sábado, 26 de fevereiro de 2022

Ditaduras, democracias e luta de classes

Publicado no Jornal da Manhã em 03/03/20122.


Ditaduras, que sempre existiram, são os sistemas de governo em que o poder é exercido por um indivíduo ─ o ditador ─ ou um grupo de indivíduos, que representa um interesse econômico, ideológico ou militar. As ditaduras sempre se apoiam no poder militar, sem ele não conseguiriam impor sua tirânica prepotência. Um exemplo é a ditadura militar no Brasil, de 1964 a 1985: poderes do legislativo e judiciário foram cassados e agrilhoados; o cidadão perdeu direito à justiça; governos locais eram interventores; os dissidentes foram perseguidos, torturados, mortos e desaparecidos sem julgamento; a imprensa, a mídia, as artes foram censuradas; expoentes da cultura, da arte, das ciências e verdadeiros democratas tiveram de exilar-se no exterior. Na ditadura não existe liberdade nem representatividade: é a vontade do ditador que prevalece, em detrimento da vontade da população.

Democracias são aqueles regimes em que, em tese, o poder emana do povo. Há muitas formas de fazer a vontade do povo chegar aos governantes. No Brasil, vivemos a chamada “democracia representativa”. A população elege, pelo voto direto, seus representantes: são eles os governantes (presidente, governadores, prefeitos) e legisladores (senadores, deputados federais e estaduais, vereadores). Os membros do judiciário são indicados por estes supostos representantes do povo. Os representantes eleitos têm mandato temporário, o que, em teoria, permitiria substituir as más escolhas por outras melhores, terminado o mandato que lhes foi conferido. Mas é garantido o direito de reeleição. Numa democracia consolidada, haveria distribuição equitativa do poder: todos os interesses econômicos, todas as classes sociais, todos os vieses ideológicos estariam representados nas instâncias de governo, e teriam de negociar e procurar consenso para as decisões.

Entre as ditaduras e as democracias, há uma vastidão de formas de governo, que ora mais se aproximam de um lado, ora de outro. Há por exemplo regimes duramente autoritários, implacáveis com oponentes, mas que são largamente apoiados pela maioria da população. Por outro lado, há as democracias em que os eleitos pelo povo na verdade representam os interesses de lobbies nacionais ou estrangeiros, ou ideologias malsãs fomentadas do exterior. Os eleitores, manipulados para serem cidadãos com baixa noção de direitos e capacidade de discernimento, via ensino precário e feroz mídia facciosa, não conseguem, na hora do voto, separar entre os candidatos que realmente vão defender causas coletivas daqueles que são fantoches de interesses corruptos.

Quando se fala de interesse coletivo versus interesse corrupto, está-se falando da “luta de classes”. O conceito existe desde que se inventou a propriedade privada. Mas consolidou-se na Revolução Francesa, no final do século XVIII, quando proletários e burgueses uniram-se para derrubar a monarquia, e ao longo do século XIX, quando da expansão da industrialização e consequentes conflitos de trabalhadores versus proprietários. Há quem denomine a luta de classes de guerra de classes, tal a enormidade de vítimas fruto do embate trabalho versus capital: os moradores de periferia soterrados pelos deslizamentos de terra ou afogados nas inundações; os sepultados pelo rompimento das barragens de rejeito de minério; os assassinados pela guerra civil urbana e violência policial; os infectados pelas condições insalubres de moradias precárias; os doentes que não conseguem atendimento médico adequado; os contaminados pelo uso inescrupuloso de agrotóxicos; os jovens aliciados pelo crime por falta de alternativa...

A luta de classes está presente nas ditaduras e nas democracias. O que torna complicada a união de supostos democratas contra uma ditadura. Pode ser considerado democrata um governante ou um legislador que exerce o jogo do poder para favorecer o interesse econômico do lobby que financia sua campanha? E que tem o ilegítimo direito de votar secreto em decisões parlamentares que afetam diretamente seus eleitores?

Talvez a maneira de distinguir ditadores de democratas seja distinguir entre aqueles que se comprometem ou não em empenhar-se no combate às causas da luta de classes: a exploração desumana do trabalho; a concentração de renda; a submissão ao mercado; a injustiça e exclusão social; o aparato de privilégios e proteção dos proprietários e de sectária condenação dos despossuídos...

Uma autêntica frente democrática será constituída pelos homens públicos que já compreenderam que a luta de classes revela a verdadeira chaga da democracia, e que assumem o sincero compromisso de buscar a justiça e a paz social.

 

sábado, 19 de fevereiro de 2022

EUA versus Rússia - precisa-se de uma guerra

Parece mesmo que a humanidade não sabe viver sem guerras. No ótimo filme A fonte das mulheres (direção de Radu Mihaileanu, 2011) há uma significativa passagem, em que as mulheres, encarregadas do trabalho mais pesado, dizem aos homens, ocupados em matar o tempo bebendo e falando da vida: “─ Vocês só sabem o que fazer quando há guerra, sem ela ficam perdidos!” Hoje, as sequelas emocionais e sociais dos estadunidenses retornados da guerra ─ é o país mais guerreiro da atualidade ─ parecem comprovar que, sem a guerra, os homens desorientam-se, perdem o rumo, adoecem ou tornam-se criminosos.

Há muitos tipos de guerras: as grandes guerras de conquista e expansão, como do Império Romano, do Mongol, do Turco-Otomano; guerras de extermínio, como fizeram ingleses, franceses, espanhóis e portugueses com os nativos americanos; guerras contra o colapso pela escassez de recursos, como fez o Japão; guerras de vassalagem, quando países guerreiam a serviço de outros, como na Guerra do Paraguai; guerras contra povos e estados vizinhos tornados inimigos viscerais, como é em Israel; guerras em defesa de fronteiras, como na Coréia e Vietnam; guerras religiosas, como na Irlanda; guerras fratricidas, incitadas do estrangeiro, como na Nigéria e em Ruanda; guerras pela criação da nação de um povo sem território, como tentam os curdos; guerras geopolíticas e por recursos energéticos e minerais, como no Iraque e Afeganistão; guerras complexas, com múltiplas motivações, como foram as duas grandes guerras...

Há ainda guerras “de encomenda”, como foram as guerras das Malvinas e do Iraque: governos enfraquecidos, da ditadura militar argentina e do republicano Bush, precisavam declarar guerras para unir a nação e tirar o foco de agudos problemas internos. Existiriam também “guerras inventadas”. A comédia ficcional Mera coincidência (original em inglês Wag the dog, algo como “abane o cachorro no lugar da cauda”, direção de Barry Levinson, 1998) mostra a invenção midiática de uma guerra na Albânia para esconder um escândalo sexual envolvendo o presidente dos EUA.

As controvertidas acusações feitas de lado a lado entre Rússia e EUA parecem indicar-nos que está em curso outra “guerra inventada”. Embora, neste caso, muito mais embasada em fatos verídicos que no filme Mera coincidência. A Ucrânia, país que tem a infelicidade de situar-se em local geopolítico criticamente estratégico, é agora o possível palco da catarse dos instintos bélicos da humanidade. Por enquanto, parece mesmo que a guerra está sendo inventada pela mídia, insuflada para desencadear uma guerra real. E esta cogitada guerra real parece só confirmar que hoje se trava no planeta uma nova guerra de “total dominação”, como no tempo de Alexandre Magno, dos romanos e dos mongóis.

No Brasil, na América Latina e noutros territórios sob o domínio do hegemônico império ocidental atual, os EUA, trava-se um novo tipo de guerra: as chamadas guerras híbridas e revoluções coloridas. As armas principais são políticas, cibernéticas, midiáticas. Armas sofisticadíssimas, capazes de fazer um povo depor líderes nacionalistas e humanistas para, em seu lugar, entronizar insanos ditadores entreguistas, fantoches do império.

Agora, o império está em crise, econômica, política, social. A guerra do Afeganistão exauriu-se, não era mais sustentável. Outra derrota vexaminosa, comparável ao Vietnam. É preciso encontrar logo outra guerra, que disfarce a vergonha, arrebate corações e mentes, una o combalido império, sacie a colossal indústria da guerra. E dê razão de existir e sobrevida a seus adictos guerreiros.

 

domingo, 6 de fevereiro de 2022

A Petrobras e a Funepo - TV Educativa de Ponta Grossa

 A Petrobras, estatal fundada em 1953, já foi a maior empresa brasileira, e uma das maiores do mundo. Atua na área de petróleo e derivados, a segunda maior indústria do planeta, só atrás da indústria da guerra. A Funepo ─ Fundação Educacional de Ponta Grossa ─, fundada em 1981, é a TV Educativa de Ponta Grossa; dedica-se à educação, à cultura e à filantropia. O que existe de comum entre as duas?

A Petrobras foi criada, e agigantou-se até a descoberta dos campos de petróleo do pré-sal ─ as maiores reservas descobertas no século XXI ─, sob a inspiração de ajudar o Brasil a alcançar o patamar de uma nação soberana, autossuficiente. Seu gigantismo, e a irreverência de pretender impulsionar a libertação do país de seu histórico papel de colônia fornecedora de matérias primas de baixo valor, decretaram a perseguição internacional de que foi vítima, e a transformação da antes estatal em uma parceira vassala dos interesses do ciclópico e voraz cartel internacional do petróleo. Por esse motivo hoje, apesar de exportarmos petróleo cru, pagamos aqui preços escorchantes dos derivados, impostos pelo cartel.

A Funepo ─ depois gestora da TV Educativa de Ponta Grossa foi criada no início da década de 1980, que foi marcada por renascimento de esperanças no Brasil. Foi a década do restabelecimento da democracia, dos movimentos sindicais que restituíram dignidade à condição de trabalhador, da Constituição Cidadã. Em sua trajetória, a TV Educativa tem apoiado e difundido programas educacionais e culturais regionais, e teve papel fundamental na viabilização de alternativas educacionais para contornar a obrigação de distanciamento imposta pela pandemia em 2020-21. A TV Educativa, dedicando-se à educação e à cultura, moureja pela melhora da capacidade de exercer a cidadania: o cidadão bem educado tem mais condições de participar da construção de uma sociedade mais justa e inclusiva, tem melhor compreensão de seus deveres e de seus direitos.

Entretanto, estamos vivendo uma época em que a soberania e a emancipação que a Petrobras significou, e a educação e a cultura que a TV Educativa transmitiu, estão sob ataque. Não só estas duas instituições, mas tudo que é público está sob ataque: todo o sistema educacional, a saúde, os bancos, inclusive o meio ambiente e os recursos naturais, que são também bens públicos. Trata-se da culminância da nefasta lógica do ultraliberalismo, que visa ou extinguir ou privatizar, quer dizer, visa privilegiar para uns poucos, amiúde insaciáveis, tudo que seja comercializável: a educação, a cultura, a saúde, o alimento, a moradia, a água, o combustível...

Os dirigentes que têm sido eleitos sob o beneplácito da lógica ultraliberal vão continuar agindo a favor do interesse privatista dos seus financiadores de campanha eleitoral. É a população, legítima legatária do bem público, que deve contrapor-se ao desmanche das entidades estatais que ainda representam o sonho de um povo capaz de discernir, de engajar-se e de sonhar com um país soberano.