sábado, 26 de dezembro de 2015

O maestro da Av. Carlos Cavalcanti

          Não sei bem se lhe cabe o título de maestro, pois o que ele rege é uma desproporcional caixa de som tonitruante que ele carrega atada ao bagageiro de sua surrada bicicleta. Também não sei se está certo dizer que ele seja da Av. Carlos Cavalcanti, porque embora nossos caminhos sempre se cruzem por lá, é bem provável que ele percorra com sua insólita sonoridade outros lugares da cidade, e é bem possível que o leitor o conheça de outras plagas.

          E, a bem da verdade, também não sei se lhe cabe o artigo definido ‘o’. Talvez seja mais acertado dizer que se trata de mais um dos vários maestros daquela avenida, pois que já encontrei muitos outros. Mas estes outros são figuras menos extravagantes, regem seus ruídos, não sei bem se poderia chamá-los de músicas, em veículos equipados com potentes alto-falantes no volume máximo, as janelas escancaradas, e aquele tum-tum-tum monocórdio que faz vibrar os quarteirões próximos. Um incivilizado extravasamento de um ainda animalesco instinto egocêntrico?

          Mas voltemos ao nosso singular ciclista da Carlos Cavalcanti. Trata-se de um jovem já perto da meia idade, magro mas de estatura acima da mediana, trajado com roupas básicas de quem ganha a vida com o suor do trabalho e vive de jeito muito simples. Encontro-o sempre vindo no sentido do centro da cidade, ele mora para os lados de Uvaranas. E sempre antes das oito horas da manhã, tudo indica que ele seja um modesto trabalhador a caminho do trabalho.

          O ruído a título de música produzido pela avantajada caixa de som de sua bicicleta não pode ser considerado agradável aos ouvidos. Duvido que possa ser considerado agradável até mesmo pelo nosso excêntrico maestro pedaleiro. Então o que o faria exercer essa bizarra regência, espalhando ruidosa sonoridade pelo caminho? Estaria a anunciar-se ao mundo, e assim procurando encontrar alguma atenção, algum reconhecimento, que a vida lhe nega? Seria seu suposto exibicionismo uma tímida compensação da invisibilidade que imputamos às pessoas simples?

          E lembremo-nos que, aos humildes trabalhadores que não têm outra alternativa que não seja usar suas velhas bicicletas no percurso para o trabalho, fazemo-los tão invisíveis numa via nervosa como o é a Carlos Cavalcanti que frequentemente eles são atropelados. Seria esta a razão de ser do nosso maestro? Estaria ele prudentemente se fazendo anunciar por uma questão de segurança, de sobrevivência? Ou haveria ainda algum tipo de impensada desforra, tipo “vocês não me veem, mas são obrigados a me escutar”? Ou seriam ainda meus preconceituosos ouvidos que não sabem apreciar o som que nosso maestro generosamente espalha com a intenção de saudar a azáfama do início de manhã dos ouvintes?

          É possível que nem mesmo o nosso regente saiba ao certo qual a razão da excentricidade que o diferencia e o torna único. E os outros maestros do trânsito, aqueles que às vezes nos acordam nas horas do nosso sono da madrugada, passam com seus vibrantes tum-tum-tum reverberando todo o quarteirão, quais motivos os moveriam? E, se formos bem honestos, todos nós temos lá nossas excêntricas idiossincrasias, que nos fazem únicos. De que maneira as praticamos no dia a dia?


          Nesta busca pela identidade, torço para que nos encontremos nos seres ímpares que somos, sem que para tanto tenhamos que impor bizarrias aos tantos outros que compartilham conosco o afã do aglomerado urbano. Já pensaram, e se cada um resolvesse andar por aí com uma tremenda caixa de som reverberando os cérebros?

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Impeachment ou golpe?

          Que momento surrealista vive nosso país! Assistimos de um lado os congressistas divididos, se apóiam ou não o pedido de cassação do presidente da câmara federal, alvo de várias denúncias de corrupção e improbidade. Este, terceiro homem na sucessão presidencial, em represália exerce o poder de desencadear processo de impeachment contra a presidenta, também por supostas denúncias de corrupção. Os parlamentares de oposição à presidenta querem que o processo de impeachment seja moroso, para dar tempo de mobilizar as massas. Julgam necessário percurso ao contrário daquele que cassou Collor, quando o impeachment nasceu nas ruas e contagiou o congresso. Agora, seria necessário tempo para ele sair do congresso e contagiar as massas nas ruas. E nesse meio tempo, alguns empresários e dignidades do país apelam por um processo rápido, pois o prolongamento da crise política seria um desastre para a já combalida economia do país.

          Vamos refletir um pouco sobre este quadro. Primeiro, perguntemo-nos qual seria o propósito destes dois protagonistas do momento, a presidenta do país e o presidente da câmara. Qual a história de vida dos dois, quais as acusações que pesam sobre cada um deles, em nome de quais ideais dedicam suas vidas? Aqui uma dificuldade, discernir entre fatos e factoides, estes últimos quase sempre criados para esconder os primeiros. Entre os factoides, aquele que circulou pouco antes da eleição da presidenta, de que ela seria assassina do tempo de militância contra o regime militar no Brasil. Só depois os fatos apareceram, ela não foi assassina, mas foi um dos muitos jovens idealistas, corajosos e inconformados com um regime ditatorial, este sim criminoso. Sobre as mentiras que movem as massas, é bom lembrar também o estouro do cárcere de Abílio Diniz na véspera da eleição de Collor. Os sequestradores, mostrados em cadeia de TV, vestiam camisas do PT. Só muito depois se revelou que as camisas tinham sido vestidas à força pelos agentes. Mas tudo isto esquecemos, uma característica nossa é a débil memória, assim como é débil o nosso discernimento.

          Qual é o propósito, a razão de vida dos nossos dois protagonistas do momento? O presidente da câmara, sua história parece apontar que seja alguém empenhado em ter poder pessoal, eivado de atos de truculência, e altos valores em contas bancárias na Suíça não declaradas. E a presidenta do país? Os pecados que lhe imputam são de cegueira com atos de corrupção na Petrobras e no governo e uma obstinada defesa e identidade com o PT, esse partido que a grande mídia oligárquica está demonizando no Brasil, como pelo mundo se demoniza o islamismo. Ora, brasileiros, vamos ter um mínimo de dignidade, e reconhecer que sistemas corruptos são a alma do país. Em tudo, e há muito tempo, as propinas, os subornos, os superfaturamentos, as gorjetas e as caixas-dois estão presentes. Ou não é assim? E esta é uma sangria que drena as riquezas e a moral do país, mas precisamos enfrentá-la com firmeza, e não com hipocrisia. Ou vamos acreditar que os responsáveis são os bodes expiatórios que a mídia tenta nos imputar? A mesma mídia que transmitiu ao vivo e em cadeia nacional os sequestradores do Abílio Diniz com as camisetas do PT?

          E qual o propósito da presidenta? Ora, pois a meu ver, não existe propósito mais nobre num ser humano que ter a coragem de dedicar sua vida em prol de causas em favor da liberdade, como na época da ditadura militar, colocando em risco a própria vida. E não existe propósito mais nobre que dedicar-se à busca da justiça social e da soberania, que é a busca de um partido de trabalhadores, surgido de lutas sindicais. E para tanto ter que sofrer o ataque e o desgaste de todas as forças reacionárias empenhadas em manter nossa sociedade dividida entre privilegiados e explorados.

          Que tremenda diferença entre nossos dois grandes protagonistas do momento! E o papel dos políticos de oposição, das massas e da grande mídia oligárquica? A oposição tem declarado que quer levar o impeachment do congresso (onde ele não vingaria sob o abrigo da lei) para as ruas. A mídia certamente empenhar-se-á em convencer as massas de que a presidenta é culpada de estar cercada por improbidades e de pertencer ao partido dos trabalhadores. E as massas? Terão as massas brasileiras alcançado algum grau de discernimento, terão superado sua débil memória, terão alcançado alguma confiança na capacidade de agir em prol da transformação de nossa perversa sociedade noutra mais justa, ética e humanizada?

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Estória da criação

Fala realizada no I Seminário de Pesquisas do Parque Nacional dos Campos Gerais e da Reserva Biológica das Araucárias, Fundação Boticário e ICMBio, Ponta Grossa, 19/11/2015

          Conta-se que quando da criação do mundo, o Criador, secundado por seu fiel ajudante principal (os Católicos diriam que era São Pedro), estava finalizando a distribuição das riquezas e privilégios sobre o planeta Terra. O ajudante perguntava:

          ¾  Mestre, onde devo colocar as maiores acumulações de minérios estratégicos e minérios essenciais para o futuro desenvolvimento tecnológico da Humanidade?

          O Criador refletiu um pouco, coçou o queixo, a cabeça, e disse:

          ¾  Coloque lá naquele grande país da América do Sul, que vai se chamar Brasil.

          ¾  E onde coloco os maiores mananciais de água doce do planeta?

          Depois de uma hesitação mais rápida, o Criador respondeu:

          ¾  No Brasil!

          E Pedro (vamos aqui assumir o ponto de vista católico, que fosse Pedro o ajudante) ia anotando em sua prancheta luminosa.

          ¾  E as maiores florestas do planeta?

          Agora já quase sem hesitação, o Criador responde firme e prontamente:

          ¾  No Brasil!

          ¾  E as maiores extensões de solos férteis adequados para o plantio e a criação?

          ¾  No Brasil!

          ¾  E a mais rica biodiversidade do planeta?

          ¾  No Brasil!

          ¾  E as plantas nativas mais generosas, dóceis e resistentes, capazes de produzir grãos e raízes para o fabrico de farinhas, pães, bolos, amidos, polvilhos e tudo que seja necessário para alimentar os humanos e suas criações?

          ¾  Põe lá no Brasil!

          ¾  E árvores frutíferas nativas invulgares e deliciosas, que dão geléias, compotas, doces, bebidas inigualáveis?

          ¾  No Brasil!

          ¾  E a maior incidência da luz do sol, que um dia poderá ser transformada em fonte de energia limpa e renovável?

          ¾  No Brasil!

          ¾  E milhares de quilômetros de praias maravilhosas, que além de satisfazer a necessidade de deleite e fantasia das pessoas, é uma fonte inesgotável de recursos pesqueiros?

          ¾  No Brasil!

          ¾  E grandes campos petrolíferos estratégicos, que só poderão vir a ser explorados quando a energia começar a escassear no mundo?

          ¾  No Brasil!

          ¾  E onde deixaremos grandes extensões de terra livres de terremotos, tsunamis, vulcões, furacões, desertos e pragas naturais?

          ¾  No Brasil!

          A esta altura Pedro já se inquietava de tantas vezes que a palavra Brasil aparecia em sua prancheta luminosa. Mas ainda continuou as perguntas:

          ¾  E onde colocaremos paisagens maravilhosas, além das praias, montanhas, pantanais, chapadas, escarpados, grandes rios, cachoeiras, cavernas, para o regalo e reverência do povo?

          ¾  No Brasil!

          Pedro, então, tomado de um impulso de justiça para com a humanidade, exclamou revoltado:

          ¾  Mas Mestre, não são benesses demais para uma única região, um único país do mundo?

          O Criador, com muita calma, e um brilho de astúcia no olhar, responde:

          ¾  Calma, Pedro, calma. Ainda não terminamos a criação. A Terra vai ser um planeta de aprendizado pelo erro. Você vai ver as pessoas que vamos pôr lá!

***

         Três observações sobre esta estória:

         - o que vale para o planeta Terra parece valer também para a região dos Campos Gerais;

         - escutei-a pela primeira  vez (uma versão antiga) faz uns cinquenta anos, portanto naquela época já se tinha a percepção que as pessoas, com seus erros colossais, eram capazes de compensar tantas benesses naturais do Brasil; não são as pessoas dos tempos atuais que iniciaram os nossos muitos erros;

         - dizem que esta estória é uma desforra, inventada pelos portugueses ou pelos argentinos.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

A vida: essa escola implacável

Publicado no Diário dos Campos em 17 de novembro de 2015.

          Com o passar dos anos, cada vez mais me convenço de que a vida é mesmo uma escola implacável, que nos cobra exemplarmente os nossos erros, e sobre eles persiste até que demos mostra de algum aprendizado. Para usar exemplos bem próximos, vamos falar do humilhante 7X1 para a seleção da Alemanha na copa de 2014, do atentado ao Charlie Hebdo na França no começo deste ano e dos bárbaros atentados dos últimos dias naquele mesmo país.

          O futebol é a paixão nacional, e um forte elemento na construção da identidade do povo brasileiro. Através dele o brasileiro mostrou ser capaz de vencer, e foi deixando para trás o complexo de vira-lata que o assolava. Foi um grande empenho de muita gente trazer para o país a copa de 2014. Uma chance de redimir-se da tragédia histórica do “maracanazo”, a derrota de 1950 para o Uruguai de Ghiggia. E então, às vésperas da copa de 2014, orquestrou-se um incompreensível coro “fora copa”. E na abertura do mais global dos eventos esportivos, o único que literalmente para o planeta, até suas guerras e acirradas disputas ideológicas, perpetrou-se o ato de supremo desrespeito, a presidenta foi vaiada e ofendida. A vida logo tratou de admoestar os rebeldes: foi imputado ao país um vergonhoso e histórico 7X1 perante a Alemanha, reforçado ainda pelo 3X0 frente à Holanda. Passamos a ser uma vergonha naquilo em que já fomos um orgulho.

          No início deste ano, o bárbaro atentado à revista Charlie Hebdo. Bárbaro e injustificável, sem dúvida, mas alegaram os seus autores que faziam justiça às ofensas publicadas pela revista aos ícones do islamismo. Será que teriam sido os ofendidos que teriam perdido a medida das retaliações justificáveis, ou teria sido a ofensora, a revista, que teria perdido a medida das ofensas? E agora os ainda mais bárbaros atentados, supostamente em retaliação às posições da França perante o Estado Islâmico e à acossada população árabe residente no país de Le Pen. Nestes dois casos, parece-nos também que a vida anda a procurar mostrar sua lógica implacável: o fanatismo de uns faz com que se tornem perseguidos e combatidos por boa parte do mundo ocidental, a incompreensão, a intolerância e a ofensa de outros fazem com que sejam alvo do ódio dos primeiros.

          Mas estes exemplos nos conduzem ao Brasil de hoje. O país ainda pode ser considerado, perante estas tragédias que vão pelo mundo, uma terra de tolerância e convivência pacífica. Talvez herança de um povo que resulta da miscigenação de raças. Mas é bom ficar alerta, pois parece que também por aqui a incompreensão e a intolerância têm sido fomentadas, até os extremos do ódio explosivo. Se não existem entre nós os ódios raciais, culturais, religiosos que existem em outras partes do mundo, parece estar sendo cultivado entre nós o ódio ideológico.


          Aqueles que estão fomentando tal ódio ideológico entre nós teriam para tanto muitas razões. Receio principalmente a que talvez seja a principal e mais escondida delas, e que não é doméstica: se o país não estiver dividido por algum tipo de ódio e intolerância interna, ameaça ascender à grande nação que tem potencial de ser. E isso assusta o arranjo mundial de poder, que não deseja novos concorrentes. Mas os fomentadores do ódio e os que se deixam por ele levar não perdem por esperar: logo a vida exercerá seu implacável poder de correção. A menos que aprendamos antes.

domingo, 25 de outubro de 2015

Psicanálise da sociedade brasileira


Publicado no Diário dos Campos em 26/04/2015

          Quando era ainda bem jovem, li o livro Psicanálise da sociedade contemporânea, de Erich Fromm. Lembro que o livro me marcou profundamente, fez-me rever toda a visão de mundo e de mim mesmo que tinha à época. Mas, confesso, salvo que ele promoveu essas grandes transformações pessoais, pouco me lembro com precisão do conteúdo do livro.

          Mas atualmente ocorre-me a urgência de pensarmos a psicanálise da sociedade brasileira. Sabemos do arraigado hábito de o brasileiro culpar o governo por tudo o que anda de errado e nos incomoda. Diriam os psicanalistas que este é um inescapável estratagema do indivíduo para autoproteger-se; se nos vemos impotentes perante uma situação indesejável, ou perante a necessidade de uma transformação imperativa da qual não somos capazes, ao invés de culparmos a nós mesmos por essa impotência, culpamos alguém fora de nós, projetamos a culpa, e assim nos livramos de nos destroçarmos em autocensuras e derrotismos.

          E quem culpamos fora de nós? Ora, o governo, claro. Tudo o que vai mal em nossa sociedade é culpa do governo e dos políticos. Pelo menos era assim até algum tempo atrás. O governo era então quase que um ente impessoal, como o “mercado” hoje, outro ente impessoal que parece ditar regras surrealistas a que temos que nos submeter.

          Mas o governo hoje já não soa mais impessoal. Ele ganhou personificação, na presidente em exercício e no seu partido político. Mas convém lembrar que esta personificação atual, que antes não existia, é fruto de um colossal trabalho de manipulação midiática. A grande mídia trabalha, ou melhor, manipula incessantemente para que, perante nossa insatisfação e impotência de superar os atavismos de nós mesmos e de nossa sociedade, culpemos a presidente e seu partido. E nos últimos anos estamos culpando também a Petrobras, a maior empresa do país, e uma das maiores ameaças ao cartel internacional que controla a principal fonte de energia do planeta.

          Mas por qual motivo a grande mídia estaria exercendo esse implacável trabalho de convencimento do cidadão de que as causas externas de seus males são a presidente, o seu partido, a Petrobras? Bem, para começar a tentar responder a esta pergunta seria necessário muito mais que o espaço disponível nesta coluna que o jornal franqueia ao leitor. Seria necessário que o cidadão concordasse em fazer sua psicanálise, e assumisse a postura de protagonista de sua vida, deixasse de ser um protagonizado, um manipulado. Isto implicaria dedicarmo-nos a observar e reconhecer nossos próprios atavismos, sem nos destruirmos pela culpa. E encetarmos a tarefa de nos transformarmos, e transformarmos a doentia sociedade que construímos, que vivemos.

          Alguns sociólogos e filósofos atuais têm afirmado que o cidadão médio não está disposto a esta tarefa. Prefere a alienação e a ilusão de culpar o governo, a presidenta, o seu partido, a Petrobras. A grande mídia, e os interesses oligárquicos que ela personifica, fica bem satisfeita com sua eficácia. O cidadão comum revolta-se, enraivece contra estes culpados exteriores. Eles poderão até mudar, mas o cidadão não muda, a sociedade não muda, as oligarquias não mudam.

“Nós, os répteis...”

Publicado no Diário dos Campos em 28/03/2015.

          O bizarro início de frase acima foi proferido no ano de 1973, por um professor de Paleontologia durante uma aula do curso de Geologia da USP. Obviamente, tratou-se de um ato falho do já falecido professor, que teria pretendido dizer “nós, os mamíferos...”. Pela sua naturalidade e picardia, a frase tornou-se um mote do curso de Geologia à época: apareceu estampada em camisetas, foi pichada em muros da universidade, foi impressa no jornal do centro acadêmico e era pronunciada amiúde, sempre que se pretendia ressaltar incoerências e contradições praticadas por qualquer um de nós, humanos. Mamíferos ou répteis?
          Mas quanto presságio poderia estar contido naquela aparentemente desastrada e risível frase! Pois após ela ter sido proferida alguns fatos nos levam a refletir sobre o quanto ainda somos répteis.
          Os antropólogos e neurocientistas enfatizam que o Homo sapiens tem três cérebros: o mais antigo e primitivo, o cérebro reptiliano, é herdado dos répteis, e é responsável por nossos comportamentos instintivos, sobretudo o instinto de sobrevivência, que nos faz desconfiados, intolerantes, agressivos, competitivos, individualistas, ambiciosos; depois, há cerca de 230 milhões de anos, apareceu com os mamíferos o cérebro límbico, responsável por emoções que facultavam às mães a capacidade de cuidarem de suas crias até que elas pudessem enfrentar por si mesmas as agruras da vida; por último, há cerca de cinco milhões de anos, apareceu o cérebro neocortical, responsável pela capacidade de discernir, de estabelecer relações e previsões, enfim, de raciocinar.
          Apesar dos inegáveis avanços da civilização atual, a par do conhecimento e da tecnologia talvez nunca tenhamos sido tão consumistas, tão competitivos, tão individualistas e tão condicionados por reflexos instintivos e agressivos. Alguns exemplos? As maiores indústrias do mundo hoje são a da guerra e a do petróleo, esta para mover as máquinas de guerra. Outro exemplo? A corrida aos postos de combustível do Brasil no mês de fevereiro passado, quando a mídia alardeou um desabastecimento que nunca ocorreu. Ou seja, parece que estamos numa época de conduta reptiliana, ocasionalmente associada com o cérebro neocortical. E abandonamos temporariamente o cérebro límbico, que nos permitiu o zelo, a solidariedade, a compreensão, a tolerância, o discernimento.
          Então, estaríamos nós, atualmente, nos comportando mais como os répteis, e fazendo jus à despretensiosa frase do desatento professor de Paleontologia? As intolerâncias e irracionalidades dos dias atuais parecem nos dizer que sim. Pois vivemos ao mesmo tempo a civilização da informação, do consumismo, da manipulação e da farsa. O colossal volume de informação que está a nosso alcance parece visar, sobretudo, fazer-nos consumir. A mídia cumpre seu papel nesse arranjo, empenhando-se em convencer-nos da felicidade contida no consumo, seja de produtos, de comportamentos e ideologias clichês. E nunca antes fomos tão hipócritas, fazendo de conta que somos felizes e tudo vai bem, enquanto cresce a criminalidade, a violência, a corrupção, a intolerância, a ignorância, a incivilidade, a arrogância, a omissão, a conivência. Não respeitamos, não discernimos, preferimos seguir um consenso artificial que nos é sutil, mas implacavelmente imputado.
          E o que é pior, como poderíamos diminuir os arroubos de nosso cérebro reptiliano em nome de mais expressão dos nossos cérebros límbico e neocortical? E cuidando para que estes estejam em harmonia, pois a sensatez depende do equilíbrio da emoção com a razão? Talvez isso fosse possível por meio da educação, da cultura, das artes, da ética inspirada na espiritualidade. Então, e como andam estes temas no mundo atual?
          Afinal, nós, os répteis, ou os mamíferos Homo sapiens? Prefiro crer que estejamos só num lapso de animalidade, talvez um lampejo de nossos distantes ancestrais escamosos. Mas a afetuosidade e a racionalidade hão de preponderar sobre o egoísmo reptiliano. Lembrem-se, no tempo dos répteis, as fêmeas deixavam os ovos a serem chocados pelo sol, enquanto elas mesmas iam alimentar-se dos ovos de suas vizinhas. E as vizinhas, onde andavam?

O alerta de Ruanda: progresso ou genocídio?


Publicado no Diário dos Campos em 30/07/2013         

Durante cerca de três meses ao longo do ano de 1994, perpetrou-se um dos maiores genocídios da história em Ruanda, país independente desde 1962, antes dominado pela Bélgica por mais de 50 anos. Estima-se que o genocídio conte cerca de 800 mil vítimas. Ele resultou do ódio entre duas etnias, a maioria hutu e a minoria tutsi. Esta última antes ocupava os cargos de liderança do país, e foi a maior vítima do hediondo massacre.

          Em seu livro E se Obama fosse africano? o escritor e biólogo moçambicano Mia Couto nos alerta que aquele foi o massacre da história em que se matou mais gente em menos tempo, e que antes de 1994 um hutu ou um tutsi, se perguntado, declararia que um tal massacre seria inimaginável. O autor africano conclui que “a capacidade de produzir demónios é ainda muito grande em nossos países.”

          Refletindo sobre a pessoa humana e comparando o genocídio de Ruanda com outros recentes, no Vietnã, no Iraque, no Zimbábue, Mia Couto assevera que elites criminosas foram capazes de manipular comunidades que antes conviviam em harmonia, lançando-as no ódio.

          Será que estes alertas são aplicáveis ao Brasil e à América do Sul, que guardam amargas diferenças e semelhanças com África e Ásia? Talvez tenhamos que pensar mais sobre estas coisas. O Brasil, por exemplo, já foi exaltado por ser um país pacífico, cheio de recursos naturais, com uma harmonia religiosa e linguística que o elevam à suposta condição de uma nação de futuro muito promissor. Então, qual a razão de nos desesperarmos de ver este futuro tantas vezes anunciado sempre ser adiado?

          Devemos nos perguntar se por aqui não andamos a sofrer dos mesmos males cultivados pelos colonizadores alhures, que há séculos praticam o aforismo “dividir para governar”. Pois não é isto que estamos constatando quando vemos os rumos que estão tomando as manifestações dos brasileiros que têm ido às ruas clamando por mais democracia e mais ética? Se no início essas manifestações pareciam espontâneas e legítimas, os vandalismos tão enfatizados pela grande mídia estão a tirar-lhes a autenticidade. Foi com muita apreensão que li o significativo relato de uma grande manifestação em São Paulo, iniciada no bairro de Pinheiros, e que, manipulada, originou marchas para três destinos distintos. E este foi só um entre muitos exemplos de manipulação.

          Também espanta o ambíguo poder das redes sociais. Por um lado, elas conseguem organizar grandes manifestações à revelia dos meios formais de comunicação. Por outro lado, por elas transitam grotescos materiais apócrifos e caluniosos incitando à emotividade, à irracionalidade, à segregação, à intolerância. Enfim, incitando à divisão e ao sectarismo, ao ódio ao diverso, seja ele a classe social ou econômica, o partido político, a ideologia, o gênero, a cor da pele, o estado ou região de origem, a crença ou até o time de futebol!

          Será que o Brasil, e toda a América do Sul, estão sendo também vítimas de deliberados esforços de “dividir para governar”, perpetrados não mais pelos colonizadores dos séculos passados, mas pelos novos colonizadores menos identificáveis deste século XXI?

          É muito recomendável que nos façamos esta pergunta. Ao menos para que procuremos ser mais sensatos e menos virulentamente irracionais. E sejamos mais respeitosos com aquilo que há a respeitar na nossa jovem e incipiente democracia. Ou será que já nos tornamos incapazes de reconhecer que, independente dos erros de líderes e seus partidos políticos, temos conquistado importantes avanços em nosso país? Há que saber discernir entre os erros a corrigir e os acertos a preservar e aprofundar.

          O próprio Mia Couto dá-nos alguns conselhos: primeiro, passar por nossas mentes alguns “antivírus” de bom-senso, para livrar-nos dos maliciosos hóspedes da intolerância que têm sido implantados via insidiosa propaganda; segundo, é preciso “pensar”, no sentido original da palavra, que quer dizer “curar” ou “tratar” um ferimento, de modo que escapemos das prisões do pensamento viciado e sejamos capazes de praticar a saudável “inquietação crítica”.

Antissemitismo e antipetismo

Publicado no Diário dos Campos em 29/10/2015

         Surpreendo-me de ver na Universidade, entre professores, alunos, funcionários, uma situação que me parece paradoxal. Por um lado, tornou-se politicamente correto, ou politicamente obrigatório, manifestar-se contra todo tipo de discriminação: os afrodescendentes, os indígenas, os oriundos de escolas públicas, os LGBTs, os imigrantes... Por outro lado, nunca vi tanta discriminação contra um partido político, o PT, e seus expoentes, o ex-presidente Lula, a atual Dilma, e outros. Não que o partido e seus líderes não cometam erros que precisam ser apurados e responsabilizados. Mas a discriminação atual é fundamentada? Preocupo-me quando, por brincadeira ou por costume, perante qualquer problema alguém pronuncia: “É culpa da Dilma”, ou quando vejo adesivos nos veículos da elite “FORA PT, E LEVE A DILMA JUNTO”.

          Esta situação faz-me lembrar do antissemitismo e seu apogeu, o holocausto durante a segunda guerra mundial. Hitler tinha lá seus motivos, objetivos e subjetivos, para promover aquela barbárie. O principal motivo objetivo era apoderar-se das imensas riquezas acumuladas pelos judeus, e assim alimentar sua insaciável máquina de guerra. Os motivos subjetivos, esses talvez seja necessário perguntar a Freud. Goebbels, ministro da propaganda de Hitler, utilizou um princípio simples para convencer a nação alemã da ameaça semita: o condicionamento reflexo. O mesmo que Pavlov já havia demonstrado quando fez cães salivarem ao toque de uma sineta, mesmo sem apresentar-lhes o bife. O suposto perigo semita foi tantas e tantas vezes afirmado pela mídia controlada pela tirania nazista que a população começou a reagir instintivamente e aceitá-la como verdade. Uma tática muito repetida ao longo da história, a insistente repetição de um factoide transformando-o numa falsa realidade, que é percebida como uma inquestionável verdade.

         Estaríamos atualmente vivendo algo parecido no Brasil? Não vivemos num regime nazista, isto é certo. Mas a mídia hoje é muito diferente da mídia do Terceiro Reich? Quem a controla? Com quais interesses? E, se a mídia tem o interesse de estigmatizar o PT, Lula, Dilma, quais seriam seus motivos, objetivos e subjetivos, para tanto? Por certo o PT não é detentor de riquezas materiais que interessem aos controladores da mídia atual. Seriam então detentores do quê? Talvez um partido que tenha surgido de movimentos sindicalistas, que tem como princípios a participação popular, a valorização da força de trabalho e das oportunidades para todos, a superação da fome, da ignorância e da pobreza, a inclusão social e, sobretudo, a soberania e libertação do cidadão e da nação, tenha, sim, muitas riquezas que interessam a outros. Ou incomodam e atrapalham a outros. Grosso modo, pode-se dividir a humanidade em dois grupos: os que acreditam em cooperação e solidariedade, e os que acreditam em castas privilegiadas e competitividade. Em qual destes grupos alinha-se o PT, a mídia, cada um de nós? E repito, não que o PT não tenha seus erros, que precisam ser apurados.

          Já as razões subjetivas para a estigmatização do PT e de seus quadros, este talvez seja um assunto para Freud e Pavlov.