Não sei
bem se lhe cabe o título de maestro, pois o que ele rege é uma desproporcional
caixa de som tonitruante que ele carrega atada ao bagageiro de sua surrada
bicicleta. Também não sei se está certo dizer que ele seja da Av. Carlos
Cavalcanti, porque embora nossos caminhos sempre se cruzem por lá, é bem
provável que ele percorra com sua insólita sonoridade outros lugares da cidade,
e é bem possível que o leitor o conheça de outras plagas.
E, a
bem da verdade, também não sei se lhe cabe o artigo definido ‘o’. Talvez seja
mais acertado dizer que se trata de mais um dos vários maestros daquela
avenida, pois que já encontrei muitos outros. Mas estes outros são figuras
menos extravagantes, regem seus ruídos, não sei bem se poderia chamá-los de
músicas, em veículos equipados com potentes alto-falantes no volume máximo, as
janelas escancaradas, e aquele tum-tum-tum monocórdio que faz vibrar os
quarteirões próximos. Um incivilizado extravasamento de um ainda animalesco instinto
egocêntrico?
Mas
voltemos ao nosso singular ciclista da Carlos Cavalcanti. Trata-se de um jovem
já perto da meia idade, magro mas de estatura acima da mediana, trajado com
roupas básicas de quem ganha a vida com o suor do trabalho e vive de jeito
muito simples. Encontro-o sempre vindo no sentido do centro da cidade, ele mora
para os lados de Uvaranas. E sempre antes das oito horas da manhã, tudo indica
que ele seja um modesto trabalhador a caminho do trabalho.
O ruído
a título de música produzido pela avantajada caixa de som de sua bicicleta não
pode ser considerado agradável aos ouvidos. Duvido que possa ser considerado
agradável até mesmo pelo nosso excêntrico maestro pedaleiro. Então o que o
faria exercer essa bizarra regência, espalhando ruidosa sonoridade pelo
caminho? Estaria a anunciar-se ao mundo, e assim procurando encontrar alguma
atenção, algum reconhecimento, que a vida lhe nega? Seria seu suposto
exibicionismo uma tímida compensação da invisibilidade que imputamos às pessoas
simples?
E
lembremo-nos que, aos humildes trabalhadores que não têm outra alternativa que não
seja usar suas velhas bicicletas no percurso para o trabalho, fazemo-los tão
invisíveis numa via nervosa como o é a Carlos Cavalcanti que frequentemente
eles são atropelados. Seria esta a razão de ser do nosso maestro? Estaria ele
prudentemente se fazendo anunciar por uma questão de segurança, de
sobrevivência? Ou haveria ainda algum tipo de impensada desforra, tipo “vocês
não me veem, mas são obrigados a me escutar”? Ou seriam ainda meus preconceituosos
ouvidos que não sabem apreciar o som que nosso maestro generosamente espalha
com a intenção de saudar a azáfama do início de manhã dos ouvintes?
É
possível que nem mesmo o nosso regente saiba ao certo qual a razão da
excentricidade que o diferencia e o torna único. E os outros maestros do
trânsito, aqueles que às vezes nos acordam nas horas do nosso sono da
madrugada, passam com seus vibrantes tum-tum-tum reverberando todo o
quarteirão, quais motivos os moveriam? E, se formos bem honestos, todos nós temos
lá nossas excêntricas idiossincrasias, que nos fazem únicos. De que maneira as
praticamos no dia a dia?
Nesta
busca pela identidade, torço para que nos encontremos nos seres ímpares que
somos, sem que para tanto tenhamos que impor bizarrias aos tantos outros que
compartilham conosco o afã do aglomerado urbano. Já pensaram, e se cada um
resolvesse andar por aí com uma tremenda caixa de som reverberando os cérebros?
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