domingo, 20 de março de 2022

Elucubrações cosmogenéticas

Um trecho da Bíblia, do Evangelho de João, diz: “Na casa de meu Pai há muitas moradas”. Os espíritas interpretam esse trecho como a revelação de que não estamos sós no mundo, há outros planetas habitados além do nosso. Os discípulos de Allan Kardec vão ainda mais longe, acreditam que a população da Terra é composta de seres oriundos de muitos planetas diferentes, que aqui reencarnam esquecidos de seu passado, com a missão de evoluir e contribuir para a evolução da humanidade. A vida na Terra, um planeta no atrasado estágio de “expiação e provas”, seria uma escola implacável, para aprendermos a reconhecer e superar nossos defeitos mais arraigados.

A coexistência entre nós de paradoxos tão absurdos parece confirmar que realmente estejamos vivendo uma expiação e prova numa escola severa, mas ao mesmo tempo generosa. Ela deixa que nossa selvageria faça a guerra e cometa atrocidades, mas ao mesmo tempo nos enternece com laivos de amizade, solidariedade, amor, beleza e poesia. Parece que estamos sujeitos à escolha, o livre arbítrio manifesta-se. O plantio é livre, a colheita dos resultados é obrigatória.

Mas, voltando às muitas moradas da casa do Pai, o imaginário humano é pleno de manifestações de que acreditamos ter companhia neste imenso universo. Gosto particularmente das ficções O dia em que a Terra parou (livro de Harry Bates, depois transformado em filme) e Contato (livro de Carl Sagan, depois também levado para as telas). Há inúmeras outras ficções, assim classificadas visto que até agora supomos que nunca tivemos uma prova indubitável da existência de alienígenas.

O exame da imensidão do universo conduz às conclusões que os astrônomos não cansam de anunciar: não é sensato que só a Terra tenha propiciado a origem e evolução da vida. Tal conclusão ganha força quando lembramos que o big-bang iniciou o universo que conhecemos há mais de quatorze bilhões de anos, enquanto a Terra tem somente pouco mais de quatro bilhões. Uma diferença de dez bilhões, mais que o dobro da idade de nosso planeta. Quantas civilizações não poderiam ter evoluído antes mesmo da Terra existir?

Elucubrando sobre o trecho da Bíblia e as interpretações dos espíritas, pode-se especular que os nossos messias tenham sido seres enviados de mundos mais evoluídos, com a missão de fazer prosperar a humanidade. E a população da Terra seja uma mistura de seres vindos de mundos em diversos estágios evolutivos: podemos ter por aqui desde bárbaros de planetas “primitivos” até os virtuosos dos planetas regenerados. Assim, Jesus Cristo poderia ter sido um ser vindo de um “planeta de regeneração” dos espíritas. A mando de um Pai, este talvez um ser iluminado de um mundo celestial inimaginavelmente evoluído. Nós humanos temos dificuldade de compreender racionalmente quem seja este Pai. Menos difícil é enxergar sua criação, o planeta em que vivemos e os incontáveis milagres que aqui testemunhamos, principalmente o milagre da vida. E ainda nem bem conhecemos nosso planeta e o potencial humano, mal suspeitamos dos milagres celestiais do universo, que ainda estão além da nossa ciência.

Quem seria o Espírito Santo dos católicos? Talvez auxiliares de Jesus, vindos do mesmo mundo que ele, seres que ainda não extinguiram de vez a vaidade e seus desdobramentos, mas que já a reconhecem e enfrentam-na com galhardia.

Que utilidade poderiam ter estas elucubrações? Talvez refletindo sobre nosso lugar no universo, ainda que sem nenhuma certeza, nos seja revelada a infantilidade dos desígnios desta nossa desorientada civilização, aficionada do consumismo, das fraudes e da guerra.

sábado, 12 de março de 2022

A Ucrânia hoje é o Brasil de amanhã?

Publicado no Jornal da Manhã em 16/02/2022.

Em 2010 A Ucrânia elegeu o presidente Viktor Ianukovytch, pró-Rússia. A partir de então, grupos neonazistas e de ultradireita foram incentivados e financiados no país. Um exemplo recente de guerra híbrida. Ela inclui a guerra cognitiva e as milícias armadas, quando um país com governo não submisso aos EUA é levado à desordem interna e à guerra civil, visando submetê-lo ao insaciável apetite imperialista hegemônico do Tio Sam. Concretização do atávico e centenário “destino manifesto”, a crença, desde os pioneiros, de que os estadunidenses estão fadados a dominar o mundo. Ianukovytch foi enfim deposto no início de 2014, e refugiou-se no exílio.

A Ucrânia tem a particularidade de ser vizinha e historicamente ligada à Rússia, outra potência nuclear à altura dos EUA. E a Rússia não quer aceitar Tio Sam intrometendo-se ainda mais em suas fronteiras. Cabe perguntar: a Rússia é outra nação buscando expandir-se hegemonicamente pelo mundo? Ou é o grande império que sempre foi, buscando preservar-se e defender-se de agressores? Ela já foi vítima de invasões ao longo da história, as mais recentes e marcantes perpetradas por Napoleão em 1812 e por Hitler em 1941.

A Ucrânia elegeu o presidente pró-Tio Sam Volodymyr Zelensky em 2019, como resultado de uma das mais espetaculares vitórias da guerra cognitiva. A associação de tecnologia cibernética mais controle da mídia conduziu a manipulada e confusa população a escolher um comediante autoproclamado antissistema, fantoche dos EUA, para conduzir o país através da aguda crise, o lance seguinte no jogo de poder das duas maiores potências militares do planeta. Deu no que deu. Não se pode justificar a guerra, a maior estupidez da humanidade. Mas a Rússia foi obrigada a ir a ela, sob pena de tornar-se o menino acovardado pelas ameaças de bullying do valentão e seu bando. Guerra que os EUA provocaram e já venceram, ao obrigar a Rússia a combater nas suas fronteiras.

E o Brasil? Nosso país é um dos cinco do mundo, junto com EUA, China, Rússia e Índia, que reúne extensão em área, população e tamanho da produção econômica que o credenciam para tornar-se uma potência mundial, como já são os outros quatro. Em 2002, depois em 2006, 2010 e 2014, elegemos governos que tiveram a pretensão de despertar-nos do sono do gigante deitado eternamente em berço esplêndido. Foram feitos esforços para emancipar e fortalecer o Estado, implementar políticas sociais para diminuir a fome, empregar plenamente e melhorar salários de trabalhadores, democratizar o acesso à educação superior, investiu-se na pesquisa científica e na nacionalização.

O esforço para tornar o país soberano incluiu a criação do BRICS, a aliança econômica justamente de Brasil, Rússia, Índia, China e mais a África do Sul. Ela tinha o objetivo de livrar seus membros do tirânico mando do Tio Sam nas transações econômicas internacionais. Nesse meio tempo o Brasil ainda descobriu o pré-sal, as maiores reservas petrolíferas encontradas nas últimas décadas. Ou seja, o Brasil tornou-se, como a Ucrânia em 2010, um país estratégico querendo escapar do domínio dos EUA e flertando com a Rússia e outros gigantes.

Repetiu-se o roteiro. A guerra híbrida começou em 2013. Manifestações de rua, deflagradas supostamente em revolta à tarifa do ônibus, logo descambaram para rebeliões contra o governo eleito. Ao mesmo tempo, viu-se uma orquestrada sabotagem por parte de políticos e empresários submissos ao poder do mercado transnacional, que emperraram a economia e o Estado. O golpe consumou-se em 2016, depôs o governo eleito em 2014. Em seu lugar foi entronizado um governo testa de ferro, fiel ao propósito de manter o Brasil como colônia exportadora de matérias primas baratas, agora inclusive o petróleo do pré-sal. Enquanto os preços dos derivados, por aqui, nunca tenham estado tão altos. E reconstituiu-se o exército de desempregados desassistidos, que permite ameaçar de sumária demissão e substituição qualquer associação de trabalhadores que ouse organizar-se para exigir direitos e frear a política de precarização do trabalho.

O lance seguinte no Brasil foi eleger o ex-capitão miliciano para a presidência, outro suposto político antissistema. Ele foi a aposta de Tio Sam para impedir-nos de voltar a eleger um governo que desafie o mando estadunidense. Os ultradireitistas tupiniquins já estão sendo armados há anos, para a eventualidade de desencadearem-se aqui as mesmas barbaridades que foram, e estão sendo perpetradas na Ucrânia, ainda agora, durante a guerra.

A diferença é que o Brasil não faz fronteira com a Rússia. Vamos ter de nos defender das milícias ultradireitistas pró-Tio Sam com nossos próprios recursos. Que logremos realizar isso sem chegar à guerra civil, para a qual o ensandecido desgoverno atual nos conduz. Para evitar tal desastre, basta um mínimo de discernimento, de comprometimento e de coragem da grande maioria da população. Aqueles que não são nem ultradireitistas nem milicianos, e que têm o sonho de ver um Brasil democrático e soberano.

 

sábado, 5 de março de 2022

Guerra cognitiva – as vítimas somos nós

Publicado no Jornal da Manhã em 08/03/2022.

“Guerra cognitiva” é o título de um surpreendente relatório da OTAN que organiza e aprofunda tudo o que o cidadão comum talvez já conheça sobre as guerras híbridas. É aquela guerra em que o campo de batalha não é mais o território sobre a superfície da Terra, mas é a mente humana. O território ─ e suas riquezas ─ é só o butim final. A guerra cognitiva ─ GC ─ visa vencer o inimigo sem a necessidade de pegar em armas, sem os custosos deslocamentos de tropas e equipamentos. Basta utilizar racionalmente os meios de informação, comunicação e poderosa capacidade de processamento de dados, para conhecer bem o inimigo ─ sua cultura, hábitos, crenças, valores, medos, fraquezas, gostos, viés ideológico, psicologia, etc. ─ e, a partir desse conhecimento, produzir estímulos ─ notícias verdadeiras ou falsas, controle de informações e anúncios, ofertas de amizades ou de inclusão em grupos, etc. ─ que conduzam o inimigo a derrotar-se a si próprio ─ consumindo compulsivamente, apoiando certas ideologias, votando em certos candidatos, insurgindo-se contra instituições, armando-se, tornando-se violento, odiando, rejeitando vacinas eficazes, acreditando em remédios ineficazes, etc.

A GC não é totalmente nova. Desde sempre sabe-se que, numa guerra, a verdade é a primeira vítima. Isto se acentuou nas guerras do século XX, com a evolução dos meios de comunicação e da propaganda, e consolidou-se no século XXI, com a fantástica capacidade de coleta, processamento e difusão de dados, e das neurociências que destrincham minuciosamente o comportamento humano.

O relatório da OTAN alerta para a urgência do aperfeiçoamento da GC nos quadros da Organização, para os enfrentamentos que estão em curso nestes nossos tempos. Menciona os casos da GC nas revoluções coloridas da Primavera Árabe entre 2010 e 2012, na Ucrânia em 2004 e 2014, no Brexit em 2016 no Reino Unido. Não fala do Brasil; cabe a nós deduzir a deflagração da GC contra os brasileiros e o gigante adormecido da América do Sul, desde a tentativa de democratização e emancipação do país, sobretudo a partir da descoberta do petróleo do pré-sal. Entre nós, a GC levou às manifestações de 2013, que culminaram com o afastamento de Dilma e ascensão da extrema direita. Cabe também deduzir o papel da GC atualmente, no conflito Ucrânia versus Rússia.

Quem são as vítimas da GC? Visto que o combate dá-se dentro da mente humana, esquadrinhada e mapeada pelas sagazes neurociências, a primeira vítima é o ser humano, derrotado pelas sofisticadas táticas de combate do aparato cognitivo: as vítimas somos nós! Cada vez que compramos algo que de fato não precisamos, já estamos sendo vítimas das armas de manipulação; mas neste caso para o consumo. Na GC, o objetivo não é só nos fazer consumir mercadorias; consumimos coisas muito mais danosas. Consumimos ideologias e convicções do interesse dos nossos inimigos na GC. Consumimos preconceitos, intolerâncias, demonizações ou endeusamentos. Consumimos o convencimento de que é preciso armar-se e participar de uma revolta, ou mesmo das brigas em que passamos a odiar familiares, amigos e antigos parceiros. A GC promove a cizânia e disrupção no território do inimigo através da cibernética. Nosso pensamento e nossa ação não são mais nossos. Tornamo-nos verdadeiros fantoches, marionetes irracionais. E, o que é pior, na maioria das vezes nem nos damos conta de que estamos em uma guerra, que há um inimigo guerreando conosco. Temos nosso livre pensar e nossa identidade roubados, somos vítimas derrotadas em uma guerra na qual não sabemos estar participando, por um inimigo que não sabemos quem é.

Agindo nas multidões irrefletidas, a GC pode levar a revoltas, surtos fascistas, deposição ou eleição de dirigentes políticos e até guerras civis; sempre no intuito de favorecer o inimigo cognitivo. A guerra visa submeter populações e países aos interesses daqueles que detêm o poder tecnológico de desencadear e vencer a GC.

As primeiras vítimas da GC são a verdade e as pessoas. As maiores vítimas são as nações que tentam emancipar-se, transformadas em eternas colônias, submissas a seus dominadores.

Queiramos ou não, estamos em guerra. Ela nos foi declarada. Um dos caminhos possíveis é conscientizar-se disso, e recusar participar dela.