Publicado no Jornal da Manhã em 31/01/2024.
A expressão popular “o ó do borogodó” tem
sido usada com sentidos diferentes: ora como algo negativo, tal como a falta de
humildade e empatia; ora como algo positivo, significando alguma qualidade
superior, que diferencia seu portador. A controvérsia sobre o significado da
expressão popular serve bem para refletirmos sobre outras controvérsias: quem
está com a razão nos calorosos debates que temos visto sobre questões atuais,
sejam ambientais, sociais, políticas, ideológicas...? Uma coisa é certa no
significado do borogodó: o “ó” é crucial. Seja ele a causa da suposta qualidade
positiva ou negativa da expressão.
A questão crucial talvez seja: o que a
civilização atual ─ nós, os seres humanos ─ está fazendo com o planeta e com os
outros seres humanos? A Terra é um milagre, que ainda não conseguimos enxergar
como tal. Nossa sobrevivência depende, basicamente, de ar, água, alimento e
encantamento. Temos então a atmosfera, que é renovada pelos organismos que
produzem oxigênio; os mares, o sol e os ventos, que destilam e purificam a água
e distribuem-na por toda a superfície do planeta; solos férteis, que também se
renovam com o incessante intemperismo das rochas; as cores das estações, do
mar, do arrebol, das matas, o luzeiro de estrelas do céu, que nos encantam e
arrebatam com sua beleza e mistério.
Mas estas dádivas não nos bastam, não mais
nos sensibilizam. Ainda não logramos discernir civilização de barbárie. O ano
de 2024, dizem, será o ano das guerras, das ondas de refugiados, dos eventos
climáticos extremos, da pandemia do novo vírus ainda mais mortal, da
insegurança, da violência... O que aconteceu com o ser humano, que há pouco
tempo, do ponto de vista evolutivo, conseguiu sair das cavernas e espalhar-se
pelo mundo? Teve a engenhosidade de dominar o planeta, mas não consegue dominar
em si mesmo o que ainda lhe resta de primitivos instintos de violência e
dominação?
Talvez este seja o ó do borogodó da
civilização atual: na natureza humana, apesar de todo o chamado “constructo
social” ─ a aculturação ─, subsiste o instinto animal da agressividade e da
dominação, responsável, junto com a engenhosidade, por termos superado todas as
espécies concorrentes na face da Terra. Talvez só não consigamos superar os
novos vírus mortais que venhamos a engendrar com nossa incúria.
Sem inimigos naturais a vencer, pois já
vencemos todos, parecemos então lançar-nos a vencer e destruir o planeta e a
dominar o outro da própria espécie, o nosso semelhante. As qualidades que foram
a razão de nosso sucesso evolutivo tornam-se agora a ameaça de destruição da
natureza que nos concede a vida, e da autodestruição da espécie. Esse parece
ser o ó do borogodó: ou aprendemos a reconhecer e domar nosso egocêntrico
instinto, ou nos autodestruiremos.
A evolução já nos concedeu os meios para
controlar os instintos que estão nos conduzindo à extinção: já temos, a par da
amoral inteligência que tudo pode inventar, alguma empatia, solidariedade,
discernimento, moralidade. Mas estas qualidades, agora essenciais, parecem ser
ainda suplantadas pelos instintos irracionais. Por esse motivo ainda insistimos
em devastar a Amazônia, ameaçando transformar o Brasil num deserto. Apoiamos e
elegemos governantes e parlamentares ignorantes, segregacionistas, corruptos,
depredadores, falsos, clientelistas, fisiologistas, fantoches, e acreditamos na
mídia mentirosa que ilude que eles são os melhores administradores. Louvamos a
teologia da prosperidade, que atualizou a prática da venda de indulgências da
Idade Média, e ludibria os pobres cada vez mais pobres, despojando-os dos bens
materiais e das virtudes éticas e espirituais. Capitulamos perante o logro que
o liberalismo, que na verdade só libera o egocentrismo que promove a escravização
do trabalho e a vergonhosa concentração de riqueza, seja preferível a sistemas
que procuram fomentar o bem-estar, a justiça social e o respeito à natureza.
Resumindo, ainda não conseguimos distinguir,
dentre nossas escolhas, aquilo que nos conduz à civilização daquilo que nos
leva à barbárie, ao retrocesso e autodestruição. Ainda não atinamos com o ó do
borogodó do momento evolutivo da espécie humana.
Concordo em gênero e grau com esse borogodó aí.
ResponderExcluirNão só esta, como todas as crônicas que produz, pela riqueza de conhecimento, pela maneira como relata, são o ó do borogodó. Leio todas e aprecio demais.
ResponderExcluirAmei!
ResponderExcluirPerfeito !!!! É isso mesmo.
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