Outro dia, por acaso, parei num filme que passava num canal
fechado na TV. O filme logo me impressionou, pelo realismo dos personagens que
se parecem comigo e com pessoas que vejo no dia a dia, pela intensidade de
emoções, sentimentos, ações desses personagens. O nome do filme: “Sem amor”. O
tema: drama familiar. O diretor: Andrey Zvyagintsev. A nacionalidade: russo. Os
mais exaltados já dirão: ─ Comunista! Não, pudera, não me considero comunista.
Ainda falta muito de desapego e solidariedade em mim para que possa dizer-me
comunista.
O filme surpreendeu-me pelo clima que cria em torno de um
tema tão crucial: o amor filial. Deve ter sido uma produção muito barata
comparada às superproduções estadunidenses que inundam nossas telas, e que atraem
multidões e arrecadam milhões. Por que filmes realistas, baratos, sobre temas humanos
essenciais, que aliam arte, reflexão e entretenimento, comumente vindos do Leste Europeu e do Oriente, são tão raros e costumam ser fracassos de
bilheteria entre nós?
Ocorreu-me como resposta que vivemos uma civilização da
cultura enlatada. Não só no cinema, mas na literatura, na música, no teatro...
Para consumo rápido, que nos entorpece mais do que nos encoraja e desperta sentimentos
e a reflexão. Uma cultura que não emancipa, ao contrário, submete. Sentir e
refletir estão na contramão de uma civilização baseada na necessidade de
consumir rápido e insaciavelmente, senão entra em colapso. Não é assim o mundo
em que vivemos, em que as fábricas fazem produtos com vida útil programada para
que tenhamos que trocá-los logo por outros, senão a produção cai, a fábrica vai
à falência? E o mesmo não está se passando com a indústria cultural, que
esqueceu o sentido da palavra cultura, que é cultivar a humanidade dentro de
nós? Cultura passou a ser um produto como qualquer outro no mundo consumista,
precisa ser vendido rápido e em grande quantidade. Mas pressa e quantidade não
combinam com o sentido original da palavra cultura.
Neste mundo de consumo que vivemos uma das ciências em
que mais se investe e que mais avança é a ciência que estuda o controle, a
manipulação do comportamento humano. Somos bombardeados a todo instante por
técnicas cada vez mais sofisticadas e eficazes, para pensarmos, desejarmos, comprarmos,
agirmos, votarmos exatamente da forma como nossos manipuladores desejam. Ou
seja, somos como eles querem, perdemos a identidade de ser pensante e sensível,
com singularidades e aspirações intrínsecas. Somos treinados para responder com
reflexos condicionados, exatamente como deseja o mercado. Somos consumidores.
O resultado dessa eficaz manipulação revela-se em tudo:
nos filmes que assistimos, livros que lemos, músicas que escutamos, compras que
fazemos, ideologias que defendemos, governantes que elegemos, ícones que
idolatramos ou que amaldiçoamos.
O contrário da cultura enlatada seria a cultura popular,
impregnada da autenticidade da realidade da vida de um povo, sua tradição,
território, lutas, conquistas, subjetividade, memória. No Brasil, onde a cultura popular
ainda consegue sobreviver à terraplanagem da cultura enlatada? Talvez nos
rincões da Amazônia, no sertão nordestino?
Não por acaso o filme mais falado e premiado produzido no
País nos últimos tempos, o Bacurau, de Kléber Mendonça Filho e Juliano
Dornelles, aborda justamente o confronto do tradicional com a enlatada farsa no
sertão nordestino.
Urge resgatar a cultura autêntica, expressa na cultura
tradicional, na cultura popular.
ao ler seu excelente comentário lembrei dos versos do Zé Ramalho no Admirável Gado Novo: ÊÊÊ VIDA DE GADO, POVO MARCADO, É POVO FELIZ.
ResponderExcluirabs. Carlos SA
Cada vez mais estamos tirando a máscara de hipocrisia dessa sociedade doentia.
ResponderExcluirObrigada por descrever como se dá essa implantação da ignorância.