quinta-feira, 26 de outubro de 2023

A verdade em Israel e na Palestina

 Publicado no Jornal de Manhã em 27/10/2023.

Qual a verdade em Israel e na Palestina? Como sempre, na guerra a primeira vítima é a verdade. Ela morre junto com a lucidez, a sensatez, a humanidade. As notícias que nos chegam, aqui do outro lado do mundo, não permitem que saibamos o que de fato se passa no Oriente Médio. O que nos leva a fazer conjecturas.

O que teria feito o Hamas perpetrar o bárbaro ataque que vitimou centenas de israelenses no 7 de outubro? Teria sido um ato de desespero? Muito improvável. Nem os 75 anos de expatriação e apartheid impostos aos palestinos fariam que eles realizassem a agressão que Israel aguardava, para justificar seu intento de exterminar ou expulsar em definitivo os palestinos. Como está fazendo agora. O que teria então acontecido naquele 7 de outubro?

Diz-se que é impossível que os serviços de inteligência de Israel não soubessem de um plano de ataque do Hamas. Então, tal como fez os EUA no 11 de setembro de 2001, teriam deixado acontecer, para justificar a selvagem retaliação? Que, de outro modo, seria a escancarada confissão dos planos de hegemonia mundial do Tio Sam? E, no caso de Israel, dos planos de exterminar definitivamente os palestinos?

Nem um ato de desespero justificaria os crimes do Hamas. Sabia-se que a retaliação seria monstruosa. Não é improvável pensar que, de fato, o que tenha ocorrido tenha sido um plano arriscado, mas que fugiu do controle. O Hamas pode ter pretendido fazer um grande número de reféns, sem mortos, para negociações com Israel. Por troca de prisioneiros, água, alimentos, medicamentos, energia, liberdade de locomoção... Enfim, pela sobrevivência. Por esse motivo os alvos foram não militares, festas e outros.

Mas em Israel tudo é militar. Por algum motivo, a ação planejada fugiu do controle. Ou pela reação armada de algum dos pretendidos reféns, ou pelo descontrole de algum palestino mais irascível, diante de impropérios a ele dirigidos por algum judeu mais fundamentalista. Um disparo, e o que era para ter sido uma operação para fazer reféns acabou virando uma matança.

E o ataque ao hospital em Gaza que deixou centenas de mortos e feridos, a maioria mulheres e crianças? As trocas de acusações sobre quem teria realizado o ataque parecem querer esconder outra verdade: membros do Hamas, caçados, teriam procurado usar o escudo humano de civis para proteger-se. Um risco imperdoável. Mas Israel menosprezou o “efeito colateral” de centenas de vítimas civis. Talvez tenha encontrado ali outro pretexto para continuar a limpeza étnica?

Judeus e palestinos são irmãos de sangue milenares. Seu DNA é o mesmo. São fruto da mesma terra, dos mesmos povos originais. Como puderam tornar-se inimigos tão mortais? E os judeus, como podem hoje estar repetindo, talvez com ainda mais crueldade, perseguições de que foram vítimas tantas vezes ao longo da História? Nada aprenderam?

A crise atual da civilização não é só ambiental, ideológica, econômica, sanitária... Uma aguda crise ética e espiritual está a desafiar a sobrevivência da Humanidade.

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Trágico despejo

 

Não consegui separar este infeliz episódio doméstico do conflito israelenses versus palestinos. Ele talvez seja o que melhor representa o desvario humano atual.

Aquele galho da árvore do jardim cresceu demais. Estava obstruindo a passagem e tapando a visão. Há tempos pensei em podá-lo, adiei. Ele cresceu ainda mais. De novo compreendi que era preciso podá-lo, de novo adiei. Nem lembro o motivo de tantos adiamentos. Hoje parece-me que foi um simulacro daquelas muitas negligências que vamos cometendo, até que suas consequências tornem-se trágicas.

Então, tarefa inevitável, uma tarde decidi enfim pegar as ferramentas para a necessária poda. Sem a devida atenção, acho que com aquela pressa de quem teme outro pretexto para um adiamento, realizei a tão postergada poda. Não foi fácil, tanto adiamento já fizera aquele galho avantajar-se. Foi necessário um suado esforço. Depois, recuperando o fôlego e as forças, sentei-me na mureta próxima, apreciando a passagem e a visão mais franqueadas, graças à ausência do estorvo do amputado galho.

Foi então que aquele inquieto beija-flor chamou-me a atenção. Ele esvoaçava em torno do galho caído no chão, pairava, inspecionava as ramas, tenho a impressão que olhava para mim. Aproximava-se do galho caído por um lado, pairava, ia para outro lado, pairava de novo, parecia atormentado procurar por algo. Despertou minhas lamentáveis suspeitas.

Com a ajuda da esposa fomos verificar o galho cortado com mais atenção. Após alguma procura, descobrimos nele a razão da angústia da extremosa mãe beija-flor: um pequeno ninho, caprichosamente tecido com delicadas fibras vegetais, talvez das alvas painas de paineiras, bem fixado num ramo do galho decepado. E, no chão, dois restos quebrados de minúsculos ovinhos brancos.

Que arrependimento! Como pude amputar o galho sem antes uma minuciosa inspeção? Como pude adiar a poda até a época da reprodução dos passarinhos e não tomar esse mínimo cuidado? Ainda tentei toscamente remediar o crime cometido, prendi com fita crepe o delicado ninho noutro ramo perto, com mais ou menos o mesmo calibre do anterior. Uma baldada tentativa de um absolvedor resgate.

E ficamos a observar a reação da desesperada mãe, de quem assassinamos os rebentos e destruímos o lar. Depois de aflitivas buscas no galho cortado no chão, ela procurou na árvore. Acabou por encontrar o canhestro arranjo que tínhamos feito com aquele ninho tão primoroso, preso ao galho com fita adesiva. Vasculhou o ninho vazio, procurava os ovinhos. Foi e voltou várias vezes, parecia não querer acreditar. Queria despertar do pesadelo que, de uma vez, destruíra o grande galho que era seu mundo, o ninho que fora construído com tanto zelo, os rebentos concebidos com tanto desvelo.

Afinal, a mãe beija-flor desistiu do ninho remendado. Sua reação foi então surpreendente. De graciosa, amistosa e depois desolada criatura, passou a agredir com fúria todos os pássaros que se aproximavam de onde era antes o galho sua morada. Tocaiava pousada noutro galho próximo e, subitamente, com rápidos rasantes, atacava sanhaços, bem-te-vis, rolinhas, canários que desavisados se aproximassem. Cheguei a pensar que atacaria a mim e à minha esposa, caso ousássemos nos aproximar. Constatamos que a dor enlouquecera aquela criaturinha.

Não logramos deixar de fazer o paralelo com o que se vê tão amiúde pelo mundo: criaturas que têm seus territórios, seus lares, suas famílias invadidas e destruídas, podem, de uma conduta antes pacífica e amistosa, tornarem-se alucinados e odiosos inimigos, cegos pela dor da perda, da segregação, do desrespeito, da ignomínia.

A desfaçatez transforma a amizade e a paz em ódio. Quando iremos aprender a conviver em paz, cuidando de respeitar o diferente?