sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

O ó do borogodó – o x da questão atual

 Publicado no Jornal da Manhã em 31/01/2024.

A expressão popular “o ó do borogodó” tem sido usada com sentidos diferentes: ora como algo negativo, tal como a falta de humildade e empatia; ora como algo positivo, significando alguma qualidade superior, que diferencia seu portador. A controvérsia sobre o significado da expressão popular serve bem para refletirmos sobre outras controvérsias: quem está com a razão nos calorosos debates que temos visto sobre questões atuais, sejam ambientais, sociais, políticas, ideológicas...? Uma coisa é certa no significado do borogodó: o “ó” é crucial. Seja ele a causa da suposta qualidade positiva ou negativa da expressão.

A questão crucial talvez seja: o que a civilização atual ─ nós, os seres humanos ─ está fazendo com o planeta e com os outros seres humanos? A Terra é um milagre, que ainda não conseguimos enxergar como tal. Nossa sobrevivência depende, basicamente, de ar, água, alimento e encantamento. Temos então a atmosfera, que é renovada pelos organismos que produzem oxigênio; os mares, o sol e os ventos, que destilam e purificam a água e distribuem-na por toda a superfície do planeta; solos férteis, que também se renovam com o incessante intemperismo das rochas; as cores das estações, do mar, do arrebol, das matas, o luzeiro de estrelas do céu, que nos encantam e arrebatam com sua beleza e mistério.

Mas estas dádivas não nos bastam, não mais nos sensibilizam. Ainda não logramos discernir civilização de barbárie. O ano de 2024, dizem, será o ano das guerras, das ondas de refugiados, dos eventos climáticos extremos, da pandemia do novo vírus ainda mais mortal, da insegurança, da violência... O que aconteceu com o ser humano, que há pouco tempo, do ponto de vista evolutivo, conseguiu sair das cavernas e espalhar-se pelo mundo? Teve a engenhosidade de dominar o planeta, mas não consegue dominar em si mesmo o que ainda lhe resta de primitivos instintos de violência e dominação?

Talvez este seja o ó do borogodó da civilização atual: na natureza humana, apesar de todo o chamado “constructo social” ─ a aculturação ─, subsiste o instinto animal da agressividade e da dominação, responsável, junto com a engenhosidade, por termos superado todas as espécies concorrentes na face da Terra. Talvez só não consigamos superar os novos vírus mortais que venhamos a engendrar com nossa incúria.

Sem inimigos naturais a vencer, pois já vencemos todos, parecemos então lançar-nos a vencer e destruir o planeta e a dominar o outro da própria espécie, o nosso semelhante. As qualidades que foram a razão de nosso sucesso evolutivo tornam-se agora a ameaça de destruição da natureza que nos concede a vida, e da autodestruição da espécie. Esse parece ser o ó do borogodó: ou aprendemos a reconhecer e domar nosso egocêntrico instinto, ou nos autodestruiremos.

A evolução já nos concedeu os meios para controlar os instintos que estão nos conduzindo à extinção: já temos, a par da amoral inteligência que tudo pode inventar, alguma empatia, solidariedade, discernimento, moralidade. Mas estas qualidades, agora essenciais, parecem ser ainda suplantadas pelos instintos irracionais. Por esse motivo ainda insistimos em devastar a Amazônia, ameaçando transformar o Brasil num deserto. Apoiamos e elegemos governantes e parlamentares ignorantes, segregacionistas, corruptos, depredadores, falsos, clientelistas, fisiologistas, fantoches, e acreditamos na mídia mentirosa que ilude que eles são os melhores administradores. Louvamos a teologia da prosperidade, que atualizou a prática da venda de indulgências da Idade Média, e ludibria os pobres cada vez mais pobres, despojando-os dos bens materiais e das virtudes éticas e espirituais. Capitulamos perante o logro que o liberalismo, que na verdade só libera o egocentrismo que promove a escravização do trabalho e a vergonhosa concentração de riqueza, seja preferível a sistemas que procuram fomentar o bem-estar, a justiça social e o respeito à natureza.

Resumindo, ainda não conseguimos distinguir, dentre nossas escolhas, aquilo que nos conduz à civilização daquilo que nos leva à barbárie, ao retrocesso e autodestruição. Ainda não atinamos com o ó do borogodó do momento evolutivo da espécie humana.

quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

A censura e o simulacro de cultura

 Publicado no Diário dos Campos em 17/01/2024 e no Jornal da Manhã em 18/01/2024.

Cultura é o cultivo: tal como a humanidade depende de cultivar a terra para produzir o alimento do corpo, depende também de cultivar a mente e o espírito, para alimentar o caráter. Assim cultivamos ideias, identidades, valores autênticos, universais e duradouros. O lastro, o húmus da cultura, é a História: tudo aquilo que, desde tempos ancestrais, tem nos trazido ao que somos no presente. Os frutos da cultura são o porvir, a emancipação, prosperidade e plenitude dos povos e de cada ser humano. Cultura é educação para a civilização.

A censura é a discriminação de conteúdos do fazer humano, taxando-os ou de aprovados ou reprovados para divulgação e compartilhamento. Às vezes a censura baseia-se numa avaliação preliminar. Mas muitas vezes ela é só fruto de manipulações, preconceitos, intolerâncias: conteúdos são rotulados e condenados só por serem libertários, questionadores dos onipresentes opressores e suas regras.

A censura foi muito importante durante a ditadura militar no Brasil, de 1964 a 1985. Os jornais impressos traziam espaços em branco ou preenchidos com receitas culinárias, compositores consagrados tiveram que lançar suas canções sob pseudônimos, escritores e articulistas tinham de publicar anonimamente. Tanto compositores quanto escritores, bem como muitos jovens idealistas e inconformados, foram torturados e executados, ou tiveram que refugiar-se no exílio. Suas ideias eram censuradas e consideradas subversivas por falarem de liberdade, de independência e soberania frente à tirania das nações imperialistas, que cultivam a cizânia e o medo para subjugar suas colônias.

A censura também foi muito importante nos regimes totalitários, como no nazismo e no fascismo. Mas até hoje ainda promovem-se queimas de livros em nome da censura. Sob o pretexto de erradicar ideias tidas como perturbadoras do frágil equilíbrio social, condenam-se as ideias que questionam os métodos dos detentores do poder. Combinando-se censura e desinformação, perpetua-se então a ignorância e a tirania.

Nestes tempos de polarização ideológica, no Brasil e em todo o mundo, há quem creia que é necessário censurar o debate político, pois ele amiúde descamba para intrigas viscerais, regidas pela emoção e destempero, e não pela razão e equilíbrio. É preciso reconhecer que é verdade que ainda temos muito que aprender para travarmos debates que sejam sóbrios e construtivos. Mas evitar o debate não é o caminho para esse aprendizado. Talvez se justifique essa censura em grupos familiares, para evitar desavenças. Mas em grupos que têm justamente a intenção de incentivar a cultura e o esclarecimento, censurar significa justamente o contrário do que seja cultura.

Por outro lado, deixar de censurar não quer dizer total liberdade de compartilhamento de quaisquer conteúdos. Talvez a dificuldade maior seja justamente estabelecer o limite entre os conteúdos que contribuem para a cultura, e os que procuram conduzir-nos de volta à barbárie. Precisaríamos, então, debater o conceito de barbárie!

Questão complicada! Mas precisamos enfrentá-la, com sensatez e coragem. Escamoteá-la é alimentar a tirania e a barbárie. Temos que aprender a fazer o bom debate. Para isso, a principal qualidade de que carecemos é o discernimento.