro. Ou então o preço sobe, tendendo a equiparar o preço doméstico com a alta do dólar. Os ricos ficam mais ricos, os pobres têm de pagar mais pelo arroz, o feijão e o óleo de soja. Ficam mais pobres.

Qual o motivo da alta do dólar? Não creio que seja fácil responder a essa pergunta, mesmo que fosse por um economista experimentado. Não é à toa que a expressão “deus mercado” seja tão difundida. Mas com certeza um motivo principal é o descrédito e a instabilidade do governo, quando ele não consegue inspirar confiança nos investidores e credores, que vão investir seu capital em países mais confiáveis. Deixamos de ser um país atraente, os dólares fogem, e ficam muito mais caros.

Um governo com responsabilidade tenderia a evitar estes dois eventos: a alta do dólar e a exportação descontrolada dos alimentos. A estabilidade do dólar é conquistada com governo legítimo, economia sólida, políticas governamentais consequentes, investimento em infraestrutura, criação de empregos, distribuição de renda. Entretanto, mesmo uma economia sólida com um governo responsável pode sofrer os efeitos de crises internacionais. É então necessário ter leis, políticas públicas, bem estruturadas redes de estocagem e distribuição, para garantir que existam produção e condições de comercialização dos produtos que constituem a alimentação da população. Programas de agricultura familiar, linhas de crédito, redes de silos e de distribuição, garantia de preços, são alguns dos muitos requisitos para estabilizar preços e garantir abastecimento. Com um governo responsável, o país não fica a mercê de preços internacionais, amiúde controlados por ataques especuladores.

Falar em governo responsável implica falar também em distribuição de renda. O dinheiro que dinamiza a economia é o dinheiro do trabalhador que gasta tudo o que recebe para sua sobrevivência, não é um poupador. O dinheiro do rico poupador muitas vezes é aplicado em especulação que só traz lucro ao investidor, quando não é enviado para fora do país, justamente pelas desvantagens financeiras nacionais. Queda do poder aquisitivo das classes mais pobres da população é enfraquecimento do mercado interno, que agrava a alta do dólar, a evasão de divisas, a exportação descontrolada de alimentos. Um ciclo vicioso.

Arrumar toda essa desarrumação não seria tarefa tão difícil. Bastaria um governo responsável, preocupado em atender as necessidades da população, e não da voracidade do mercado.

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Lulismo e bolsonarismo

 Publicado no Jornal da Manhã em 17/11/2020.

Dizem os cientistas políticos, o lulismo veio inaugurar a consciência de classe no Brasil. Classe no sentido daqueles que ganham a vida com o próprio trabalho, e que vivem constante risco de desemprego ou de aviltamento dos salários e perda das condições de ter uma vida digna. A grande maioria dos que pertencem a esta classe é de operários. O lulismo surgiu justamente da organização sindical de operários metalúrgicos das grandes fábricas paulistas.

Esta consciência de classe só prosperou graças à possibilidade de organização sindical nas grandes fábricas e a um líder carismático. Os sindicatos viraram partido político, o partido político cresceu, conquistou prefeituras, estados, a presidência da república. A consciência de classe e o lulismo espalharam-se pelo Brasil. O apoio popular, acrescido da parte progressista das classes privilegiadas, cresceu. O Partido dos Trabalhadores tornou-se o maior do país, Lula ensejou o lulismo. No governo, o PT escolheu um rumo ainda a ser bem analisado e compreendido: procurou uma reforma lenta, melhorou aos poucos as condições de vida dos mais pobres, mas sem ameaçar os privilégios dos mais ricos. Diminuiu a miséria, mas não logrou aprofundar o engajamento e a consciência política da classe trabalhadora.

Isto não impediu que o segregacionismo e o medo fizessem os privilegiados atacarem ferozmente o PT e Lula: sequestradores de Abílio Diniz com camisetas do partido enfiadas pela polícia, imputação de toda a corrupção do país ao PT, massacre midiático, sabotagem do governo Dilma e golpe, prisão de Lula, o insano que esfaqueou Bolsonaro também com camisa vermelha enfiada pela polícia, são só algumas das tramoias para destruir o lulismo. Se conseguiram de fato fazê-lo ou não, o tempo dirá. Lula e PT ainda têm muita força.

Sem o prever, as elites engendraram Bolsonaro e o bolsonarismo. A criatura surpreendeu, e assusta, seus criadores. Claro, eles não queriam bem um Bolsonaro, este se mostrou um oportunista sagaz, respaldado pelas mesmas forças já não ocultas que antes viabilizaram o Brexit e Trump: a disseminação de mentiras nas redes sociais. Bolsonaro, embora não fosse o preferido, ao mesmo tempo que distrai a atenção da população com patetadas diárias, vai avançando na pauta que vai destruindo o Estado, loteando o país e aprofundando o fosso entre a multidão de empobrecidos e os privilegiados cada vez mais ricos. Um fantoche, está cumprindo bem o papel que os privilegiados desejavam que um governo pós-lulismo cumprisse.

O fenômeno Bolsonaro trouxe o bolsonarismo. Os apoiadores e votantes do capitão reformado não estão só na direção das federações e grandes corporações, na classe média retrógrada que enche as ruas das grandes cidades com bizarras manifestações, na malta de lambe-botas que cerca o mito em suas aparições públicas, nos comandos militares acostumados às ordens sem questionamento, nos politiqueiros sanguessugas. O bolsonarismo fanático está também na família de agricultores e de operários despossuídos, nos desempregados e subempregados, nos profissionais do sucateado sistema de ensino, nos militares de baixa patente, nos fiéis evangélicos, nas mulheres assediadas, nas segregadas minorias étnicas, de gênero, etc.

Como explicar o bolsonarismo e sua virulenta e indiscriminada disseminação? Decerto em parte é resultado da poderosa campanha de demonização contra o PT e Lula, regiamente financiada pelos ricos que não querem compartilhar seus privilégios. Decerto é pela falta de um entendimento mais firme de consciência de classe e política da população explorada. Decerto é pela ilusão de um outro caminho capaz de trazer prosperidade e justiça social ao país. Mas só isso não explica tudo o que caracteriza o bolsonarismo, que inclui no sua prática a discriminação, a violência, o negacionismo, a boçalidade e a mentira vulgarizadas. Qual o algo mais que justificaria o bolsonarismo?

Há analistas que explicam que a capilaridade do bolsonarismo dentro das várias camadas econômicas e sociais está alicerçada em fatores psicológicos, e não sociais. Os bolsonaristas na verdade identificam-se com a truculência, o despotismo, a ignorância e a chulice do seu mito. São indivíduos assombrados por seus fantasmas pessoais que não conseguem estender sua compreensão para além de si mesmos, para a complicada dimensão dos problemas sociais. A identidade do bolsonarismo não estaria, então, numa classe social, mas num traço de personalidade.

Afinal, parece que voltamos ao velho dilema humano, que Buda, Cristo, Maomé e tantos outros tentaram elucidar: entre o egocentrismo e a solidariedade, só esta última salva.

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Ogros ou elfos: a farsa da liberdade, democracia e verdade

Publicado no Jornal da Manhã em 07/11/2020


Todos nós somos um tanto ogros e um tanto elfos, em proporções variáveis. Dizem estudiosos da natureza humana que o ideal seria uma ponderação entre os dois, pois ambos têm prós e contras. Entretanto, ao longo do tempo, histórico ou pessoal, ora um ora outro se descontrola. Quem, num mesmo dia, já não foi ogro num momento e elfo noutro?

Os dias atuais da Humanidade estão dando o que pensar. São tempos de ogros ou de elfos? Como andam a liberdade, a democracia, a verdade, qualidades dos elfos?

A eleição nos EUA é carregada de simbolismos. Trump personifica a truculência, o autoritarismo, a opressão, a mentira. Há quatro anos, quando foi eleito pela primeira vez, há quem pudesse alegar que não tivesse certeza disso. Mas hoje já se sabe quem é o topetudo. E Trump chega a ameaçar ganhar de novo. Não é só ele que soltou o lado ogro. Todos os seus eleitores, e os incontáveis apoiadores mundo afora, também soltaram os seus.

Aliás, as nações são feitas de seus habitantes. Se os estadunidenses têm se inclinado para o lado ogro, que dizer de seu país? Ora, diriam, os EUA são a pátria da liberdade, da democracia, da verdade. São!? Liberdade de quem, e para quê? Da Ku Klux Klan para aterrorizar e matar? Liberdade de sufocar a imensa população negra e imigrante? Liberdade de invadir e arruinar países pelo mundo que não rezem sua cartilha econômica e ideológica? E a democracia? Nem internamente são democratas; massacram minorias, têm um bizarro sistema eleitoral em que o mais votado pelo povo pode não levar, o que tem acontecido com frequência. O que existe de democracia nos EUA depende de exportar ditaduras impostas a países mundo afora pelos seus serviços de arapongagem e equipadíssimo exército.

E a verdade? Tio Sam especializou-se em oferecer ao mundo o veneno fazendo-o passar por remédio. As bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, os dois maiores atos terroristas da História, são ditos atos de guerra necessários, para abreviar o conflito e salvar vidas. A verdade é que as duas explosões aterrorizaram o mundo, que desde então se curva de medo e rende-se à tirania capaz de tal atrocidade. Ademais, os EUA fabricam tiranos líderes fantoches mundo afora, depois têm de promover guerras arrasadoras para depô-los quando eles se insurgem contra seus criadores.

E se as armas de destruição vêm sendo incrivelmente aperfeiçoadas, graças a gordos orçamentos de guerra, primorosas estão também as artimanhas de manipulação da informação. A verdade nunca esteve tão distorcida. E os EUA parecem ser a pátria da honestidade. O restante do mundo é mentiroso e corrupto. Mas os corruptores são os agentes a serviço da hegemonia estadunidense. E, claro, a abafada corrupção interna de Tio Sam é negociada em secretos acordos internos, o restante do mundo não precisa sabê-la.

Vivemos um momento de farsa da liberdade, da democracia, da verdade. Soltamos os ogros, eles calaram os elfos. O apoio a Trump nos EUA e no mundo é uma prova disso. Urge nos reequilibrarmos.