sábado, 26 de agosto de 2023

Dia da sobrecarga da Terra – 2 de agosto de 2023

 Publicado no Jornal da Manhã em 14/09/2023.

O “dia da sobrecarga da Terra” (em inglês o “Earth Overshoot Day”, sigla EOD) é aquele dia do ano em curso em que o consumo de recursos naturais pela humanidade ultrapassa a capacidade do planeta de renová-los ao longo de todo aquele ano. Numa comparação grosseira, é como se fosse o salário sendo gasto ao longo do mês: se ele termina antes do fim do mês, e continuamos a gastar, vamos acumular saldo devedor. E teremos de pagar o débito no futuro, com juros. Como a Terra vai nos cobrar isso?

O cálculo do EOD é feito dividindo-se a capacidade de reposição dos recursos naturais renováveis ─ chamada “biocapacidade” ─ pelo consumo efetivo desses recursos pela humanidade ─ a chamada “pegada ecológica” ─ ao longo de um determinado ano, e multiplicando-se o resultado por 365 dias. Numa expressão matemática seria: biocapacidade mundial/pegada ecológica mundialx365. Esse cálculo tem sido feito por organizações internacionais não lucrativas, como a Global Footprint Network, a New Economics Foundation, a World Wildlife Fund e mais uma dezena de entidades envolvidas com estudos sobre a sustentabilidade no planeta.

A biocapacidade é a possibilidade de reproduzir recursos naturais consumidos pela população e a capacidade de reciclar/decompor resíduos. É um indicador da capacidade de regeneração do planeta frente à ação humana. É um conceito que envolve terras cultiváveis, pastagens, áreas de pesca, florestas, áreas urbanizadas, áreas de reservatórios artificiais e o tamanho da população que consome os recursos naturais e produz resíduos.

Visto que a biocapacidade tem sido cada vez menor e a pegada ecológica cada vez maior, o resultado do cálculo tem dado cada vez menos que 365. Neste ano de 2023, o resultado do cálculo deu 214. O que corresponde ao dia 2 de agosto passado. Ou seja, já ultrapassamos neste ano o consumo daquilo que o planeta Terra vai ser capaz de produzir ou renovar até o final do ano. Na comparação com o salário para durar 30 dias, é como se nosso saldo bancário estivesse já zerado no dia 18 do mês. A partir daí, entramos no vermelho. Vamos ter de contrair empréstimos a serem pagos no futuro, com juros.

EOD, biocapacidade, pegada ecológica são conceitos complicados, cuja validade pode gerar controvérsias. Mas, com certeza, ainda que sejam passíveis de aperfeiçoamentos, nos revelam verdades inquestionáveis. Os cálculos históricos indicam que até o final dos anos 1960 a biocapacidade compensava a pegada ecológica. Mas já no ano de 1970, o EOD foi o dia 30 de dezembro. Essa data crítica vem recuando desde então. No ano de 2000 foi no dia 22 de setembro. No ano de 2022, recuperação da pandemia, foi no dia 28 de julho. Em 2023, foi em 2 de agosto.

O constante recuo do EOD resulta do crescente consumismo de uma sociedade regida pelo capitalismo, cujo propósito é o lucro. O EOD é um dos alertas ambientais da insanidade dos rumos da civilização atual. A ele somam-se outros alertas ambientais, como o aquecimento global e os eventos climáticos extremos, e os alertas de degradação social, traduzida nas crises econômicas, guerras, multidões de refugiados, instabilidade política, totalitarismos, intolerâncias, miséria, criminalidade, concentração de renda, retrocesso cultural, religioso, moral...

Ou a humanidade compreende a dimensão ambiental, social e econômica do termo “sustentabilidade”, ou logo transformaremos a Terra num planeta insustentável. Quer dizer, inabitável por humanos.

sábado, 19 de agosto de 2023

Apagão de nacionalismo

 Publicado no Jornal da Manhã em 26/08/2023.

O apagão que tumultuou o Brasil no dia 15 de agosto último foi muito revelador. Até o dia seguinte as autoridades ainda não conseguiam ─ ou ainda não ousavam ─ revelar as causas. Mas admitiam que o sistema brasileiro é interligado, e que o problema num determinado local pode originar um efeito dominó de consequências nacionais. E também admitiam que as causas poderiam ser devidas a “falha humana ou até dolo”. Ou seja, não sabiam dizer se poderia ter sido um acidente ou uma sabotagem, algo premeditado.

Este apagão não poderia ter vindo em hora mais adequada para uma advertência: na véspera, o governo do Paraná vendia a antes estatal Copel ─ Companhia Paranaense de Energia ─ na bolsa de valores de São Paulo. Antes, a Eletrobrás já fora privatizada, em 2022. E, num sistema integrado como reconhecem as autoridades, onde um colapso localizado pode estender-se nacionalmente, as empresas de energia estaduais assumem a mesma importância estratégica da nacional. O possível dolo, ou seja, a possibilidade de uma sabotagem, aventado pelas autoridades, pode ter origem numa estadual, ou na nacional.

No Brasil ainda não aprendemos que o mundo vive um momento de conflitos e disputas que não dispensam as sabotagens? Que não é improvável que o apagão tenha de fato resultado de uma sabotagem? E que o sistema energético do país é de importância vital, e que seu colapso desencadearia o caos e a absoluta vulnerabilidade? E que hoje, no mundo, nações agem como as aves de rapina que são seus símbolos, debilitando suas presas para depois predá-las impiedosamente?

Energia, água, alimentos, combustíveis, transporte coletivo, saneamento, comunicações, saúde, educação, pesquisa científica, moradia... são setores vitais para um país que deseja tornar-se soberano, próspero e inclusivo. Setores que devem estar controlados por interesses nacionais, e não pelo volúvel e ambicioso interesse de empresas privadas. A razão de ser das privadas é o lucro. Doa a quem doer. A razão de ser das empresas estatais é, em princípio, a autonomia, o benefício coletivo, a independência. Embora as estatais estejam sob ataque constante daqueles que querem sucateá-las, depreciá-las e então privatizá-las, para o lucro e benefício de poucos vis apaniguados.

Essa é a diferença entre governos e políticas públicas socializantes versus privatizantes. É a diferença entre o socialismo e o neoliberalismo. Este último propugna o “estado mínimo”, alegando que o mercado é autorregulável, e que a estatização só atrapalha e atrasa. Que argumento tão enganador! A prática tem mostrado, no mundo todo, que a privatização dos setores estratégicos só traz prejuízos e retrocesso para as nações e suas populações. Quem ganha são aqueles poucos acionistas que já estão locupletados, mas nunca lhes basta a riqueza, nada consegue saciar sua sanha. Privatizações de setores estratégicos têm sido revertidas em reestatizações nos países que experimentaram os erros de acreditar na mentira da autorregulação do mercado.

Privatizar setores estratégicos, como é o caso da energia, é entregar o país à sanha da vampiragem transnacional.

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Os gols que o Brasil tem perdido

 

O primeiro que me impactou muito, foi o gol que o Santos – meu time do coração – perdeu contra o Barcelona, na final do mundial de clubes de 2011. O time catalão dominava a contenda, punha o Peixe na roda. Mas não conseguia infiltrar-se na área, não conseguia finalizar. A defesa do Santos estava muito bem plantada. O placar ainda 0X0. Até que o Santos conseguiu um contra-ataque fulminante, rápido. Neymar pelo meio avançava com a bola, mas à frente dois zagueiros do Barça o bloqueavam. Correndo ao lado de Neymar, livre, ia o lateral Danilo, na entrada da área catalã. Mas Neymar quis passar no meio dos dois adversários. Tomaram-lhe a bola! E na continuidade do jogo, o Santos, envolvido pelo talentoso e entrosadíssimo Barcelona, acabou perdendo por 4X0. Teria sido diferente se tivesse feito o primeiro gol.

O segundo, que me lembrou muito aquele de 2011, foi neste 29 de julho de 2023, no jogo do campeonato mundial feminino de seleções, França versus Brasil. Estava 1X1, após o Brasil ter iniciado o jogo perdendo. Então, outro contra-ataque fulminante, muito parecido com aquele de 2011. Debinha com duas zagueiras francesas à sua frente, na entrada da área, a seu lado uma jogadora brasileira livre – não me lembro quem era. Mas Debinha quis passar pelo meio das duas adversárias, para fazer seu segundo gol na partida. Tomaram-lhe a bola! E o Brasil acabou perdendo, por 2X1. E depois, no 0X0 contra a Jamaica, foi desclassificado. Não teria sido, se tivesse empatado com a França.

Se há duas coisas que atualmente distinguem o melhor futebol do mundo deste que se tem praticado no Brasil, são o espírito coletivo acima da vaidade pessoal, e a rapidez e acerto da decisão, acima dos vícios da lentidão e do desnecessário drible a mais, que parece só querer humilhar o adversário. Os melhores do mundo hoje, inclusive os hermanos e as hermanas da América do Sul, já nos ultrapassaram nestes dois atributos, essenciais para o bom futebol.

O que há conosco, que não conseguimos praticar o futebol solidário e objetivo que os melhores têm praticado? E que já praticamos um dia? Talvez o futebol seja uma manifestação do sentimento de nação. Quantos talentos, e quantas benesses, temos desperdiçado, e quantos gols temos perdido? Perdas que nos perpetuam como a grande nação do futuro nunca alcançado?

Solidariedade, garra e acerto/objetividade nas decisões não são atributos que têm faltado somente ao nosso futebol. Talvez os esportes só estejam refletindo o que está acontecendo com o país, com sua população. Isso explicaria como fomos capazes de acolher, pelo voto universal, o surto de totalitarismo e obscurantismo que está grassando pelo mundo todo, mas que entre nós veio com demência inusitada. O retrocesso civilizatório que vimos no Brasil está se refletindo no futebol, e também noutros esportes. O individualismo e a vaidade superaram a solidariedade e a causa coletiva. O desvario, a negligência e o erro superaram o zelo e a diligência.

Apesar da extraordinária mudança de rumo nas últimas eleições, ainda temos tido exemplos demais que nos fazem desacreditar do Brasil, e nos impelem ao individualismo e ao descaso. Os estoicos exemplos de apreço e amor pelo país, e pela riqueza cultural e moral de seu povo, acabam soterrados pelos exemplos de iniquidade, improbidade e demência. E estes últimos parecem ser incansavelmente incensados por uma mídia insidiosa, que visa justamente nos desacreditar dos nossos valores, talentos, e de um futuro de generosa prosperidade.

Se não quisermos nos submeter a uma nova forma de escravidão, temos de recuperar nossa identidade, e resgatar os talentos que nos distinguem. É reaprender a sermos solidários e termos garra na busca das conquistas que representam avanço coletivo. Quer dizer, avanço civilizatório. Então também voltaremos a praticar o melhor futebol do mundo.