quarta-feira, 25 de abril de 2018

Religião, futebol e política

Publicado no Jornal da Manhã em 25/04/2018

Ainda bem menino, frequentemente escutava meu pai dizer: ─ “Religião, futebol e política não se discutem com amigos”. Ele afirmava que tais discussões descambavam sempre para brigas, e amizades viravam inimizades. Dizia também que a afirmação já era dita pelo pai dele, meu avô. Portanto tratava-se de sabedoria popular antiga.
Qual seria o motivo destes temas, todos eles tão importantes, não poderem ser discutidos? Talvez pelo fato de que no Brasil são temas que abraçamos com paixão, sem nenhuma racionalidade? Basta observar as brigas que surgem quando começamos a discutir a nossa religião, o nosso time de futebol ou a nossa opção partidária ou ideológica. Brigas que em alguns casos degeneram em desvairada violência, como nos estádios de futebol, ou, felizmente ainda não no Brasil, em atos de terrorismo em nome de convicções religiosas e/ou ideológicas. Em outros casos, as divergências e as discussões políticas geram ressentimentos que vão alimentando ódios. Estes em nosso país vêm sendo extravasados em segregacionismos e agressões ainda não calamitosas. Até quando?
Por serem escolhas passionais, abdicamos de dedicar a estes três temas os mesmos cuidados de confiabilidade nas informações, reflexão, discernimento e objetividade que dispensamos a outros aspectos que nos são vitais, no trabalho, na saúde, no lar, nas finanças... Em se tratando da política, tal desobrigação de correção torna-nos analfabetos políticos. E não há nada mais nefasto para uma sociedade que os analfabetos políticos.
Mesmo na religião e no futebol a irracionalidade nos empobrece. A fé cega nos impede de ver e vivenciar os edificantes desafios e conquistas do livre arbítrio e da compreensão da fé diversa da nossa. O torcedor fanático não sabe apreciar o bom futebol praticado pelo time adversário. Sofre com ele. Mas não existe nada pior do que a irracionalidade política. Ela nos torna massa de manobra, gado tangido pelos dissimulados e insinuantes interesses que só desejam nos manter como um rebanho que serve ao deleite da insaciável cupidez da parcela de seres humanos que não logra encontrar outro sentido na vida que não seja possuir, explorar e degradar o próximo e o planeta.
A irracionalidade política cega mais que a fé cega. Persuasivas técnicas de manipulação de massas, que atuam via a grande mídia e atualmente também via redes sociais, deformam o que julgamos ser a nossa opinião, constroem uma opinião estranha, que serve à realização de objetivos que podem ser o oposto daquilo que nos beneficiaria.
E assim passamos a odiar o nosso vizinho, passamos a demonizar aqueles que se dedicam a uma sociedade mais justa, ao fortalecimento da soberania nacional frente a rapinantes e dominadores interesses internacionais. E endeusamos quem a mídia nos apresenta com maquiados ares de civilidade.
A irracionalidade, seja na religião, no futebol ou na política, resulta da intrínseca qualidade humana do comodismo. Discernir, deixar de ser irracional, demanda empenho e envolve incertezas e riscos. Mas se não tivermos a coragem de nos tornarmos menos irracionais, não deixaremos de ser rebanho tangido. Nossos sonhos de emancipação humana continuarão sonhos. E o Brasil continuará deitado em berço esplêndido.

domingo, 15 de abril de 2018

A riqueza da diferença



Vivemos um tempo em que as palavras tolerância, inclusão, alteridade, empatia e outras têm ganho muita expressão, justamente pelo recrudescimento de sentimentos e ações contrários ao que elas significam. Mas se refletirmos um pouco, a vida e a natureza já nos dão pistas seguras de caminhos que a humanidade deveria seguir para pacificar-se e harmonizar-se, e enfim canalizar seus enormes conhecimentos, recursos e tecnologias em prol da iluminação cultural e espiritual, e não de guerras, disputas e ódios, que só fazem acirrar.
Os ecossistemas já nos mostram o poder da diversidade. O clímax de uma biocenose, por exemplo uma floresta, seja ela amazônica, atlântica, de araucárias ou qualquer outra, só é alcançado quando condições favoráveis ao longo de tempo suficiente conseguem permitir que toda uma vasta comunidade de espécies, vegetais, animais, fungos, protistas e moneras, macro e micro-organismos, interaja de modo que cada uma contribua para o apogeu das demais. O mesmo se dá por exemplo no solo, ele só atinge sua fertilidade máxima com uma infindável coletividade de minúsculos seres que convivem numa cooperativa simbiose. E nos mares, rios e lagos o mesmo ensinamento: o equilíbrio e a evolução de toda a população dependem da interação das condições do meio e de inúmeras espécies vivas.
Já viram um plantio de araucárias? Em matas naturais, a araucária é uma árvore de grande porte, com robustos troncos e portentosos dosséis. Ela é a árvore mais majestosa, e sob sua generosa proteção desenvolve-se uma multiplicidade de outras árvores, muitas delas igualmente frondosas. Mas num plantio é muito diferente. Não existem outras espécies além das árvores plantadas, e estas são raquíticas, franzinas se comparadas com suas congêneres das matas naturais. Faltam-lhes os nutrientes que são liberados no solo graças à atividade das outras espécies. Assim são também os homens que desejam ver-se cercados senão por iguais. Falta-lhes grandeza, ficam incultos, pobres de ideias, de ideais e de sentimentos. Falta-lhes a compreensão de diversidade.
 Nós seres humanos parecemos ser uma espécie que ainda não aprendeu essa vital lição da natureza. Nosso impulso de predominar tem nos levado a comprometer tanto o meio ambiente que nos propicia as condições essenciais para a vida quanto as outras espécies que constituem conosco a vasta comunidade viva de nosso planeta nos tempos atuais. E, mais agravante, temos acirrado as desavenças e disputas entre nós mesmos seres humanos, seja pelo sempre renitente impulso de predominar, seja pelos instintos de repulsa e beligerância com o diferente, herdados de nossos ancestrais animais ainda completamente irracionais.
Uma metrópole cosmopolita qualquer do mundo, um aglomerado que congrega em sua população gentes vindas de diferentes lugares, povos e culturas, nos mostra, no ambiente artificial construído pelo ser humano, a riqueza da diversidade. A convivência com o diferente nos ensina que, ao contrário de nos ameaçar, ele nos enriquece. O convívio de raças, religiões, idiomas, alimentos, artes, sotaques, subjetividades e racionalidades diversas nos desarma de nossos preconceitos, e nos abre os olhos para quantos encantos estaríamos perdendo se nos víssemos privados desse edificante congraçamento. Numa grosseira comparação, seria como se tivéssemos que comer sempre a mesma comida, ver sempre o mesmo filme, ler o mesmo livro, escutar a mesma música... Ou ter sempre a mesma opinião.
Apesar dos conhecimentos e da sabedoria que já acumulamos ao longo de nossa história, ainda somos uma espécie muito jovem se pensarmos em escala de tempo de evolução do planeta Terra e da vida aqui encontrada, que se estende por bilhões de anos. O Homo sapiens tem apenas algumas dezenas de milhares de anos. Já somos capazes de destruir o planeta, mas ainda somos como adolescentes, não nos livramos de arraigados instintos primitivos de autopreservação da espécie, como a insegurança, a desconfiança, competitividade, agressividade e o segregacionismo de todo tipo.
Hoje o mundo está globalizado, a tecnologia e as facilidades de deslocamentos nos colocam em contato como nunca antes. Tal intercâmbio pressupõe que tenhamos maturidade e serenidade para saber interagir, respeitando e aprendendo com o diferente. Que sejamos capazes de tal interação, pacífica e compreensiva.

domingo, 8 de abril de 2018

Diferenciação, autopoiesis e comunhão

Publicado no Jornal da Manhã em 10/04/2018 e no Diário dos Campos em 20/04/2018

O livro O tao da libertação (Mark Hathaway e Leonardo Boff com prefácio de Fritjof Capra, Editora Vozes, 2012), no capítulo sobre cosmogênese, trata dos conceitos de diferenciação, autopoiesis e comunhão. Estes três conceitos parecem fundamentais nos dias de hoje em que no Brasil e no mundo constata-se retrocesso de valores civilizatórios e democráticos. Andamos confundindo estadistas, que se dedicam à justiça e inclusão social e à soberania frente a tirânicos poderes hegemônicos globais, com oportunistas, que se dedicam a satisfazer inconfessáveis ambições e atavismos pessoais, os quais muitas vezes incluem o serviço à tirania internacional ou à insânia pessoal. Estamos confundindo esclarecimento e entendimento com manipulação e ilusão. Estamos confundindo valores civilizatórios, tais como tolerância e solidariedade, com posturas que desagregam a sociedade, como segregação, intolerância e violência.
Segundo os autores do livro, o cosmos já nos mostra, numa macroescala, os significados dos três conceitos: diferenciação é o momento do big-bang, quando a energia concentrada num ponto expande-se e começa a diferenciar-se nos inúmeros mundos que conhecemos hoje; autopoiesis é a evolução dos mundos em suas singularidades, tal como a Terra, que por bilhões de anos tem evoluído para ter hoje as extraordinárias condições para dar suporte à vida como a conhecemos; comunhão é o colapso previsto pelos astrofísicos no chamado big-crunch, quando todo o universo voltará a contrair-se. O cosmos também viveria ciclos, ou “respiraria”, como noite e dia, verão e inverno, glaciais e interglaciais, expiração e inspiração, os batimentos cardíacos... Mas os conceitos também são aplicáveis à natureza humana, a como evoluímos como pessoas e como espécie.
Diferenciação seria então a nossa individuação, quando passamos a ter personalidade própria, e deixamos de ser gado tangível, ou massa de manobra. A rebeldia talvez seja o primeiro sinal da diferenciação, é bom que cuidemos de entender que um jovem rebelde mostra sinais de que está evoluindo para além da mesmice das massas amorfas, é bom que saibamos orientá-lo para avançar para os conceitos seguintes. A diferenciação, ou individuação, é essencial para que comecemos a ser capazes de refletir sobre as trocas que vivenciamos entre nosso interior e o exterior. Passamos a ser mais críticos, passamos a pensar, passamos a discernir.
Autopoiesis ou autopoesia é o passo seguinte. É a construção da poesia em si mesmo. Poesia no sentido de sensibilidade, reconhecimento e valorização do belo e do sublime, evolução da sabedoria e força interior, fortalecimento e  aperfeiçoamento do caráter alcançado na diferenciação. É quando construímos nossa identidade, nossa subjetividade, nos organizamos interiormente através de valores e condutas harmoniosas e edificantes.
Comunhão começa quando, com a maturação da autopoiesis, conseguimos sair de nós mesmos e estabelecemos a empatia com o que nos cerca, os outros seres humanos que são o nosso próximo, os outros seres vivos do planeta, o planeta que é nosso lar e nos supre tudo que necessitamos para viver. O início da comunhão nos torna mais tolerantes, mais compreensivos, mais generosos, mais responsáveis, conosco mesmo, com a diversidade de seres humanos tão desiguais com quem compartilhamos este momento na existência do planeta, com animais e plantas, com as águas, os solos, as florestas, o ar que respiramos... Tão quimérico quanto imaginar o big-crunch da cosmogênese, seria imaginar onde nos levará o clímax da comunhão. Talvez o congraçamento das almas numa única alma iluminada, como é a crença de algumas religiões orientais.
Deveríamos refletir sobre os conceitos de diferenciação, autopoiesis e comunhão. Quanto já conseguimos nos diferenciar, isto é, quanto já deixamos de ser como gado tangido? Quem estaria hoje a nos tanger? Talvez a grande mídia, talvez as fake-news que incorporamos e replicamos sem um mínimo de discernimento? Talvez simplesmente um consenso construído sabe-se lá por qual soma de agentes que têm o propósito de nos manipular?
E como anda a nossa autopoieisis, que poderíamos traduzir como a nossa educação, a nossa cultura, o cultivo de valores civilizatórios e generosos que nos ampliem e melhorem nossa visão de mundo e de humanidade?
Parece que estes três conceitos estão contidos nas mensagens que nos foram trazidas pelos grandes missionários das religiões do mundo. Cristo teria dito “amar ao próximo como a ti mesmo, e a Deus sobre todas as coisas”. É possível que não estejamos sabendo amar nem a nós mesmos, quanto mais ao próximo. Quanto a Deus, visto que mesmo os teólogos divergem sobre quem seja, podemos admitir que ele esteja manifesto na Natureza, no Universo. Está manifesto também nesta maravilhosa singularidade que é o planeta Terra. Como temos cuidado dela?