sexta-feira, 30 de abril de 2021

Da privataria tucana à bravataria insana

 

Desde meados dos anos 1990 até o início da década de 2020, alguns acontecimentos destacam-se na história do Brasil. É o período entre a “privataria tucana”, que é título de livro, até o que podemos denominar a “bravataria insana”, que vivemos no país desde 2019. Nesse período aconteceram a privataria tucana, o mensalão, o petrolão, a Lava Jato, o impedimento de Dilma, a prisão de Lula e a eleição de Bolsonaro, que inaugurou a atual bravataria insana.

A privataria tucana, no governo FHC, é considerada por muitos a maior operação de corrupção no país. Ocorreu durante as privatizações de estatais, principalmente a Vale do Rio Doce e a Telebrás. Dinheiro das fraudes em benefício do PSDB e seus quadros era operado pelo Banestado, o banco estatal do Paraná. Após a descoberta das transações ilegais o banco foi fechado. Aliás, não foi o primeiro caso de suposta falência de banco estatal em governos tucanos. O primeiro foi o Banespa, de São Paulo, que também fechou durante governo do PSDB.

Lula assumiu a presidência em 2003, em 2005 já estava às voltas com a acusação do mensalão, ou seja, a suposta compra sistemática de votos de parlamentares pelo governo, para dar-lhe sustentação. Demorou até que investigações provassem que o mensalão foi inventado pelo denunciado Roberto Jefferson para livrar-se de acusações que pesavam sobre ele. Compra de votos existia sim, como sempre tem existido, mas não por um esquema do governo, mas pelos onipresentes conchavos enraizados na política.

A farsa do mensalão não foi suficiente para impedir que Lula se reelegesse e elegesse sua sucessora Dilma. Então vieram o petrolão e a Lava Jato. Estas operações vergaram a gigante Petrobras, que acabara de descobrir o pré-sal e exportava know-how, impedindo sua internacionalização e a de grandes construtoras brasileiras que andavam a ganhar o mundo, principalmente na América Latina e África. Os desvios comprovados nessas empresas, embora vultosos e criminosos, acontecem amiúde em todo o mundo. Entretanto, lá fora são sanados em ajustes que punem os infratores mas não destroem as empresas, e sim corrigem-nas. Aqui as coisas foram feitas para destruí-las.

A seguir veio a deposição de Dilma. O argumento legal foram as pedaladas fiscais, praticadas por todos os governos anteriores, e legalizadas após o golpe que depôs a presidenta. Na prática, o clima para o golpe foi conquistado graças a uma sabotagem da economia por empresários que não queriam a continuidade de um governo empenhado em diminuir o fosso econômico e social no Brasil, e pela mídia que lhes deu apoio.

O grande evento seguinte foi a prisão de Lula. Hoje, em parte graças ao trabalho de hackers e não da ação de órgãos de investigação que existem para isso, a farsa da Lava Jato está sendo desmascarada. Embora desde o princípio renomados juristas mundo afora já apontassem que se tratava de uma operação fraudulenta, criminosa, com objetivos políticos.

De todos esses precedentes, eclodiu a criatura Bolsonaro, tido por muitos como um psicopata sem condições nem de ser síndico de condomínio. Se o fosse, ele criaria cizânia e guerra entre os moradores. O presidente parece só saber fazer bem uma coisa: bravatear. Talvez tenha sido mesmo esse o atributo levado em conta por aqueles que o escolheram para governar o Brasil. Não estou falando de seus fiéis eleitores, que por certo identificam-se com ele. Estou falando dos interesses transnacionais que conseguiram idiotizar, enraivecer e quebrar o país que ameaçava tornar-se um protagonista mundial.

domingo, 18 de abril de 2021

Cubatão e a Covid-19: a moral do lucro

 Postado no Portal Aponta.jor em 18/04/2021.

A cidade de Cubatão, ao pé da Serra do Mar no trajeto entre o porto de Santos e a metrópole São Paulo, ilustra bem qual é a moral do lucro. A localização de Cubatão atende a razões econômicas: ela fica no meio do caminho entre a maior cidade e o maior porto do país, por este chegam e partem insumos e produtos industrializados. Desde meados do século XX a estratégica situação da cidade fez com que ela recebesse agigantado parque industrial, com refinarias, petroquímicas, siderúrgicas, metalúrgicas, muitas fábricas que aproveitam a facilidade logística entre o porto e a metrópole.

As fábricas foram instaladas sem nenhuma preocupação ambiental e social. Era a época do “desenvolvimento a qualquer custo”. Quem conheceu a cidade no início da década de 1980 tem dela uma lembrança inesquecível: chaminés vomitando fumaça escura, o ar e a silhueta da cidade cinzentos e sombrios, o sol pálido mal conseguindo atravessar a barreira de névoa química. A população sofria de várias doenças por intoxicação. Cubatão ficou famosa no mundo pela incidência descomunal da monstruosa anencefalia, o nascimento de crianças sem cérebro, por efeito da poluição. Em 1984, o vazamento de um duto de gasolina em Vila Socó ocasionou incêndio com número incalculável de vítimas, entre 90 e 500 mortos.  A situação era tão calamitosa que a ONU declarou a cidade a mais poluída do mundo.

Apesar dos protestos dos operários e suas famílias, a tragédia na saúde da população não foi suficiente para as indústrias se convencerem da necessidade de evitar a poluição. Mas a vida parece esforçar-se em nos ensinar que não há incúria sem desforra. Em meados dos anos 1980, a natureza revidou. Cubatão situa-se no sopé da escarpa da Serra do Mar, muralha que ultrapassa mil metros de desnível e é coberta pela exuberante Mata Atlântica. Mas a poluição matou a floresta nas encostas próximas à cidade. Logo se constatou que, sem a mata a protegê-los, os solos das íngremes vertentes instabilizavam-se, durante as torrenciais chuvas orográficas provocavam inúmeros escorregamentos de terra, que coalesciam nos fundos dos vales e poderiam originar catastróficas corridas de lama, fenômenos que destroem o que encontram pela frente. As indústrias estavam ameaçadas.

Então, em nome dos investimentos e seus lucros, e não da vida e saúde da população, tomaram-se medidas urgentes para evitar a tragédia: nas fábricas enfim instalaram-se filtros contra a poluição, construíram-se barreiras para conter eventuais corridas de lama, usando-se helicópteros realizaram-se semeaduras de espécies nativas para reflorestar as encostas, desencadeou-se uma operação de guerra, contando com criação de brigadas e instalação de sofisticados sistemas de monitoramento e alerta. Um investimento altíssimo, mas não proibitivo, para sanar a anterior desfaçatez da ânsia de lucro ao menor custo.

Cubatão restabeleceu-se, na década de 1990 a ONU considerou-a um exemplo de recuperação ambiental. A Mata Atlântica recuperou-se, as ameaças às indústrias foram afastadas. E esqueceram-se os irrecuperáveis custos sociais daquela insensatez.

No trato da pandemia da Covid-19, voltamos à questão da economia versus vida. Parece que ainda nada aprendemos com as muitas lições que já tivemos a respeito, Cubatão é só um de muitos exemplos. O infame sistema que vivemos dá mais valor ao lucro que à vida e ao ambiente que a sustenta.

sábado, 3 de abril de 2021

Páscoa, a ressurreição do Salvador

 

Religião! Ópio do povo ou farol a orientar os espíritos? Espírito! Aquele nosso lado imaterial que transcende a nossa animalidade, ou, ao contrário, o “espírito de porco”, igualmente imaterial, mas que realça tudo que temos de mais abjeto?

Já afirmaram várias celebridades ao longo do tempo, não confundir religião com igreja. Religião, vinda dos verbos relegere (respeitar) ou religare (religar), deveria então ligar respeitosamente, unir os seres humanos. A igreja, ao contrário, nos separa, muitas vezes levando-nos a guerras fratricidas. A religião é uma só. As igrejas são inúmeras. E o que é este sentimento que liga com respeito os seres humanos? Talvez aquele vislumbre que nos revela que existe incipiente dentro de cada um de nós a centelha de um ser divino, luminoso, que nos ultrapassa? Talvez a consciência da fragilidade humana, e da decorrente necessidade de crer em uma realidade outra, melhor que a que vivemos, que nos traga algum conforto, esperança, resignação?

A igreja com mais adeptos no planeta é o Cristianismo. Ele está presente em todos os continentes, em praticamente todos os países. Seu Messias, Jesus Cristo, seria o filho de Deus encarnado, que desceu dos céus para nos ensinar e nos salvar. O que ele veio nos ensinar? Tudo o que dele é dito afirma que foi a humildade, a generosidade, a compaixão, o amor. Mas também nos ensinou firmeza de caráter. Ele chicoteou os vendilhões do templo, compreendeu e perdoou Judas, aceitou o julgamento a que foi submetido, deixou-se martirizar pelos seus algozes, entendeu que seu sacrifício teria a força de uma milenar e planetária evocação. As autoridades romanas lavaram as mãos, e o que o povo fez com Jesus Cristo? Condenou-o à crucificação.

Dois mil anos depois, na Páscoa os cristãos comemoram a ressurreição de Cristo. Ele teria ressuscitado, talvez uma mensagem que traduza nossa esperança de que nem tudo se resuma à vida que temos aqui no planeta Terra. Hoje a Páscoa parece celebrar sobretudo a reafirmação na fé da mensagem de amor que o Cristo trouxe à humanidade.

É então uma data especial para refletirmos sobre o que conseguimos aprender daqueles ensinamentos, passados estes dois mil anos. Como anda a religião, como anda o Cristianismo? Tenho comigo que Cristo, assim como os verdadeiros mentores de todas as demais igrejas, não ensinava a fé cega, esta incapaz inclusive de enxergar as próprias profanações cotidianas que cometemos contra a religião. Não é só o adepto que anda apegando-se aos bens materiais, à soberba, à jactância, à adoração de falsos messias. As próprias igrejas têm reeditado as práticas da Idade Média, inventando novas formas de indulgência que exploram a fé irracional e enriquecem falsos religiosos.

Cristo veio ensinar humildade, generosidade, compaixão, verdade, justiça, firmeza de caráter, para a necessária transformação da humanidade. Não veio ensinar a fé cega, mas sim a fé refletida. A fé cega conduz ao erro, à adoração de falsos messias. Cristo falava de paz, amor, respeito, solidariedade. E não de armas, violência, agressões, tortura, mentiras, obscenidades, hipocrisias.

Que na Páscoa os ensinamentos de Cristo renasçam no espírito dos cristãos.