sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Cultura enlatada

Publicado no Jornal da Manhã em 30/11/2019.

Outro dia, por acaso, parei num filme que passava num canal fechado na TV. O filme logo me impressionou, pelo realismo dos personagens que se parecem comigo e com pessoas que vejo no dia a dia, pela intensidade de emoções, sentimentos, ações desses personagens. O nome do filme: “Sem amor”. O tema: drama familiar. O diretor: Andrey Zvyagintsev. A nacionalidade: russo. Os mais exaltados já dirão: ─ Comunista! Não, pudera, não me considero comunista. Ainda falta muito de desapego e solidariedade em mim para que possa dizer-me comunista.
O filme surpreendeu-me pelo clima que cria em torno de um tema tão crucial: o amor filial. Deve ter sido uma produção muito barata comparada às superproduções estadunidenses que inundam nossas telas, e que atraem multidões e arrecadam milhões. Por que filmes realistas, baratos, sobre temas humanos essenciais, que aliam arte, reflexão e entretenimento, comumente vindos do Leste Europeu e do Oriente, são tão raros e costumam ser fracassos de bilheteria entre nós?
Ocorreu-me como resposta que vivemos uma civilização da cultura enlatada. Não só no cinema, mas na literatura, na música, no teatro... Para consumo rápido, que nos entorpece mais do que nos encoraja e desperta sentimentos e a reflexão. Uma cultura que não emancipa, ao contrário, submete. Sentir e refletir estão na contramão de uma civilização baseada na necessidade de consumir rápido e insaciavelmente, senão entra em colapso. Não é assim o mundo em que vivemos, em que as fábricas fazem produtos com vida útil programada para que tenhamos que trocá-los logo por outros, senão a produção cai, a fábrica vai à falência? E o mesmo não está se passando com a indústria cultural, que esqueceu o sentido da palavra cultura, que é cultivar a humanidade dentro de nós? Cultura passou a ser um produto como qualquer outro no mundo consumista, precisa ser vendido rápido e em grande quantidade. Mas pressa e quantidade não combinam com o sentido original da palavra cultura.
Neste mundo de consumo que vivemos uma das ciências em que mais se investe e que mais avança é a ciência que estuda o controle, a manipulação do comportamento humano. Somos bombardeados a todo instante por técnicas cada vez mais sofisticadas e eficazes, para pensarmos, desejarmos, comprarmos, agirmos, votarmos exatamente da forma como nossos manipuladores desejam. Ou seja, somos como eles querem, perdemos a identidade de ser pensante e sensível, com singularidades e aspirações intrínsecas. Somos treinados para responder com reflexos condicionados, exatamente como deseja o mercado. Somos consumidores.
O resultado dessa eficaz manipulação revela-se em tudo: nos filmes que assistimos, livros que lemos, músicas que escutamos, compras que fazemos, ideologias que defendemos, governantes que elegemos, ícones que idolatramos ou que amaldiçoamos.
O contrário da cultura enlatada seria a cultura popular, impregnada da autenticidade da realidade da vida de um povo, sua tradição, território, lutas, conquistas, subjetividade, memória. No Brasil, onde a cultura popular ainda consegue sobreviver à terraplanagem da cultura enlatada? Talvez nos rincões da Amazônia, no sertão nordestino?
Não por acaso o filme mais falado e premiado produzido no País nos últimos tempos, o Bacurau, de Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, aborda justamente o confronto do tradicional com a enlatada farsa no sertão nordestino.
Urge resgatar a cultura autêntica, expressa na cultura tradicional, na cultura popular.

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Lula Livre é medo da verdade

Publicado no Jornal da Manhã em 13/11/2019.

Encontrou-se um controverso artifício, 6X5 no STF, para soltar Lula. Ele, que alguns consideram o maior estadista do Brasil, deve estar vivendo um sentimento ambíguo: alegre por estar solto, triste por não reconhecerem o que sua prisão significa.
Lula foi solto por uma divergência de entendimento sobre uma jurisprudência e o que reza a Constituição. E o parecer de que ele estava preso indevidamente prevaleceu por pouco. Faz pensar que o erro jurídico era uma questão difícil, passível de equívoco.
Vamos a outra interpretação. Lula foi solto porque nossos vizinhos sul-americanos, Chile, Argentina, Equador, Bolívia, Uruguai, estão dando mostras que a população lá não aprova as mesmas medidas entreguistas que estão sendo implantadas no Brasil, e pode revoltar-se violentamente. E é crescente o temor de que a população do Brasil acorde. Analistas dizem que a revolta explosiva depende de uma gota d’água depois que o copo já está cheio. Essa gota d’água pode ser o aumento na tarifa do transporte público, o aumento no combustível, o arrocho salarial, o desemprego. Mas o que enche o copo d’água até que uma gota baste para fazê-lo transbordar?
No caso do Brasil, muitos eventos têm enchido o copo d’água. A começar pelo injustificado golpe que depôs Dilma. A seguir veio a questionável condenação de Lula, contestada por juristas internacionais de renome, que apontaram falta de provas, facciosidade, atropelamento do processo e motivação política. Depois a posse de Temer que traiu o programa que o elegeu vice-presidente, e entregou o País à sanha transnacional. Depois a eleição de Bolsonaro graças a crimes digitais que nunca foram devidamente apurados. Depois as denúncias do laranjal do PSL que elegeu Bolsonaro. Depois as denúncias do The Intercept Brazil comprovando o facciosismo da Lava Jato. Depois os indícios de envolvimento da família Bolsonaro com milícias e o crime organizado. No meio de tudo isso, as queimadas na Amazônia, as trapalhadas diplomáticas com parceiros comerciais importantes, as declarações cada vez mais frequentes de autoridades nacionais e internacionais de que temos na presidência alguém que não está à altura do cargo.
Tudo isso é mais que suficiente para encher o copo d’água. Soltar Lula talvez dê a falsa impressão de que o copo não está tão cheio. Só impressão. Porque se nos lembrarmos que durante essas trapalhadas todas o desemprego subiu, a concentração de renda aumentou, a miséria cresceu, o crescimento econômico continua pífio, não há investimento, direitos trabalhistas estão sendo radicalmente precarizados, o pré-sal e estatais de energia estão sendo rifados, a Petrobras e grandes empreiteiras brasileiras foram sangradas gravemente, o povo brasileiro está dividido e desorientado, então percebemos que já há água suficiente para transbordar.
Que o Brasil acorde para a verdadeira razão da soltura de Lula: é confundir sobre a verdadeira razão de sua prisão. Que é a sabotagem de um país que ensaiava assumir um protagonismo que não interessa ao poder hegemônico mundial.