quarta-feira, 22 de junho de 2022

A Petrobras e o preço do combustível

Publicado no Jornal da Manhã em 23/06/2022.

A Petrobras foi criada em 1953, após uma intensa campanha popular que tinha como lema “O petróleo é nosso”. Era uma empresa 100% estatal, que coroava o entendimento que a exploração e refino de petróleo, um recurso energético estratégico, deveria ser um monopólio do Estado, que deveria beneficiar toda a população. Até meados da década de 1970 a empresa concentrou esforços de prospecção nas bacias geológicas continentais (Paraná, Amazonas, Parnaíba), com parcos resultados. A partir de então, como resposta às confirmações mundo afora da Teoria da Tectônica de Placas, deslocou suas prioridades exploratórias para as chamadas “bacias costeiras”, algumas delas emersas (Sergipe-Alagoas, Recôncavo) e outras, as mais promissoras, submersas (Campos, Santos). A partir do final da década de 1970, as bacias costeiras começaram a confirmar as expectativas: descobriram-se os campos de Garoupa e Enchova, na Bacia de Campos.

Em 1997, sob o governo neoliberal de FHC, a Petrobras deixou de monopolizar a exploração e o refino de petróleo no Brasil. Em obediência à “Lei do Petróleo”, a empresa tornou-se uma sociedade anônima de capital aberto. Uma empresa de economia mista, mas ainda mantendo o controle acionário do governo brasileiro. Na época, a Petrobras respondia, em suas refinarias, por 98% dos derivados de petróleo produzidos no Brasil.

Na prática o monopólio continuou funcionando, principalmente em razão dos governos não neoliberais que sucederam FHC e de novas leis que seguiram a descoberta, em 2006, das gigantes reservas de petróleo do pré-sal. Mas os golpes definitivos no que restava de controle estatal sobre a Petrobras e sua política de preços vieram em 2016, então sob o governo neoliberal de Temer. Primeiro, foi instituído pela direção da empresa, indicada pelo governo neoliberal, o preço de paridade internacional (PPI), que impõe que o preço, independente dos custos, seja o mesmo praticado internacionalmente. Vale lembrar que os preços no mercado internacional são dependentes de muitos fatores, desde os custos da tecnologia e logística de produção e transporte até guerras, embargos de natureza político-econômica e ação de cartéis e mega-especuladores.

Na mesma época (2016), o governo começou a reduzir a operação e a vender as refinarias da Petrobras. Com os preços atrelados aos preços internacionais, o comércio brasileiro de derivados ─ um país continental com transporte dependente dos combustíveis fósseis ─ e as refinarias das quais o governo estava se desfazendo tornaram-se a menina dos olhos de investidores, especuladores e grandes empresas petroleiras do cartel internacional. O mais recente anúncio é o da venda da Reman, em Manaus. Resumindo, alcançamos a autossuficiência de produção de petróleo, mas passamos a depender dos estrangeiros para termos os derivados. Concretiza-se assim talvez um dos maiores objetivos escondidos por trás do golpe que derrubou o governo não neoliberal de Dilma Roussef: o domínio do petróleo e do comércio de combustíveis no Brasil pelo mercado internacional.

A batalha que foi a criação da Petrobras em 1953, estatal e com o monopólio de exploração e refino, depois a transformação da estatal em empresa de capital misto em 1997, depois a internacionalização dos preços em 2016 junto com a entrega das refinarias ao capital internacional, traduzem bem o que seja o neoliberalismo, e sua ação sobre a essencial e estratégica indústria do petróleo: encolhimento do Estado, controle da produção, refino e distribuição. Tudo em benefício de acionistas de porte global, que só fazem enriquecer cada vez mais, sequestrando os recursos naturais do país e as economias do povo brasileiro. No primeiro trimestre de 2022 a Petrobras teve lucro de US$8,6 bilhões, o segundo maior do mundo entre as petrolíferas. Desse lucro, 44,51%, isto é, US$3,8 bilhões, é dos investidores estrangeiros da petroleira.

Apesar do continuado desmanche da Petrobras enquanto empresa nacional do “ouro negro”, o governo continua com o controle acionário, detendo a maioria das ações com direito a voto. É o governo, através das diretorias, conselheiros e suas decisões, quem de fato define os destinos da empresa e, na ponta do processo, o preço dos combustíveis. Mas o governo atual, como os governos de FHC e Temer, também é neoliberal. Sua lógica também é de extrair o máximo de lucro do consumidor para transferir riqueza para os donos do capital. O preço dos derivados não é culpa da Petrobras, é culpa dos governos neoliberais que a desfiguram.

A Petrobras é uma empresa com uma história exemplar que, mesmo sob constante ataque, destacou-se como inovadora em tecnologias que permitiram explorar o petróleo de águas profundas, como o são as jazidas do pré-sal. A empresa simboliza a luta contra a rapinagem internacional dos recursos naturais do país, e a capacidade nacional de encontrar soluções para desafios científicos e tecnológicos.

O governo neoliberal atual está empenhado em demolir esta história e todo seu simbolismo, e em entregar para o apetite do mercado não só o petróleo nacional, mas também as parcas economias da população brasileira, que paga os preços escorchantes dos derivados.

sábado, 18 de junho de 2022

O preço do desapreço

Vamos entender por “desapreço” a negligência, o descuido, a falta de zelo, a pressa que é inimiga da perfeição. Tudo aquilo que fazemos sem o devido cuidado. Às vezes fazemos até ignorando o que estamos fazendo: uma alienação, consciente ou inconsciente. Em qualquer dos níveis de importância de nossa vida: a higiene e a saúde pessoal, o cuidado com a casa, a educação formal e a informal, a formação e a dedicação profissional, o trato com os amigos e com todos os demais com quem convivemos, as convicções que abraçamos e que expressamos na hora de debater, argumentar, escolher, votar.

Há uma parábola bem conhecida que procura nos alertar que o desapreço não compensa. Ela conta a história de um homem que, após a morte, vê-se num mundo em que todos são convocados a fazer um percurso ao longo de uma planície, carregando cruzes. Cada um com sua cruz. O homem logo nota que as cruzes não têm o mesmo tamanho. A sua não é a maior, mas há muitas menores que ela. Começam a caminhar todos juntos, no mesmo rumo. Até que o homem se incomoda de ver tantos carregando uma cruz menor que a sua, e resolve cortar um pedaço, diminuindo-a e aliviando-se. Mais um trecho caminhado, mais um arroubo de comodismo, mais um pedaço cortado. Depois de várias podas na sua cruz, os caminhantes chegam a uma profunda grota, com largura variável. Cada caminhante tem seu lugar certo para atravessar a grota. A cruz é exatamente o comprimento que serve de ponte na passagem de cada um. O homem que diminuiu sua cruz descobre então que ela já não serve de ponte. Ficou muito curta. O guia da caminhada dirige-se então a ele dizendo que é necessário retornar e emendar a cruz com os pedaços cortados. Só assim ela voltará a ter o comprimento necessário para ultrapassar a grota.

A parábola é uma metáfora da vida. Quantas vezes não tentamos diminuir nossos encargos e depois descobrimos que só fizemos duplicar nosso trabalho? Talvez a diferença principal entre a parábola e a vida é que lá o homem parece ter um aprendizado definitivo: “Quer ultrapassar a grota? Então trate de trazer a cruz do tamanho certo!”. Já na vida, parece que demoramos a aprender a persistir nas nossas responsabilidades, para alcançar um objetivo. Damos ensejo ao aforismo de que só aprendemos pela dor. Não cuidamos adequadamente da nossa saúde, sofremos de doenças que poderíamos evitar. Não cuidamos de triar as informações e estímulos que recebemos, acabamos vítimas de manipulações e de impulsos que nos são completamente estranhos e desnecessários: consumimos produtos e ideias que, ao invés de nos ajudarem e nos emanciparem, nos atrapalham e nos fazem inseguros e submissos.

Talvez a mais nefasta consequência do nosso desapreço e desatenção seja a escolha que fazemos na hora de votar, nas situações em que o voto é a forma de manifestação e decisão. Não dedicamos tempo e reflexão para fazer escolhas que representem a defesa do interesse coletivo, e não do interesse pessoal ou de minorias elitistas e oportunistas. Muitas vezes nem nos damos ao trabalho de refletir por que valorizar o interesse coletivo, e não o interesse de minorias.

O momento de uma eleição remete à parábola do homem que tem de atravessar a grota com a cruz. Se formos conscienciosos, e escolhermos estadistas, capazes de empatia, as tensões sociais vão ser amenizadas. Vamos ultrapassar os abismos que dividem a sociedade, e avançar. Se escolhermos oportunistas, incapazes de compreender a premência da inclusão e da equidade, as grotas vão ficar ainda mais largas. As cruzes para ultrapassá-las ficarão ainda mais encurtadas pelas fraudes ao longo do percurso. As tensões vão se agravar.

 

domingo, 12 de junho de 2022

Disgraça da cachaça

 

Não sou bom bebedor de cachaça, nunca seria um conhecedor a ponto de emitir juízo avaliando o autêntico destilado brasileiro. Com muita moderação, mais porque meu organismo resiste muito pouco à branquinha, sou um apreciador amador. Mas tenho muita consideração pela bebida que vem conquistando reconhecimento no mundo todo. Não só pelo fato que a boa caninha não fica nada a dever, por exemplo, aos melhores vinhos: ela também revela as qualidades do solo, do relevo, do clima, da qualidade da cana que lhe deu origem, do cuidado na destilação e no acertado amaciamento em madeiras como a canela sassafrás ou frutos como o cambuci, que lhe completam a genealogia tupiniquim.

A cachaça tem ainda outro atributo que a torna única: é bebida de pobre, que tem nela uma companheira, que ele chama de aninha, baronesa, brasileira, dengosa, dona-branca, ela, imaculada, januária, maria-branca, moça-branca, patrícia, perigosa, sinhazinha... Tantos nomes femininos traduzindo a busca de encontrar o consolo amoroso que a realidade da vida só faz negar.

Historicamente, a cachaça não tem concorrente entre os destilados do mundo: ela evoluiu do pinga-pinga que gotejava do teto pela condensação dos vapores alcoólicos da garapa, nos tachos de produção de açúcar nos primitivos engenhos coloniais. Gotas que eram a fugaz remissão dos supliciados negros escravos, de quem tinham roubado a pátria, o povo, a família, a liberdade, a dignidade humana. Descoberta pelos escravos, a cachaça logo se tornou o segundo principal produto dos engenhos, utilizado como moeda no mercado escravocrata.

Apesar do respeito que lhe dedico, a cachaça certa vez pregou-me uma safada de uma peça. Em mim e no meu cunhado, ele sim um apreciador mais credenciado que eu. Ainda nos anos 1990, no Mercado Municipal de São Paulo, comprei várias garrafas de uma cachaça mineira, então ainda desconhecida. Ela foi recomendada pelo vendedor de uma especializada cachaçaria, atendendo a dois critérios que antecipei: boa e barata. Em casa, ao experimentar a dita cuja, surpreendi-me: ela era muito boa! Suspeitei da minha avaliação, mas cada vez que recebia um amigo cachaceiro e ele experimentava aquela branquinha, ele confirmava meu julgamento: a cachaça era muito boa! Segundo alguns, a melhor que já tinham experimentado.

Então guardei uma garrafa para meu cunhado, devia-lhe um agradecimento. Essa garrafa esperou anos, até que surgisse a oportunidade de levá-la. Morávamos em cidades distantes, ele no interior de São Paulo, eu no Paraná. Até que, quando entreguei a garrafa, ele a olhou com certo desprezo, e até fez algum comentário de desaprovação, não lembro bem qual foi. Na hora considerei-o um presunçoso mal agradecido, mas não trocamos sinceridades a respeito. Esquecemos o assunto.

Até que, meses depois, numa outra visita à cidade de meu cunhado, encontrei aquela mesma cachaça no supermercado. Feliz, comprei algumas garrafas. Só fui provar da nova aquisição de volta à minha casa. Então veio a decepção, e a compreensão: aquela cachaça já não estava tão barata como anos antes, mas não tinha nem sombra da qualidade original. A produção e o preço tinham aumentado, as garrafas tinham alcançado as prateleiras de supermercados triviais. Mas o apuro perdera-se.

Ainda não perguntei ao meu cunhado se ele chegou a degustar daquela garrafa que lhe dei. Ou se fez com ela jarras de caipirinha, para os dias de feijoada em família.

quarta-feira, 8 de junho de 2022

Maria vai com as outras

 Publicado no Jornal da Manhã em 16/06/2022.

Maria vai com as outras é uma expressão de meu tempo de criança e adolescência, usada para aquelas pessoas sem vontade própria, frouxas de caráter, que sempre tinham que copiar ou o padrão pré-estabelecido pela maioria ou a marca imposta por uma gangue. Há muito tempo não ouço nem vejo essa expressão. Hoje ela certamente sofreria a reprovação do politicamente correto. Embora ainda vivamos um mundo machista e misógino, já aprendemos a reconhecer que, mesmo amorosas e pacíficas, as mulheres ─ as marias ─ mostram muito mais firmeza de caráter que os homens. Não consigo atinar com uma expressão atual que bem substitua a arcaica maria vai com as outras. Visualizo uma folha seca ao vento. Não uma rês tangida no meio de um rebanho comportado. Esse é o gado!  Pois gado é uma expressão que tem sido usada para uma turba de indivíduos massificados. Não serve para aquele sujeito que chamava a atenção por ser a maria vai com as outras num bando variegado.

Talvez a diferença seja justamente esta. Nos últimos 60 anos aperfeiçoou-se muito a capacidade de sequestrar a vontade própria e o comportamento das pessoas. Se antes as maria vai com as outras eram aquelas esporádicas pessoas que tinham por natureza baixa autoconfiança e a tendência de seguir vontades alheias, hoje rebanhos imensos de pessoas são manipulados para seguir vontades ditadas por sofisticadíssimas tecnologias de propaganda, informação e desinformação. Mesmo que nos consideremos indivíduos com vontade própria, não é fácil resistir aos impulsos que nos reduzem aos cães de Pavlov, que reagem com reflexos condicionados a estímulos cientificamente planejados.

Para quantas finalidades temos sido manipulados! Alguns exemplos: a obediência à moda e ao status, que faz descartar vestuário, veículos, eletrônicos, utilidades, etc. ainda em bom estado, para não sermos rotulados de antiquados e fracassados; a crença que a felicidade é comprar, é possuir, que nos faz escravos de um consumismo compulsivo e nos aliena de valores como autenticidade, parcimônia e solidariedade; a submissão a tirânicos sistemas econômicos que fazem com que acreditemos que a artimanha e o dinheiro dos patrões tenham mais valor que o trabalho; a crença em mentirosas ideologias políticas que nos dizem que o sonho de um mundo de justiça social ou é uma utopia ou é a máscara que encobre regimes totalitários e cruéis; a glorificação de nações guerreiras e que almejam o poder hegemônico mundial a qualquer custo, como se elas fossem os berços da audácia, da liberdade, da oportunidade e dos direitos humanos; a obediência a igrejas que endeusam o dinheiro e a prosperidade, esquecendo valores sagrados.

Qual expressão deve substituir o antiquado maria vai com as outras para designar a manipulação coletiva que tem transformado grande parte da população num grande rebanho mundial? Sozinhas, as palavras alienação, ilusão e logro parecem não dar conta da tarefa. Talvez robotização? Pois, tal como os robôs, deixamos de ter vontade própria. Somos condicionados para reagir conforme a programação a que fomos submetidos.