quarta-feira, 28 de março de 2018

Ponta Grossa no divã

Publicado no Diário dos Campos em 28/03/2018

      Ponta Grossa protagoniza eventos que fazem pensar que a cidade, ou uma parte expressiva de sua população, andam a precisar de sessões no divã de Freud, para tentar exorcizar alguns arraigados atavismos. Entre estes eventos, alguns míticos, podemos mencionar: a cidade que negou o copo d’água ao beato João Maria, e que este em vingança teria amaldiçoado a ela e sua população; a única cidade do Brasil em que Guilherme Afif Domingos, um candidato inexpressivo de um partido inexpressivo, foi o primeiro colocado numa eleição presidencial fortemente polarizada entre dois candidatos, um fabricado pela mídia, outro representando a esquerda de origem popular; a cidade que tem uma associação de empresários que foi acionada pelo Ministério Público por ter proposto publicamente que beneficiários de programas sociais não pudessem votar; a mesma associação que vem a público reiteradamente apoiar o general que se manifestou na mídia a favor da volta da intervenção militar no país (a ditadura militar), o qual por este motivo foi afastado de suas funções pelos seus comandantes; a cidade da vereadora que simulou o próprio sequestro; a cidade cujo time de futebol só conseguiu sagrar-se campeão após um século de existência, e que no ano seguinte foi rebaixado à segunda divisão do campeonato estadual; e, agora, a cidade que organiza acolhida, manifestação e passeata em favor do candidato militar de terceiro escalão à presidência da república que se manifesta abertamente a favor da violência do aparato do Estado, do segregacionismo (homofobia, xenofobia, misoginia, etc.), diz que bandido bom é bandido morto, e outros absurdos que só demonstram quanto é rancoroso e não foi educado aprendendo valores civilizatórios.
O que acontece com essa provinciana e amedrontada parcela da população de Ponta Grossa, que embora talvez minoritária, é quem ainda prepondera na sociedade local, dominando a mídia, elegendo seus representantes e controlando as decisões que são tomadas na cidade? Talvez só mesmo Freud explique! Talvez o histórico de pouso de tropeiros itinerantes, que sem raízes territoriais onde fincar a identidade fincam-na nas ilusões da posse de bens e de posição social? Talvez a herança de privilegiados sesmeiros que abocanhavam suas posses graças à subserviência ao poder imperial? Talvez resquício dos tempos da escravidão, em que casa grande e senzala eram mundos fendidos, assim como hoje pobres e trabalhadores devem continuar a servir à sanha e ambição insaciável dos proprietários e empreendedores? Talvez o assustado patrimonialismo de proprietários rurais que temem ver a ascensão social e econômica de parcelas maiores da população, limitando seus seculares privilégios? Talvez tudo isso junto e algo mais?
Na verdade, a vinda do candidato fascista e a calorosa receptividade que lhe é prometida por parcela da população hão de ter seu significado em benefício da evolução da consciência social e cívica da cidade. De acordo com os milenares princípios filosóficos orientais, ainda muito mal compreendidos entre nós, um extremo, no caso o retrocesso representado por tais bizarros eventos da elite econômica ponta-grossense, é a semente do extremo oposto, no caso a evolução para uma sociedade imbuída dos princípios de igualdade e solidariedade preponderando sobre a desigualdade, a exclusão, o segregacionismo e a exploração do ser humano pelo ser humano.
Evocando um princípio bíblico, que deveria estar norteando todos os cristãos, que constituem a maior religião do mundo, “bem aventurados os mansos e pacíficos, pois eles herdarão a Terra”. Bem aventurados os que se empenham em concretizar uma sociedade com justiça, solidariedade e inclusão social, pois eles substituirão os que apregoam a violência e o segregacionismo.

terça-feira, 13 de março de 2018

Assédio na Universidade

Publicado no Diário dos Campos em 17/03/2018
Semana passada, quando da comemoração do Dia Internacional da Mulher (8 de março), eventos singulares ocorreram em universidades do Paraná. Em Maringá, na UEM, durante a solenidade de formatura, alunas formandas exibiram cartazes denunciando assédio sexual. Em Ponta Grossa o DCE – Diretório Central dos Estudantes – organizou a elaboração e fixação nos locais de estudo de cartazes com frases assediadoras ditas por professores durante as aulas.
Na verdade estas não são as primeiras denúncias de assédio nestas universidades e em outras do Paraná e do Brasil. Agora as denúncias ganham maior intensidade e repercussão graças aos casos de assédio envolvendo celebridades de Hollywood, que ganharam o mundo. Não se trata de aumento de casos de assédio, mas de coragem de denunciá-los, o que parecia muito mais difícil há pouco tempo atrás.
As frases estampadas em cartazes na UEPG na última semana foram ditas em aula pelos professores, e pareceriam pueris se comparadas com outras ditas pelos assediadores às alunas quando não estão em público. E isto acontece dentro das universidades, o ambiente em tese na vanguarda da sociedade, onde são formados futuros técnicos, professores e cidadãos. O que esperar deles se seus professores dão exemplos de vida de quem considera o assédio, moral e sexual, como uma normalidade? O assédio é herança de uma sociedade arcaica, machista, segregacionista e truculenta, que considera o abuso e a intimidação como direitos dos que se situam hierarquicamente acima. Uma herança da escravidão e do jugo.
Na UEPG, só para citar um caso, há três anos alunas leram numa reunião carta de repúdio a professores assediadores, sem citar quais seriam esses professores. Foram violentamente refutadas pelos professores homens presentes, que diziam considerarem-se todos acusados, uma vez que não eram nominados os destinatários da carta lida. Isso diante da mudez das professoras presentes.
A leitura da carta foi gravada pelos alunos, e apesar de não autorizada pelos professores, a gravação logo foi postada no Youtube. Isso gerou enorme embaraço, constrangimento e pronta reação da direção da Universidade, a postagem logo foi retirada. Mas as ações que se seguiram não visaram apurar a denúncia feita pelas alunas, mas sim abafar o caso. E assim foi feito. Mediante acordos entre as alunas e a direção da Universidade, cujos conteúdos nunca foram divulgados, o caso foi esquecido.
Este episódio realça a importância da iniciativa do DCE atual de trazer à tona a delicada questão do assédio e do abuso que ocorrem dentro da Universidade. É hora de um basta, que signifique real sintonia com as questões de gênero e de igualdade de direitos que estão a mobilizar mundialmente a sociedade. Não é possível que os assediadores continuem achando que o assédio, o abuso e a truculência sejam coisas normais do dia a dia, pois em todo lugar tem sido assim. Não é possível as vítimas de assédio, abuso e truculência continuarem com medo de denunciar, pois os denunciados supostamente são o poder, e têm condições de manipular eventuais iniciativas para apurar acontecimentos. Não é possível que a direção da Universidade continue a conduzir as denúncias de assédio com o objetivo de abafá-las e ocultá-las.
Assédio é crime. A impunidade perante um crime sinaliza com o consentimento para praticar inúmeras outras infrações, éticas e administrativas, no dia a dia acadêmico. Isso é omissão. Isso é inadmissível numa Universidade que assuma sua missão de vanguarda, que se proponha a formar profissionais e cidadãos com as qualidades que necessitamos para as colossais transformações que nossa sociedade, nosso país, estão a demandar.

segunda-feira, 5 de março de 2018

Picho – desrespeito ou transgressão?

         Outro dia vi na web a imperdível entrevista de João Luiz Silva (Juca) Ferreira no programa Voz Ativa de Belo Horizonte. Uma frase marcante da entrevista: ─ “Cultura e arte não dividem entre direita e esquerda, dividem entre civilização e barbárie”.
Nessa entrevista discute-se, entre outros temas, se pichação é arte, já que o grafite sim é considerado arte, ele que tem semelhanças (e diferenças!) com o picho. Discussão polêmica. Na entrevista, na verdade também um debate, entre os entrevistadores/debatedores havia os defensores e os opositores do picho como arte. O próprio Juca Ferreira declara que é necessária uma negociação ainda não ocorrida entre os vários protagonistas da questão, pichador, pichado e o cidadão, uma vez que existem nítidos conflitos envolvidos.
Sem dúvida é uma questão delicada. Morador de São Paulo quatro décadas atrás, vi o picho pouco a pouco disseminar-se pela cidade, até transformar ruas de bairros inteiros, imputando-lhes um visual caótico, indecifrável, agressivo e degradante. As pichações agrediam o anteparo que preexistia e o senso estético. E agrediam-se entre si, competindo e devorando-se umas às outras. E parece-me que o mesmo fenômeno está a acontecer em Ponta Grossa atualmente.
Sem dúvida o picho tem alguns atributos muito singulares. Primeiro, é uma forma de expressão, possivelmente de quem tem dificuldades de encontrar outras formas de expressão. Segundo, é uma forma de transgressão. E, como diz uma respeitada e estimada amiga, ─ “Transgredir é preciso.” Sem uma saudável transgressão estagnaríamos na mesmice. Mas só transgredir não basta. Para evoluir é preciso também o diálogo, a empatia, que nos permitem discernir qual é a transgressão benéfica. Terceiro, o picho é também desrespeito. Estranha pelo seu hermetismo, degrada o que lá existia antes de ser pichado, às vezes um monumento, uma edificação histórica tombada, ou simplesmente uma parede que o proprietário zeloso acabou de pintar.
Aí surge o conflito não solucionado. Haverá solução? Ou será que o conflito, e as inevitáveis transformações que ele naturalmente gera, é preferível a uma solução, uma concertação?
Creio ser essa a ausência de entendimento a que Juca Ferreira se refere. Atrevo-me uma opinião a respeito, opinião de quem não é da área de arte nem comunicação. Constato que a ausência de entendimento, em todas as áreas, prospera no mundo atual em que atuam forças hegemônicas globalizadas que pressionam para uma uniformização de conceitos e expressões. Isto sufoca e gera consequente resistência, revolta, competição, desrespeito e agressão.
O que distingue a espécie humana das demais espécies é a suposta capacidade de refinada reflexão e comunicação. Mas parece que cada dia estamos exercitando menos esta capacidade. Não só no campo da expressão, como é o caso do picho. Mas também da cor da pele, do gênero, da classe social, do lugar de origem, do time de futebol, da ideologia, do partido político...
Quem é o intolerante e tirânico? Quem picha ou quem condena o picho?