quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Frei Betto: “O marxismo não é mais útil”

Texto de autoria de Frei Betto (Carlos Alberto Libânio Christo), frade dominicano, escritor premiado e assessor de movimentos sociais, (disponível em http://cebes.org.br/2019/11/o-marxismo-nao-e-mais-util-por-frei-betto/, publicado em 21/11/2019).

 

"O papa Bento XVI tem razão: o marxismo não é mais útil. Sim, o marxismo conforme muitos na Igreja Católica o entendem: uma ideologia ateísta, que justificou os crimes de Stalin e as barbaridades da revolução cultural chinesa. Aceitar que o marxismo conforme a ótica de Ratzinger é o mesmo marxismo conforme a ótica de Marx seria como identificar catolicismo com Inquisição. Poder-se-ia dizer hoje: o catolicismo não é mais útil. Porque já não se justifica enviar mulheres tidas como bruxas à fogueira nem torturar suspeitos de heresia. Ora, felizmente o catolicismo não pode ser identificado com a Inquisição, nem com a pedofilia de padres e bispos.

Do mesmo modo, o marxismo não se confunde com os marxistas que o utilizaram para disseminar o medo, o terror, e sufocar a liberdade religiosa. Há que voltar a Marx para saber o que é marxismo; assim como há que retornar aos Evangelhos e a Jesus para saber o que é cristianismo, e a Francisco de Assis para saber o que é catolicismo.

Ao longo da história,

• Em nome das mais belas palavras foram cometidos os mais horrendos crimes.

• Em nome da democracia, os EUA se apoderaram de Porto Rico e da base cubana de Guantánamo.

• Em nome do progresso, países da Europa Ocidental colonizaram povos africanos e deixaram ali um rastro de miséria.

• Em nome da liberdade, a rainha Vitória, do Reino Unido, promoveu na China a devastadora Guerra do Ópio.

• Em nome da paz, a Casa Branca cometeu o mais ousado e genocida ato terrorista de toda a história: as bombas atômicas sobre as populações de Hiroshima e Nagasaki.

• Em nome da liberdade, os EUA implantaram, em quase toda a América Latina, ditaduras sanguinárias ao longo de três décadas (1960-1980).

O marxismo é um método de análise da realidade. E, mais do que nunca, útil para se compreender a atual crise do capitalismo. O capitalismo, sim, já não é útil, pois:

• promoveu a mais acentuada desigualdade social entre a população do mundo;

• apoderou-se de riquezas naturais de outros povos;

• desenvolveu sua face imperialista e monopolista;

• centrou o equilíbrio do mundo em arsenais nucleares; e

• disseminou a ideologia neoliberal, que reduz o ser humano a mero consumista submisso aos encantos da mercadoria.

Hoje, o capitalismo é hegemônico no mundo. E de 7 bilhões de pessoas que habitam o planeta, 4 bilhões vivem abaixo da linha da pobreza, e 1,2 bilhão padecem fome crônica. O capitalismo fracassou para 2/3 da humanidade que não têm acesso a uma vida digna.

• Onde o cristianismo e o marxismo falam em solidariedade, o capitalismo introduziu a competição;

• onde o cristianismo e o marxismo falam em cooperação, o capitalismo introduziu a concorrência;

• onde o cristianismo e o marxismo falam em respeito à soberania dos povos, o capitalismo introduziu a globocolonização.

A religião não é um método de análise da realidade. O marxismo não é uma religião. A luz que a fé projeta sobre a realidade é, queira ou não o Vaticano, sempre mediatizada por uma ideologia. A ideologia neoliberal, que identifica capitalismo e democracia, hoje impera na consciência de muitos cristãos e os impede de perceber que o capitalismo é intrinsecamente perverso. A Igreja Católica, muitas vezes, é conivente com o capitalismo porque este a cobre de privilégios e lhe franqueia uma liberdade que é negada, pela pobreza, a milhões de seres humanos.

Ora, já está provado que o capitalismo não assegura um futuro digno para a humanidade. Bento XVI o admitiu ao afirmar que devemos buscar novos modelos. O marxismo, ao analisar as contradições e insuficiências do capitalismo, nos abre uma porta de esperança a uma sociedade que os católicos, na celebração eucarística, caracterizam como o mundo em que todos haverão de “partilhar os bens da Terra e os frutos do trabalho humano”. A isso Marx chamou de socialismo.

O arcebispo católico de Munique, Reinhard Marx lançou, em 2011, um livro intitulado O Capital – um legado a favor da humanidade. A capa contém as mesmas cores e fontes gráficas da primeira edição de O Capital, de Karl Marx, publicada em Hamburgo, em 1867. “Marx não está morto e é preciso levá-lo a sério“, disse o prelado por ocasião do lançamento da obra. “Há que se confrontar com a obra de Karl Marx, que nos ajuda a entender as teorias da acumulação capitalista e o mercantilismo. Isso não significa deixar-se atrair pelas aberrações e atrocidades cometidas em seu nome no século 20″.

O autor do novo O Capital, nomeado cardeal por Bento XVI em novembro de 2010, qualifica de “sociais-éticos” os princípios defendidos em seu livro, critica o capitalismo neoliberal, qualifica a especulação de “selvagem” e “pecado”, e advoga que a economia precisa ser redesenhada segundo normas éticas de uma nova ordem econômica e política. “As regras do jogo devem ter qualidade ética. Nesse sentido, a doutrina social da Igreja é crítica frente ao capitalismo“, afirma o arcebispo.

O livro se inicia com uma carta de Reinhard Marx a Karl Marx, a quem chama de “querido homônimo”, falecido em 1883. Roga-lhe reconhecer agora seu equívoco quanto à inexistência de Deus. O que sugere, nas entrelinhas, que o autor do Manifesto Comunista se encontra entre os que, do outro lado da vida, desfrutam da visão beatífica de Deus."

 

sábado, 23 de outubro de 2021

Paradoxos de um desgoverno

Publicado no Jornal da Manhã em 26/10/2021 sob o título Petróleo: recorde de produção e do preço dos derivados

Faço a leitura matinal do tabloide que é o jornal de minha cidade interiorana do Paraná. Espanto-me com as notícias. Ou melhor, com o que elas representam. Pois, notas curtas, limitam-se a descrever alguns fatos, sem contextualizá-los, sem interpretá-los, sem analisá-los.

Primeiro, vejo que a ambicionada Escola de Sargentos das Armas, a incensada ESA, não vai vir para Ponta Grossa. Apesar da cidade ser, junto com Santa Maria no RS, uma das duas favoritas, segundo declaração do general responsável pela análise das alternativas. O presidente da república ordenou que a ESA vá para Recife. O general não soube dizer quais os critérios para a decisão final, nada lhe foi dito. Posso especular qual tenha sido: em qual das três cidades a escola de sargentos teria maior potencial de traduzir-se em votos na próxima eleição? Esse deve ter sido o critério. Se assim foi, a ESA, um investimento bilionário e com a criação de muitos empregos locais, estaria sendo usada como um suborno, uma compra de votos.

Segunda notícia: o governo federal estuda conceder auxílio para os caminhoneiros autônomos, para compensar a alta do preço do diesel. Os caminhoneiros ameaçam entrar em greve, alegam que o preço do combustível está impagável. A alta dos preços dos derivados do petróleo, e junto com eles o etanol, decorre de uma decisão dos dois últimos governos: a produção, refino e comercialização do petróleo e seus derivados não visam mais reverter benefícios para o país e sua população, mas sim para os acionistas internacionais que passaram de fato a controlar a Petrobras. O cogitado auxílio para os caminhoneiros também seria uma forma de suborno, para abortar a ameaça de greve de um setor estratégico, que já provou que, quando paralisa, pode derrubar governos.

O cogitado auxílio para os caminhoneiros só faria aprofundar as disparidades entre os setores da sociedade. Alguns teriam o benefício do auxílio compensador, mas a maioria continuaria a arcar com os custos que transferem para acionistas milionários a riqueza do país, o petróleo, que poderia estar beneficiando toda a nação. E de onde vêm os recursos para o tal cogitado auxílio? Outro furo no teto de gastos, equivalente ao furo decorrente do anunciado Auxílio Brasil? Que não passa de outro golpe para transformar um programa social criterioso e duradouro num benefício eleitoreiro que acaba ao findar a eleição?

Mas a terceira notícia é a mais revoltante: o Brasil bateu nos últimos meses recordes históricos de produção de petróleo e gás natural, graças aos poços do pré-sal. Aquele mesmo pré-sal que, quando foi anunciado pelo governo Lula, os detratores disseram ser uma mentirosa invenção. O que o jornal não traz é a notícia de que ao mesmo tempo estamos batendo recordes de produção e de preços dos derivados. Este é o paradoxo mais revelador, que quebra as noções clássicas do balanço entre oferta e demanda.

O governo atual governa para os interesses das transnacionais e do deus mercado. Esta é a lei do ultraliberalismo. À maioria da população do país resta o desgoverno.

 

sábado, 16 de outubro de 2021

Voto impresso e voto consciente

Os alvoroços criados em torno do voto impresso e da infundada suspeita sobre a urna eletrônica parecem ter mais de uma finalidade. A primeira, sem dúvida, é parte da estratégia de sabotar a democracia, provocar desconfiança no processo eleitoral, preparar terreno para o golpismo de invalidar eleições legítimas e conduzir rejeitados pelo voto ao poder. Mas talvez o objetivo principal seja esconder outra questão: a qualidade do voto.

Em quem o eleitor vota? No candidato íntegro, probo, com espírito público, capaz de compreender e dar prioridade às precisões do povo e do país? Ou no candidato que domina ─ e tem dinheiro suficiente ─ os meios de criar uma falsa imagem tolerável, que é endeusado por mentiras digitais ─ as fake news ─ e matérias facciosas de uma mídia que não é imparcial, mas é comprometida com o interesse dos poderosos? Sói acontecer, estes candidatos são oportunistas inescrupulosos, o cargo parlamentar não se destina a cuidar da coisa pública, mas a engordar as contas secretas nos paraísos fiscais e outras ladroeiras. Amiúde são bandidos que não hesitam em iludir, mentir, roubar, prevaricar.

Tem-se uma ideia de em quem o eleitor tem votado vendo-se a realidade nacional: os parlamentares afrouxam as leis que tipificam a improbidade administrativa, ministros têm suas contas secretas em paraísos fiscais, governantes e familiares fazem aquisições milionárias muito além de suas teóricas possibilidades, leis determinam sigilo sobre processos que investigam crimes de governantes e seus familiares, outras leis precarizam o trabalho e a aposentadoria e vendem por bagatelas o patrimônio nacional, o Congresso ignora inúmeras denúncias dos crimes cometidos pelos governantes, que vão desde os ataques à democracia e falcatruas com dinheiro público até o genocídio de centenas de milhares de pessoas. Estes fatos, e muitos outros, revelam que o voto está deturpado. Ou o eleitor está sendo enganado, ou compactua com os facínoras que se candidatam aos cargos públicos.

Transformar a qualidade do voto, devolvendo-lhe o poder de ser o principal instrumento de sustentação e aperfeiçoamento da democracia e da vontade popular, implica o eleitor tomar consciência que da sua escolha depende o futuro do país, que é o futuro de todos seus cidadãos. É preciso reconhecer que o analfabeto político é o responsável pelo descrédito da política. E que o omisso, aquele que se intitula apolítico ou “imparcial”, mente para si mesmo. Em política, não existe imparcialidade: quem se omite está sempre do lado do opressor e do ímprobo, fortalece-o.

O que fazer para que o voto ganhe qualidade? Sem dúvida educação refletida e crítica, liberdade de expressão sem libertinagem de mentiras e fraudes, instituições democráticas fortalecidas, bons exemplos vindos de autoridades e líderes e, com certeza, muitos outros componentes, são essenciais. Mas talvez o fundamental seja mesmo cada cidadão, não somente na hora de votar, mas em toda a vida, assumir o papel de protagonista, com todas as suas incertezas, perdas e conquistas.

É preciso deixar de ser gado tangido, e alcançar a redenção do discernimento, do engajamento, da ética e da solidariedade. O governo, a política, mudam quando o cidadão muda. O vice-versa é consequência.

 

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Gado, vaqueiro e pastor

Vale retomar os conceitos de diferenciação, autopoiesis e comunhão ─ do livro O tao da libertação – explorando a ecologia da transformação, de Mark Hathaway e Leonardo Boff, Editora Vozes, 2012 ─. Numa escala universal, os conceitos podem referir-se à explosão do Big-Bang (diferenciação), à criação e evolução dos corpos celestes ─ inclusive a Terra ─ (autopoiesis) e ao suposto Big-Crunch (comunhão), que vai tudo amalgamar de novo, num futuro longínquo. Numa escala pessoal, podem referir-se ao fortalecimento de nossa personalidade e caráter (diferenciação), ao despertar de nossa ética, estética e compaixão (autopoiesis) e à empatia e solidariedade que nos conduzem à identificação e cuidado com o próximo e com a natureza que nos cerca (comunhão). À luz desses conceitos, como anda a sociedade hoje?

Muitas vezes encontramos a palavra “gado” para referir-se à massa indistinta, irracional e amorfa, capaz de atrocidades vistas em aglomerações ensandecidas, até mesmo nos estádios de futebol. Às vezes o gado tem maneiras menos violentas de manifestar-se, como nas “ondas” de modismos fugazes ou na eleição de notórios facínoras, especialistas em oportunismo e ilusionismo. O gado é perigoso, conforme sugere a expressão popular “estouro da boiada”. A maior parte da população, talvez aquela denominada “maioria silenciosa”, é o gado, a manada tangível, a turba ora silenciosamente alienada e omissa, ora desembestada.

Outra parte da população, menor que a anterior, aspira diferenciar-se da manada. No princípio esta aspiração revela-se como competição e ambição cega. É o vaqueiro que tange o gado, não para o bem deste, mas para conduzi-lo ao matadouro. A diferenciação manifesta-se cheia de malícias, de cupidez, de perfídias. O que importa é destacar-se, distinguir-se, doa a quem doer. É aquela fração da população cujo sonho é sobressair-se, amealhar poder, riqueza e celebridade, a qualquer custo.

Outra parte da população, ainda menor, começa a preocupar-se com questões éticas e morais, com o bem estar do próximo e do planeta que nos concede a vida, incluindo plantas, animais, o ar, a água, o solo. São pessoas mais sensíveis, mais receptivas à cultura, à arte, à genuína religiosidade. Substituem o apreço e a atenção por si mesmas pelo olhar ao outro, à vida. São dadas a introspecções e aversões às modas e ondas, acabam discriminadas senão imoladas nas fogueiras da inquisição ou nas cotidianas execrações de todos os tipos de segregações. Começam estas pessoas a exercitar a autopoiesis. São invejadas e odiadas pelo gado e pelos vaqueiros.

Uma derradeira parcela, ainda menor que as anteriores, é a dos pastores. São os verdadeiros messias, que já alcançaram a iluminação, procuram com brandura compartilhar o que aprenderam. São autênticos missionários, que desejam levar os rebanhos não ao matadouro, mas às pastagens que concedam o tempo e a paz necessários para o despertar e a evolução. Alguns destes pastores são os profetas das religiões libertadoras. Outros alcançaram celebridade por tantos que conseguiram fazer ver. A maioria foi brutalmente assassinada, e embora tenham estado entre nós desde há milênios, ainda não lhes aprendemos as lições. Estes pastores dedicam-se a mostrar-nos a inevitabilidade da comunhão, se desejarmos evoluir.

Em qual estágio estaríamos, cada um de nós? É bem provável que tenhamos um tanto de gado, outro de vaqueiro e de pastor. Oxalá saibamos percorrer o caminho da diferenciação e autopoiesis, rumo à comunhão.

 

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

O golpe dentro do golpe dentro do golpe

 

Sexta-feira, 1º de outubro, intenso movimento bancário.

O golpe

Toca o telefone fixo:

─ Bom dia, por favor, o Sr. Fulano? É da Central de segurança e análise de contas do Banco do Brasil.

─ Pois não, sou eu mesmo.

O golpe dentro do golpe

─ Detectamos transações suspeitas em sua conta corrente, transferências via pix, no valor de R$2.800,00. Foi temporariamente suspensa, o Sr. tem de ligar para o número que consta atrás de seu cartão, o 40040001. Com urgência, a suspensão dura só alguns minutos. Anote o número do protocolo deste chamado: (e disse um número com 16 dígitos).

Demorei para ligar para o tal número, antes fui no aplicativo ver se minha conta indicava algum movimento indevido. Depois fui verificar os números do BB, o número indicado era para atendimento a capitais. Mas não estou em capital! O fone fixo voltou a tocar:

─ Outra transação em sua conta, agora de R$4.200,00. O Sr. tem de ligar com urgência para o número atrás de seu cartão!

O golpe dentro do golpe dentro do golpe.

Liguei enfim para o tal número, de fato ele aparece atrás do cartão, mas para capitais, não a Ponta Grossa do interior do Paraná onde estou. Atende imediatamente gravação com opções, parecia mesmo ser do banco. Fui digitando os algarismos para chegar à atendente de viva voz, que supostamente tratava dos casos de suspeita de fraudes:

─ Banco do Brasil bom dia. Em que posso ajudá-lo.

Expliquei o caso, ela muito cara de pau disse:

─ Provavelmente é fraude. Mas para o Sr. ter certeza, vou lhe indicar o procedimento para tirar as dúvidas. Vou passar para o setor responsável, lá vão pedir o número de sua conta e a sua senha...

─ Moça, espere aí, aprendi que nunca se passa esses números por telefone.

─ Se o senhor não se sentir seguro, pode ir pessoalmente à agência bancária.

─ Vou fazer isso. Agradecido.

Por certo ela esperava que eu preferisse digitar os números no fixo, algo muito mais fácil numa sexta-feira dia primeiro, as agências muito movimentadas.

***

Fui à agência, lá soube que eu era o terceiro caso no dia, na véspera outros seis casos. Quando fazem a ligação pelo fixo, prendem a ligação. Quando discamos o 400... são eles mesmos que atendem do outro lado. E aplicam o golpe definitivo.

Precisamos ficar espertos, a bandidagem está habilidosa e ousada.