sábado, 26 de dezembro de 2015

O maestro da Av. Carlos Cavalcanti

          Não sei bem se lhe cabe o título de maestro, pois o que ele rege é uma desproporcional caixa de som tonitruante que ele carrega atada ao bagageiro de sua surrada bicicleta. Também não sei se está certo dizer que ele seja da Av. Carlos Cavalcanti, porque embora nossos caminhos sempre se cruzem por lá, é bem provável que ele percorra com sua insólita sonoridade outros lugares da cidade, e é bem possível que o leitor o conheça de outras plagas.

          E, a bem da verdade, também não sei se lhe cabe o artigo definido ‘o’. Talvez seja mais acertado dizer que se trata de mais um dos vários maestros daquela avenida, pois que já encontrei muitos outros. Mas estes outros são figuras menos extravagantes, regem seus ruídos, não sei bem se poderia chamá-los de músicas, em veículos equipados com potentes alto-falantes no volume máximo, as janelas escancaradas, e aquele tum-tum-tum monocórdio que faz vibrar os quarteirões próximos. Um incivilizado extravasamento de um ainda animalesco instinto egocêntrico?

          Mas voltemos ao nosso singular ciclista da Carlos Cavalcanti. Trata-se de um jovem já perto da meia idade, magro mas de estatura acima da mediana, trajado com roupas básicas de quem ganha a vida com o suor do trabalho e vive de jeito muito simples. Encontro-o sempre vindo no sentido do centro da cidade, ele mora para os lados de Uvaranas. E sempre antes das oito horas da manhã, tudo indica que ele seja um modesto trabalhador a caminho do trabalho.

          O ruído a título de música produzido pela avantajada caixa de som de sua bicicleta não pode ser considerado agradável aos ouvidos. Duvido que possa ser considerado agradável até mesmo pelo nosso excêntrico maestro pedaleiro. Então o que o faria exercer essa bizarra regência, espalhando ruidosa sonoridade pelo caminho? Estaria a anunciar-se ao mundo, e assim procurando encontrar alguma atenção, algum reconhecimento, que a vida lhe nega? Seria seu suposto exibicionismo uma tímida compensação da invisibilidade que imputamos às pessoas simples?

          E lembremo-nos que, aos humildes trabalhadores que não têm outra alternativa que não seja usar suas velhas bicicletas no percurso para o trabalho, fazemo-los tão invisíveis numa via nervosa como o é a Carlos Cavalcanti que frequentemente eles são atropelados. Seria esta a razão de ser do nosso maestro? Estaria ele prudentemente se fazendo anunciar por uma questão de segurança, de sobrevivência? Ou haveria ainda algum tipo de impensada desforra, tipo “vocês não me veem, mas são obrigados a me escutar”? Ou seriam ainda meus preconceituosos ouvidos que não sabem apreciar o som que nosso maestro generosamente espalha com a intenção de saudar a azáfama do início de manhã dos ouvintes?

          É possível que nem mesmo o nosso regente saiba ao certo qual a razão da excentricidade que o diferencia e o torna único. E os outros maestros do trânsito, aqueles que às vezes nos acordam nas horas do nosso sono da madrugada, passam com seus vibrantes tum-tum-tum reverberando todo o quarteirão, quais motivos os moveriam? E, se formos bem honestos, todos nós temos lá nossas excêntricas idiossincrasias, que nos fazem únicos. De que maneira as praticamos no dia a dia?


          Nesta busca pela identidade, torço para que nos encontremos nos seres ímpares que somos, sem que para tanto tenhamos que impor bizarrias aos tantos outros que compartilham conosco o afã do aglomerado urbano. Já pensaram, e se cada um resolvesse andar por aí com uma tremenda caixa de som reverberando os cérebros?

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