Responsável pela descoberta do pré-sal, Guilherme Estrella, ex-Diretor de Exploração e Produção da Petrobras, relata em entrevista os esforços de construção da petrolífera e seu papel geoestratégico. Texto longo, mas vale por um curso de História e Geopolítica do Brasil nos últimos 100 anos. Vale muito o empenho encontrar tempo para ler.
Por Gabriel Deslandes, da Revista Ópera, 20 de setembro de 2021.
Geólogo,
conselheiro do Clube de Engenharia e ex-diretor de Exploração e Produção da
Petrobrás (2003-2012), o carioca Guilherme Estrella conhece como poucos a
história da estatal que ele ajudou a projetar como uma das mais importantes
empresas do mundo. Apontar esse protagonismo não é força retórica. Ele
coordenou a equipe técnica que, em julho de 2006, esteve à frente da descoberta
geológica que representaria um ponto de virada na capacidade energética do
Brasil: os campos do pré-sal na Bacia de Campos.
Passados
14 anos desde que a Petrobrás avisou à Agência Nacional do Petróleo (ANP) sobre
o petróleo encontrado no Campo de Lula, na Baía de Santos, o primeiro do
pré-sal a ter suas reservas confirmadas, Estrella analisa com indignação
os planos de desinvestimento a que a estatal está sendo submetida sob o
governo Bolsonaro. Para o geólogo, a atual gestão da Petrobrás aprofunda a
transformação da companhia em uma instituição financeira – processo, segundo
ele, iniciado no governo FHC –, sem compromisso com o desenvolvimento
industrial e tecnológico do Brasil.
Em entrevista exclusiva à Revista Opera, Estrella relata os esforços de construção da Petrobrás e o papel geoestratégico da estatal em colocar a produção petrolífera em benefício da economia nacional e do progresso científico-técnico. O geólogo explica como o arranjo institucional de uma empresa integrada e investidora em todo o território brasileiro atraiu o interesse do que ele chama de “forças antibrasileiras”. Nesse cenário, também faz um alerta às esquerdas: sem reverter a desnacionalização do setor energético, caso um governo progressista se eleja em 2022, ele será apenas o “gestor de uma colônia”.
Revista Opera: O senhor afirma que a Petrobrás representa uma prova de que
o Brasil dispõe de condições para assumir posição de protagonista em uma cena
geopolítica mundial em transformação. Dada a sua importância como player global, o que diferencia
historicamente a Petrobrás das estatais de petróleo de outros países, como a
Pemex do México ou a PDVSA da Venezuela?
Guilherme
Estrella: A
pergunta é muito interessante, e é a primeira vez que eu a ouço. Mas muito
interessante mesmo é eu ter a resposta na ponta da língua (risos). A diferença é muito simples: as outras empresas
estatais foram fundadas em países que já eram produtores de petróleo – a Pemex
na década de 1930 e a PDVSA depois. Na verdade, a Pemex e a PDVSA não enfrentaram
o grande desafio que nós enfrentamos na Petrobrás. Associado a isso, a
capacidade de consumo de petróleo num país gigantesco como o nosso, hoje com
mais de 200 milhões de pessoas, é muito maior do que as capacidades internas do
México e da Venezuela – países menores em relação à extensão territorial
brasileira e à nossa população. Isso não é demérito para o México e a
Venezuela, só estou constatando um fato.
A
Petrobrás é fundada em 1953 já com um processo de tentativa de industrialização
brasileira, e o Brasil importava 80% do nosso consumo interno. A Petrobrás foi
criada diante de um enorme desafio que, no setor petrolífero, é grandemente
carregado por capacidade científica, tecnológica e de engenharia. Essa é a
grande diferença. A Petrobrás fez 67 anos de enfrentamento desse desafio.
Produzíamos muito pouco nas bacias terrestres. Chegamos a um momento que
pensamos: olha, se não formos para o mar, não conseguiremos a autossuficiência,
absolutamente fundamental para a construção de um projeto nacional-desenvolvimentista
soberano com a industrialização também autônoma.
Outra
coisa é que, 10 anos após a fundação da Petrobrás, em 1963, a empresa fundou o
Centro de Pesquisa – o CENPES – numa decisão moderna. Ele foi fundado junto a
uma universidade – a Universidade do Brasil, na Praia Vermelha. Essa ligação de
um centro de pesquisa industrial com uma universidade, que detém o conhecimento
científico, é o cara do chão de fábrica junto com o PhD. Isso é uma solução
incomum nas empresas. A Petrobrás iniciou a formação de profissionais de seu
quadro técnico para se tornar uma empresa completamente competente a nível
internacional desde seu início. Mas isso não para aí, pois há outro ponto
interessante. Uma coisa é você produzir petróleo dentro de uma realidade em que
a tecnologia e o conhecimento geocientífico, de engenharia e de operação do
setor petrolífero, já estejam disponíveis no mundo e já sejam de conhecimento
mundial, como foram as nossas descobertas em águas rasas na Bacia de Campos.
Mas na hora em que, mantida a busca por tornar o Brasil autossuficiente,
descobrimos petróleo na Bacia de Campos em águas profundas, nos deparamos aí
com o desafio maior de toda a vida da Petrobrás. Temos muito petróleo em águas
profundas, mas ninguém tem tecnologia no mundo. A Petrobrás enfrenta isso como
monopólio estatal, sem nada desse negócio de competição, algo absolutamente
secundário, pois o que vale é o compromisso da companhia com o Brasil. A
Petrobrás venceu esse desafio, e desenvolvemos tecnologia com base em conhecimento
geocientífico. Dominamos a tecnologia pela primeira vez no mundo de produção em
águas profundas. Isso diferencia a Petrobrás pelos desafios que tivemos em
nossas origens de nos tornar uma empresa de petróleo com um centro de pesquisa
extremamente avançado, ligado à universidade brasileira. Tanto que, quando a
Universidade do Brasil acabou, e a UFRJ se instalou na Ilha do Fundão, a
Petrobrás imediatamente construiu o CENPES lá, ao lado da Escola de Engenharia
e do Instituto de Geociências.
Uma
coisa importante é que essas empresas estatais estrangeiras – acho que é o caso
da Pemex, mas, com certeza, é o da PDVSA – foram decorrentes de uma decisão de
estatização de empresas privadas que já existiam operando no setor. Já a
Petrobrás, não! Fundamos a empresa com o povo brasileiro nas ruas. Muitas
informações dizem que Getúlio Vargas, inclusive, veio a se suicidar por causa
da Petrobrás. Nós construímos a Petrobrás do zero! Não havia nenhuma empresa
estrangeira a ser estatizada, de onde poderíamos partir de algum conhecimento
adquirido ou de sua capacitação. Isso a diferencia não só da PDVSA e da Pemex,
mas de todas as empresas estatais petrolíferas do mundo.
Revista
Opera: Entre as décadas de 1930 e 1960, o
Brasil contava com militares engajados na defesa do monopólio estatal do
petróleo e no desenvolvimento de uma política petrolífera nacional, como os
generais Horta Barbosa e Leônidas Cardoso (pai de FHC). Hoje, em um governo que
conta com mais generais ocupando cargos que durante a ditadura, há um apoio tácito
desses militares ao fatiamento da Petrobrás. O que o senhor acha que mudou na
relação dos militares com a Petrobrás para chegarmos a esse cenário?
Guilherme
Estrella: A
Revolução de 30, que trouxe o Getúlio para governar o Brasil, significou o
seguinte: até 1930, nós estávamos no século XVIII. Não estávamos nem no século
XIX porque, tal qual a nossa metrópole Portugal e a Espanha, não tínhamos
carvão e não participamos da Revolução Industrial. O Brasil continuou agrícola
durante o final do século XVIII, depois da Primeira Revolução Industrial, e o
século XIX. Qual era a nossa energia, enquanto todo o resto do mundo estava
usando locomotivas, máquinas a vapor e siderurgias? Era a roda d’água, a tração
animal e o braço escravo! Com a República, isso não se modificou muito. Tanto é
que a Primeira República era conhecida como Café com Leite, pois quem
sustentava o Brasil era a exportação de café dos paulistas e a produção
leiteira dos mineiros. Alternava-se um presidente paulista e um mineiro. Quer
dizer, uma continuidade do século XIX, que foi também uma continuidade do final
do século XVIII. Nada mudou na essência da economia e na definição do papel do
Estado brasileiro.
Por
que o Getúlio entra? Porque estava na Presidência da República um paulista
chamado Washington Luís – que, aliás, nem era paulista, pois ele nasceu em
Macaé, no estado do Rio. Houve a crise da Bolsa de Nova York de 1929, afetando
o mundo inteiro, e o café, que era nossa principal pauta de exportação, perdeu
muito valor. A elite paulista ligada à produção de café achou que aquela
situação era especial, o Brasil perdia recursos da exportação, São Paulo está
sendo muito prejudicada, e o próximo presidente tinha que ser paulista e não
mineiro. Isso quebrou esse acordo da República Café com Leite. Minas não aceita
e apoia Getúlio Vargas. Então, a ascensão do Getúlio foi decorrente de uma
crise internacional.
Aí,
Getúlio entra e moderniza o Estado brasileiro, mas ele não entrou sozinho. Ele
não pegou um cavalo e veio amarrá-lo no Obelisco da Avenida Central do Rio de
Janeiro. Ele tinha o apoio do Exército brasileiro, dos tenentes de 1922, já
nacionalistas, descontentes com o rumo do Brasil. Esses militares nacionalistas
participaram do seu grupo. Inclusive, ele criou o Conselho Nacional de Petróleo
(CNP) em 1938 e, como você disse, colocou o general Horta Barbosa como
presidente. O Conselho tinha na sua direção representantes da Marinha, Exército
e Aeronáutica, ou seja, Getúlio já configura a gestão do CNP com militares para
assegurar que os direitos do Estado brasileiro fossem respeitados.
E
aí estoura a Guerra. Nós descobrimos petróleo em 1941 no Campo de Candeias, e o
Getúlio faz um acordo com os Aliados para o Brasil entrar favoravelmente a eles
no conflito e, em contrapartida, negociarmos tanto a Usina Siderúrgica de Volta
Redonda quanto a criação da Vale, encampando uma empresa estrangeira que
minerava no Brasil em 1942. Mas lá de fora o grande poder mundial já sabia que
o Brasil era um país riquíssimo em recursos estratégicos minerais, tal como
dizia o professor Batista Vidal. Em segundo lugar, estava se criando aqui uma
mentalidade nacionalista e soberana para a gestão do nosso país, o que seria,
já naquela época, uma ameaça ao poder do capital centralizado nos EUA e na
Europa. E o que acontece? A Alemanha assina a rendição em maio de 1945, o Japão
assina em setembro, e o Getúlio é deposto em novembro. Isso não pode ser uma
coincidência! Isso era um projeto já devidamente estudado e planejado no
exterior. Outra coisa: o Getúlio é deposto pelo mesmo grupo de militares de
formação nacionalista que, ao menos, o tinha sustentado desde 1930. É uma coisa
que precisa ser estudada também. É claro que o Getúlio era chefe de uma
ditadura com nuances fascistas, que perseguia os comunistas. Não era um governo
democrático e, com a derrota da Alemanha, houve uma onda democrática sob novos
ideais e princípios, que era a democracia liberal representativa. Certamente
isso influenciou. Depuseram o Getúlio, e foi eleita uma Assembleia Nacional
Constituinte. Ela é que faz a Constituição de 1946, que anula a política
nacionalista em relação ao subsolo brasileiro e ao petróleo da Constituição de
1937, a “Polaquinha” de Getúlio.
Só
que as Forças Armadas brasileiras ainda tinham na sua composição aquele grupo
nacionalista lá, que vem desde os tenentes de 1922 a 1927 e que apoiou o
Getúlio, mas já com uma grande influência dos EUA para uma conformação não
socialista da gestão do Estado brasileiro. Getúlio, pela pressão, foi levado ao
suicídio. Entraram outros presidentes e veio o Jango, com aquele espírito
nacionalista de confrontar o capitalismo internacional. Ele é deposto por esse
mesmo grupo, já com essa coisa do comunismo, pois já havia uma bipolarização
mundial dos EUA e URSS. Mas, sob o ponto de vista de algumas bases de projeto
nacional, os militares de 1964 mantinham o pensamento
nacional-desenvolvimentista do Getúlio Vargas.
Um
desses generais era o Geisel. Eu até participei disso de uma forma bastante
lateral. A OPEP foi fundada em 1960 e, no início da década de 1970, houve uma
onda de nacionalização de empresas estrangeiras de petróleo nos países da
organização. O Iraque nacionaliza a British Petroleum, e os ingleses retiram
todo o corpo técnico da empresa, a Corte de Justiça de Haia decreta o embargo
do petróleo iraquiano – a mesmíssima coisa que os EUA estão fazendo agora com a
Venezuela e o Irã. O Iraque entrou numa situação delicadíssima. Nós
importávamos 70% do nosso petróleo, e a maioria dele vinha do Iraque. Com a
interrupção de fornecimento iraquiano, imagina a dificuldade brasileira de
partir para contratos com outros fornecedores. O Brasil ia parar! O que o
Geisel faz? Ele rompeu o embargo de Haia e teve uma atitude nacionalista de
efeito geopolítico, pois o rompimento do Brasil foi acompanhado por muitos
outros países que dependiam do petróleo iraquiano. Como não tinha mais quadros
técnicos, o governo iraquiano abre alguns blocos para serem oferecidos a nações
para atividades de exploração e produção. Como o Brasil tinha tomado essa
posição, que salvou o Iraque no final das contas, eles nos ofereceram alguns
blocos lá, e a Petrobrás pegou dois blocos. Eu fui designado para ser gerente
de exploração da Petrobrás em Bagdá e passei lá quase três anos. Foi nesse
período que descobrimos o campo de Majnoon, que era gigantesco e que o governo
iraquiano não admitiu que ficasse de propriedade de uma empresa estrangeira.
Então, eles discutiram o contrato e tomaram o campo para si.
Veja
só: mesmo generais que impuseram uma ditadura no Brasil, tortura e coisas
extremamente negativas para o povo brasileiro, tinham aquela origem getulista
que fazia com que os caras tivessem uma âncora em suas reflexões em relação à
soberania nacional. Isso não ocorre mais porque a geração que está aí sucedeu
aquela da Revolução de 30. Mas não são só as Forças Armadas. Olha essa decisão
do Supremo Tribunal Federal dizendo que a Petrobrás pode vender tudo. Estamos
num problema que envolve Forças Armadas e o aparato civil de Estado.
Tem
outros dois pontos. Nesse ínterim, surge a China como a grande ameaça à
unipolaridade dos EUA, hegemônica na geopolítica mundial. Isso aguça a atenção
norte-americana em relação a eventuais países que possam se alinhar mais com
interesses chineses. Outro ponto é que, na época da ditadura, não havia o
pré-sal. O Brasil com o pré-sal adquire uma capacidade de desenvolvimento,
autonomia e soberania que não tínhamos naquele período, o que desperta ainda
mais a preocupação dos EUA com o Brasil. Isso tudo, junto aos BRICS, em que o
Brasil sinalizava uma associação com Rússia, China, Índia e África do Sul,
realmente foi considerado inaceitável para os EUA. Então, aumentou-se a pressão
americana junto às Forças Armadas brasileiras. Devem ter feito uma pressão gigantesca
para que elas, afinal, abandonassem uma postura mais nacionalista e
independente em relação aos EUA.
Revista
Opera: Na live em que participou no canal Tutameia, o senhor relatou seu espanto ao assumir o cargo de diretor de
Exploração e Produção da Petrobrás em 2003 e se deparar com a abertura de ações
da empresa na bolsa de Nova York no governo FHC. Como esse processo de
financeirização da Petrobrás desconfigurou as próprias estratégias da gestão da
empresa?
Guilherme
Estrella: Tudo
que está acontecendo hoje no Brasil é produto de um fato também geopolítico.
Insisto na minha visão: o Brasil não é um país pequeno. Somos o segundo país do
mundo em dimensão territorial, considerando a Amazônia Azul. Por causa do
atraso do desenvolvimento industrial, o Brasil é um país de soberania
fragilizada, o que cria interesses externos para nos dominar. Com a queda da
URSS, termina ali a configuração da bipolaridade geopolítica mundial. Os EUA
assumem a hegemonia num mundo unipolar. Certamente os estrategistas
norte-americanos pensaram: “Olha, temos que preparar agora uma série de medidas
para que não deixemos que o comunismo e o socialismo, as ideias praticadas pela
URSS, recuperem seu poder para nos enfrentar novamente”. Então, pensaram eles:
“Vamos tomar algumas medidas para que os países emergentes as sigam para que se
alinhem à nossa visão ideológica de um mundo capitalista”.
O
governo americano, Banco Mundial, FMI, todas as entidades ligadas ao grande
capital internacional se reúnem em Washington no final de 1989 e publicam o que
foi chamado de Consenso de Washington. Nele, havia dez pontos: disciplina
fiscal, redução dos gastos públicos, reforma tributária, câmbio de mercado,
juros de mercado, abertura comercial, investimento estrangeiro com eliminação
de restrições, privatização das estatais, desregulamentação, afrouxamento das
leis econômicas e trabalhistas e direito à propriedade industrial. Essa receita
é o que nós estamos vivendo hoje, com um ministro da Economia completando os
últimos passos para que essas medidas sejam absoluta e completamente seguidas.
Quando
esses preceitos são repassados ao Brasil, começa a fase de privatização das
nossas estatais com Collor, Itamar e Fernando Henrique – este último privatizou
tudo, menos a Petrobrás. Ele só não fez isso porque a história popular da
Petrobrás e o prestígio que ela tinha e tem junto à sociedade brasileira eram
problemáticos, mas chegaram a mudar o nome para “Petrobrax”. De qualquer
maneira, a gestão da empresa no governo FHC já era privatista, e, de acordo com
o modelo do capitalismo internacional, uma companhia deve ter como objetivo ser
cotada na Bolsa de Nova York. Essa é quase uma regra do capitalismo
internacional. Isso nos cria uma barreira e um aprisionamento na gestão
financeira da companhia para que pré-requisitos contábeis fossem aplicados na
Petrobrás. Todos nós sabemos que a Bolsa de Nova York atende aos objetivos de
Wall Street, a esse contexto capitalista financeiro. Logo, a autonomia de
gestão da Petrobrás foi essencialmente prejudicada.
Revista
Opera: O Centro de Pesquisas da Petrobrás –
CENPES – foi criado para promover o desenvolvimento científico-técnico do setor
energético e industrial junto às universidades públicas brasileiras. Desde os
anos 1960 até hoje, quais foram os altos e baixos da construção dessa rede
integrada de pesquisa, tecnologia e inovação, já que o senhor participou desse
processo?
Guilherme
Estrella: Tenho
que contar outra história também (risos). Você sabe
qual foi o centro de pesquisa que mais revolucionou o desenvolvimento
tecnológico no mundo? A Escola de Sagres, do governo real português, numa visão
absolutamente moderna que até hoje não se consegue seguir. A Escola de Sagres –
que não era um prédio, mas um projeto – tinha qual objetivo? Portugal estava
numa situação muito difícil porque o comércio através do Mediterrâneo era
controlado por Gênova, Veneza e outros países. Portugal precisava atingir a
Índia por fora do Mediterrâneo. Era um desafio nacional. Então, o governo
português cria um projeto para construir uma embarcação que enfrentasse o
Atlântico, diferente das embarcações do Mediterrâneo que não estavam preparadas
para as condições marítimas que o Oceano Atlântico apresentava. E Portugal
inventa a caravela – não só o casco, mas a vela, quilha e leme – em tentativas
de sucesso e erro. Para isso, os portugueses importam de toda a Europa
cientistas, geógrafos, cartógrafos, oceanógrafos e físicos, formando um grupo
científico de alta qualidade. Esse pessoal, importantes cérebros e competências
científicas, se juntou e trabalhou junto aos estaleiros portugueses. Veja só,
antes os portugueses faziam um projeto e lançavam um cara no Atlântico, mas ele
ia e não voltava. Então, percebiam que estavam errando. Foi assim até o dia em
que um desses caras voltou – Gil Eanes, o primeiro navegador a dobrar o Cabo
Bojador e retornar. Aí, os portugueses disseram: “Esse é o nosso projeto!”.
Esse
é o resultado de jogar o conhecimento científico na fábrica, no projeto de
engenharia. É um negócio absolutamente espetacular, e Portugal tem esse mérito.
E foi isso que a Petrobras fez. O CENPES se associou às universidades. Não era
assim antes, quando eu fui trabalhar lá como chefe de setor de Geoquímica e me
tornei o superintendente-adjunto do engenheiro José Paulo Silveira. Até o
Silveira entrar, o CENPES estava junto da UFRJ, mas separado da frente
operacional. Esse foi um desafio grande a ser vencido porque, entre os
pesquisadores, forma-se uma certa visão que menospreza o trabalho do chão de
fábrica. Do outro lado, na frente operacional, o cara que está lá dando duro
diariamente produzindo petróleo também não quer saber do professor
universitário e acha que ele vai lá só para encher o saco. Ou seja, havia, de
ambas as partes, uma inaptidão para trabalharem juntos. Pois o Silveira chegou
e transformou o CENPES, levando o conhecimento científico e tecnológico para a
frente operacional. É na frente operacional que você precisa ter o pesquisador
ao seu lado para identificar o problema e levar para o centro de pesquisa para
resolvê-lo. Isso mudou a Petrobrás! Ela começou a se transformar numa empresa
mundialmente reconhecida por isso. Essa nova modelagem do Centro de Pesquisa
surge muito relacionada à descoberta do petróleo em águas profundas, quando
passamos a ir juntos para resolver os problemas, e esse foi o grande salto da
área de pesquisa. Ganhamos, inclusive, o primeiro Prêmio Nobel da Engenharia de
Produção – o Offshore Technology Conference –
em 1992, quando eu já era superintendente regional do CENPES. O reconhecimento
internacional desse fato fundamental eleva a capacitação da Petrobrás para uma
posição de ser uma das principais empresas petrolíferas mundiais.
Só
para contar mais uma história. Descobrimos o pré-sal numa situação mais difícil
do que das águas profundas de Campos, de onde a gente já retirava petróleo com
o pé nas costas. O pré-sal está em águas ultraprofundas, acima de 1.000 metros
indo até 2.400 metros de profundidade. Realmente, um desafio gigantesco. Mas
não houve problema para nós, pois, naquela primeira fase, apenas estendemos a
tecnologia e corrigimos as coisas que precisavam ser modificadas. Entramos com
uma certa tranquilidade. Um dos nossos participantes de consórcio era a British
Gas, uma empresa pequena. De vez em quando, o presidente da British Gas
Internacional nos visitava. Certa vez, estávamos sentando o pau nas instalações
do sistema de perfuração do pré-sal, e ele veio e nos disse: “Olha, Mister
Estrella, quando eu chego na Inglaterra e conto o que vocês fazem aqui, o
pessoal diz ‘não, você está maluco, os caras não podem estar fazendo isso!’”. É
isso! Você não vê um único acidente no pré-sal onde a Petrobrás é operadora
única. Nem acidente operacional, nem vazamento de óleo. Essa transformação do
CENPES foi decisiva e crítica para que a empresa ascendesse à posição de
respeitabilidade técnico-científica no mundo inteiro.
Revista
Opera: Assim que a Petrobras encontrou os
campos do pré-sal, jornalistas e comentaristas da grande mídia brasileira
duvidaram da descoberta. Depois, alegaram que a Petrobras não detinha
tecnologia para extrair petróleo em águas tão profundas. Em seguida, afirmaram
que o custo da extração seria muito alto, o que tornaria a operação inviável
economicamente. Quando veio a crise de 2015, disseram que a Petrobrás
precisaria vender ativos porque “estava quebrada”. Em que medida essas
narrativas da mídia hegemônica retardaram ou prejudicaram os investimentos no
pré-sal?
Guilherme
Estrella: Na
verdade, nós gerenciávamos os projetos do pré-sal sem dar bola para esses
comentários. É claro que a grande mídia brasileira é tradicionalmente ligada a
interesses não-brasileiros. A Rede Globo é um exemplo, e você não poderia
esperar de seus jornalistas e articulistas uma atitude minimamente nacionalista
e confiante na capacidade brasileira. Até porque a Petrobrás carrega em si uma
prova da nossa competência e impacta diretamente a nossa autoestima como povo e
sociedade. Os portugueses têm orgulho até hoje da Escola de Sagres e dos
Grandes Descobrimentos, e isso faz parte da consciência e do sentimento de
soberania de Portugal. Da mesma forma, a Petrobrás também tem isso, num país
gigantesco e de possibilidades enormes de desenvolvimento. Então, ela sempre
foi um alvo de atitudes destrutivas e de desmoralização de empresa, mas, como
na época (anos 2000) o governo era nosso, não ligávamos muito
para isso. De toda forma, os exemplos estão aí. Primeiro, disseram que o
pré-sal era propaganda. Quando fizemos a descoberta no maior campo de gás do
Brasil no Campo de Mexilhão, a Miriam Leitão disse que o campo não era grande e
deveria ser chamado de “Mexilhinho”. Essa empresa nunca defendeu o Brasil e tem
a visão de uma elite capitalista brasileira que está ligada hoje aos capitais
financeiros.
O
problema da crise de 2014 com a queda do barril de petróleo é o seguinte. A
empresa estava endividada? Estava, naturalmente. Tínhamos um projeto de país
com o pré-sal em nossas mãos numa oportunidade de soberania energética
brasileira com base de um desenvolvimento industrial autônomo. Mas, do outro
lado da mesa, há um banco. A gente produzia 100 ou 200 mil barris por dia, e os
bancos continuavam emprestando. O que um banqueiro quer? Se você vier a falir,
aí mesmo é que ele perde o dinheiro dele! O interesse do banqueiro é que você
não enfrente uma falência. Mas o que convence a ele que você, uma empresa
petrolífera, não a enfrentará? São as reservas de petróleo! O pré-sal são
dezenas de bilhões de barris de reserva de petróleo. O banqueiro de maneira
alguma criaria problemas num processo de alongamento do perfil da dívida da
Petrobrás. Afinal, ele sabe que ele está com um dinheiro muito grande investido
e sabe que é o pré-sal que garante o pagamento desse empréstimo. E a Petrobrás
tem uma história de prestígio no mercado financeiro internacional inigualável e
nunca deixou de pagar as suas dívidas. Então, tínhamos que sentar à mesa com os
banqueiros e dizer para alongar a dívida. Isso é o que toda empresa com
dificuldades faz! Outro ponto é que os banqueiros tinham experiência (nesse tipo de negociação) porque a crise não atingiu só
a Petrobrás, mas todo o setor petrolífero mundial quando o petróleo caiu de 100
e tantos dólares para 30 dólares em poucos meses em 2014.
Agora,
quando você muda a abordagem econômica para resolver os problemas financeiros,
acontece o que está acontecendo hoje. Estamos com a dívida pública quase
chegando ao PIB, e a maior parte da nossa renda é para pagá-la a banqueiros
internacionais. Ora, um país desse tem todas as condições de, primeiro, fazer
uma auditoria dessa dívida, que é fundamental para sabermos o que devemos
mesmo. Getúlio, lá na década de 1930, fez uma auditoria e anulou a dívida com
bancos americanos e ingleses. Temos que fazer, como a Dr.ª Maria Lúcia Fatorelli
apresenta, uma auditoria dessa dívida para saber efetivamente o que deve ou não
ser ressarcido ao mercado financeiro. Mas a Petrobrás está aí, e quem tem o
pré-sal não precisa se preocupar com financiamento de sua dívida.
Revista
Opera: Em setembro de 2013, Edward Snowden
denunciou que a Agência de Segurança Nacional dos EUA espionava a Petrobras.
Por que a empresa falhou em se proteger desse tipo de crime? De quais
mecanismos e ferramentas a Petrobrás dispunha naquele momento para preservar
seus dados e que não foram utilizados?
Guilherme
Estrella: A
constatação da interferência da CIA e do interesse dos EUA, representando o
grande capital internacional, no pré-sal brasileiro começou com a reativação da
4ª Frota três meses após anunciarmos a descoberta. Ora, por que os EUA
reativaram uma frota naval que estava parada desde o final da Segunda Guerra
Mundial? Era um sinal dos EUA: “Olha, nós estamos aqui!”. Logo depois que
perfuramos o poço descobridor do Campo de Lula, o computador do poço foi roubado
no porto do Rio de Janeiro. Fizemos uma reunião em Brasília sobre isso. Claro
que foi a CIA que roubou! Faz parte de todo o projeto de obtenção de
informações para que medidas contraditórias ao interesse nacional fossem
tomadas por forças antibrasileiras. Todo um conjunto tecnológico que certamente
não dispúnhamos e não dispomos até hoje foi empregado num processo de
espionagem na Petrobrás.
Há
alguns anos, os EUA discutem denúncias de intromissão de hackers russos nos
computadores da segurança norte-americana e interferência nas eleições
americanas. São tecnologias extremamente sofisticadas que não tínhamos e não
temos ainda. Não foi uma falta de vontade. Mas, de alguma forma, nós reagimos
garantindo a continuidade do processo até aprovarmos o novo marco regulatório
do pré-sal, que atendia perfeitamente, naquela época, às necessidades nacionais
de melhoria das condições de vida do povo brasileiro, com o conteúdo nacional e
o fundo social para investimento em educação e saúde. Eram recursos amarrados à
lei para evitarmos uma eventual doença holandesa, com desregramento da
aplicação das receitas provenientes do petróleo. Apesar disso tudo, essas
coisas foram conseguidas. O novo marco regulatório deu o contorno e a base
legal da gestão soberana das riquezas do pré-sal, ainda que as revelações do
Snowden viessem a aflorar de maneira clara e contundente.
Revista
Opera: A Operação Lava Jato impactou a cadeia
de fornecedores da Petrobrás, tendo um impacto negativo, sobretudo, sobre o
estado do Rio de Janeiro, onde muitos municípios são dependentes da receita do
petróleo. O senhor acredita que houve motivação por trás dessas operações com
objetivo político de atingir a economia fluminense?
Guilherme
Estrella: A
debacle da economia fluminense foi resultado de um processo geral, mas que
tinha como centro de atenções os investimentos da companhia a Bacia de Santos e
o pré-sal. O pessoal que não está afeito a conhecimentos geológicos específicos
pode achar que a Bacia de Santos esteja em São Paulo, mas ela começa em Cabo
Frio, e os campos do pré-sal estão em frente à Barra da Tijuca. Então, pela
importância da participação da indústria do estado do Rio de Janeiro e das
universidades, da formação de profissionais de todos os tipos, a Petrobrás
estava diretamente envolvida. É natural que o Rio fosse grandemente beneficiado
por essa proximidade das operações do pré-sal.
A
Lava Jato entrou por um problema de corrupção que houve na Petrobrás, mas teve
como fundamento principal a demolição de todo aquele projeto de desenvolvimento.
Isso veio muito à tona pelas denúncias do The Intercept, que
demonstraram com clareza meridiana o caráter discriminatório das investigações,
direcionadas com o objetivo de atingir a Petrobrás e o pensamento
nacional-desenvolvimentista brasileiro. Isso foi claro. Se fosse uma coisa
nativa e tupiniquim, poderíamos ter outro tipo de resultado. Mas não foi! Foi
conduzida pelo Departamento de Estado dos EUA, sob orientação da Agência
Nacional de Segurança norte-americana e associação direta com a CIA. A Lava
Jato foi uma ferramenta a serviço de interesses antibrasileiros.
Enquanto
na crise americana dos derivativos em 2008, o governo apoiou e salvou as
empresas envolvidas. Como mostra aquele filme Inside Job (2010),
foram 30 trilhões de dólares que isso custou ao governo americano no salvamento
de empresas dos EUA. A General Electric faliu, a General Motors faliu, bancos
faliram, e o governo americano não deixou as empresas quebrarem porque é lá que
o conhecimento científico-tecnológico e a capacitação construtiva estão
localizados. Não é com os donos das empresas. É nos corpos técnicos que está o
valor estratégico delas para seus países de origem. E nós não fizemos isso. A
Lava Jato conformou a punição ocorrida no Brasil em cima das empresas. Acabamos
com nossas grandes empresas de engenharia e com os corpos técnicos de
engenheiros brasileiros, que não tinham nada a ver com a corrupção. Colocamos
na rua milhares de engenheiros de uma competência técnica absolutamente ímpar
num país ainda atrasado industrialmente. Devíamos ter feito como os EUA:
punam-se os diretores e presidentes, mas preserve-se a capacitação. O prejuízo
para o Brasil foi gigantesco.
Revista
Opera: A atual gestão da Petrobrás tem um plano
de desinvestimento com foco em concentrar as atividades da estatal no eixo
Rio-São Paulo, sobretudo nos setores de exploração e produção. Quais as
consequências dessa política, no médio e longo prazo, para a questão energética
nacional e para as economias regionais?
Guilherme
Estrella: Qual
é o papel de uma empresa estatal? Ela representa o governo e o Estado e, nesse
contexto, a população de seu país. Claro, como uma empresa do Estado, ela tem
por obrigação defender os interesses da nação. A presença da Petrobrás no
Brasil inteiro já estava sendo destruída fortemente pelo governo FHC. Dei uma
entrevista logo depois que assumi a diretoria e vieram me perguntar: “Como o
senhor, que passou oito anos fora da empresa, encontrou a Petrobrás?”. Eu
respondi: “Não encontrei uma empresa de petróleo, mas uma instituição financeira
de investimentos no setor petrolífero”. Naquela época, a Petrobrás já tinha se
despido do compromisso com o Brasil. Fechamos unidades na área de exploração e
produção, fechamos em Santa Catarina, íamos fechar no Espírito Santo, estávamos
num processo de venda de ativos terrestres. Quer dizer, deixando de ser uma
empresa estatal para ser uma empresa, como é hoje, de remuneração de seus
acionistas.
Dizíamos
que uma empresa estatal deve estar, por definição, em todo o Brasil,
principalmente operando num setor tão estratégico e básico para o
desenvolvimento nacional, que é a energia – no caso, combustíveis líquidos e
gás natural. Havia também como missão o levantamento das possibilidades
petrolíferas de hidrocarbonetos de todas as bacias brasileiras. Com aquela
visão – e eu participei disso pessoalmente –, a estatal tinha nas áreas onde
operava uma interseção com a sociedade gigantesca, sob o ponto de criação de
empregos e desenvolvimento das economias locais e regionais. Nos estados em que
a Petrobrás operava, ela era a maior empresa de lá, mesmo em unidades não muito
gigantescas, como em Macaé.
Outra
coisa é que a Petrobrás, como nós recuperamos como sistema integrado,
enfrentava variações de preço do petróleo com muito mais segurança do que uma
empresa que lida só com grandes campos. Vamos dar um exemplo: se um campo no
Rio Grande do Norte está produzindo petróleo mais caro do que o petróleo
importado, você vai fechar esse campo? Claro que não, dentro de limites. Por
quê? Porque, se um campo produz petróleo a 5 ou 10 dólares mais caro que o
petróleo importado, você consegue diminuir desse custo de produção os
resultados colaterais que a presença da Petrobrás tem na área, gerando
empregos, promovendo empresas, pagando impostos, tendo investimento social.
Tudo isso faz parte do espírito de uma estatal. E mais: é melhor gastar 10
dólares pelo barril pagando em reais do que gastar divisas comprando petróleo
importado. Quando um campo, em termos de apreciação e referência internacional,
dava um pouco de prejuízo, a grande produção em outros campos compensava. Isso
é que é importante numa empresa estatal. Compensam grandes lucros em um dos
elos com eventuais pequenas perdas em outros elos. O sistema era
autossustentável, seguro e compacto na gestão integrada, sem problema nenhum.
A
partir do momento em que a Petrobrás visa se transformar num fundo de investimento,
não se quer saber de interseção com a sociedade local. Agora eles só querem
grana. Só querem saber de lucro máximo no prazo mínimo e sem risco. É o caso da
Refinaria de Mataripe, na Bahia. Me disseram: “Não, Estrella, essa refinaria
não dá prejuízo. Ela dá lucro”. Ora, mas essa não é a lógica do fundo de
investimento financeiro. O lucro da Refinaria de Mataripe é comparado ao lucro
de um campo no pré-sal. Aí ela perde! É claro que perde! Então, para que você
vai continuar com a Refinaria de Mataripe se você pode pegar o dinheiro com que
você a opera e investi-lo no pré-sal? E mais: quanto vale a Refinaria de
Mataripe? R$ 5 bilhões? A gente vende, embolsa essa grana, distribui para os
acionistas da Bolsa de Nova York e emprega o restante no pré-sal porque lá vai
dar muito mais lucro. Essa é a lógica da atual gestão da companhia. Ela vai
sair do Brasil inteiro, renunciando ao seu papel de empresa estatal. É uma
empresa controlada por um Estado privatista.
Nós
tínhamos obras de infraestrutura. O nosso compromisso estava em beneficiar o
habitante do solo das localidades com o produto do solo dessas localidades. Era
uma integração nobre do Estado brasileiro com a sociedade nas escolas, na
cultura, nos empregos, na relação com as universidades do Rio Grande Norte,
Ceará, Bahia e Alagoas. Isso tudo não é do interesse de um fundo transnacional.
Eles querem é grana! O que isso representa? Ficar só com o pré-sal e as
refinarias do eixo Rio-São Paulo. Por que não querem a BR Distribuidora? Por
que se preocupar com o posto de gasolina no Rio Amazonas, lá na fronteira com a
Colômbia ou o Peru? Eles já têm o mercado cativo nas refinarias no eixo que é o
principal consumidor de combustíveis líquidos no Brasil. Se a Refinaria de
Betim ou a Refinaria de Paranaguá quiser entrar nesse mercado, as refinarias do
eixo Rio-São Paulo estão em condições de competição muito melhores do que o
cara que vai trazer gasolina ou diesel de Belo Horizonte ou de Curitiba para
São Paulo. Ele não vai entrar no meu mercado porque conto já com uma produção
de petróleo extremamente barata de 6 ou 7 dólares por barril, com o refino na
mão, de modo que posso abaixar esse preço a hora que eu quiser, já que tenho o
monopólio desse mercado. Então, é simples assim: vão sobrar só os campos do
pré-sal, e estão vendendo tudo como sucata. Mais do que isso, cumprindo o
Consenso de Washington, com a desregulamentação e o afrouxamento das leis
trabalhistas. O objetivo dessa gestão é não ter empregados na Petrobrás. É
uberizar tudo.
Revista
Opera: Um dos debates que permeiam a esquerda
marxista desde os anos 1950 é sobre o caráter da burguesia brasileira, ou seja,
se ela compra um projeto de desenvolvimento nacional ou se ela é totalmente
caudatária do capital estrangeiro. Como o senhor enxerga essa questão ao
considerar que mesmo empresas privadas fornecedoras da Petrobrás apoiam hoje o
projeto neoliberal e a desnacionalização da economia brasileira?
Guilherme
Estrella: Há 30
e 40 anos atrás, nós tínhamos grandes brasileiras, incluída a indústria de
base. Tínhamos a Metal Leve, a Villares, a Jaraguá. Eram indústrias brasileiras
da burguesia brasileira, produzindo bens industriais básicos. Mas é aí que está
a questão: ligadas a um capitalismo produtivo. Claro que tinham suas ideias
liberais, mas eram industriais produtivos. Com o mercado nacional em
crescimento e um governo, inclusive, com uma política fiscal de substituição de
importações, eles atuavam com um certo conforto e sempre tiveram relações
íntimas com a Petrobrás. Eram fornecedores de materiais e equipamentos
importantíssimos para a indústria de petróleo.
Só
que hoje, como todos nós sabemos, essas coisas mudaram. O capitalismo
produtivo, inclusive com a Terceira Revolução Industrial, passou a ser
financeiro. Os caras perderam a ligação com o trabalho e com o trabalhador. O
capitalista brasileiro hoje, na verdade, não está mais ligado à produção e à
atividade industrial. Ele está investindo é no cassino financeiro
internacional. Essa ligação ideológica da burguesia nacional que existia há
anos atrás foi perdendo espaço. E aí apareceram governos como de FHC, que
abriram a economia e aplicaram as medidas preconizadas por Washington, e o
pessoal começou a se desnacionalizar também sob o ponto de vista de suas
próprias empresas. Mudaram as condições do capitalismo mundial, com reflexos
absolutos aqui.
Como analisa, no médio e longo
prazo, para a indústria de petróleo global a manutenção dos preços baixos do
barril do petróleo?
Hoje
o petróleo está entre 40 e 45 dólares. Os postos do pré-sal produzem a menos de
6 dólares o barril. Então, esses preços baixos de 45 dólares impactam muitas
empresas que trabalham ali naquele limite. Mas, para quem tem o pré-sal e a
autossuficiência brasileira para todo o século XXI, não nos interessa o preço
do petróleo internacional. Sejam 10, 20, 50 ou 200 dólares. O petróleo do
pré-sal é para ser empregado no Brasil para ser a base do desenvolvimento
nacional, junto a outras fontes de energia. A baixa do preço complica o mercado
internacional sob o ponto de vista geopolítico. O óleo do xisto dos EUA, que
produz cerca de 5 milhões de barris por dia, não se sustenta com o petróleo a
menos de 50 dólares, e o governo americano tem entrado firme para sustentar a
produção nacional. Petróleo é energia, e energia é estratégica para a soberania
de qualquer país, principalmente de um país desse tamanho. Temos que gerir a
nação de acordo com os interesses nacionais. Se o petróleo está a 5 dólares,
muito bem. Se está a 50 dólares, muito bem também. Só que a maior parte do
nosso petróleo já tem um custo de menos de 10 dólares o barril. O que me
interessa, no final das contas, é o abastecimento soberano energético
brasileiro.
Revista
Opera: Após anos de desregulamentação gradual
da Petrobrás, que elementos e mecanismos a estatal ainda dispõe internamente
para ser recolocada como empresa de vanguarda?
Guilherme
Estrella: Não
há dúvida de que é a competência científica e tecnológica da companhia, mas
isso não tem mais valor na gestão da empresa hoje, no fundo de investimento
chamado Petrobrás. Não tem mais valor! É só ver o que estão fazendo com o
Centro de Pesquisa da Petrobrás, que hoje virou uma unidade de negócios, uma
coisa absurda. Estão acabando com o Centro de Pesquisa da Petrobrás. Eles não
têm mais compromisso com o Brasil. Quem tem os campos do pré-sal só para dar
lucro vai se concentrar apenas neles. Não vai se preocupar se há um problema de
produção no Rio Grande do Norte. Não, isso não é mais do interesse deles. Esse
poder interno da companhia se mantém, mas está atingido de morte na hora em que
você praticamente anula um Centro de Pesquisa, que é o que garante a
competitividade futura da companhia para produzir economicamente no Brasil. A
competência da empresa continua lá, mas seu valor é zero. Os gestores da
Petrobrás geram um fundo de investimento que não tem nada a ver com ciência e
tecnologia, com conhecimento e engenharia. Aliás, essa é a lógica desse
governo, que só está seguindo o Paulo Guedes. A Petrobrás é um ponto crítico,
mas o problema é esse governo, que é completamente vendido e submisso a
interesses não-brasileiros.
Revista Opera: Na hipótese de
um governo progressista no Brasil pós-Bolsonaro, o que o senhor acha que deve
constar imprescindivelmente no plano de governo para reestruturar a Petrobrás
como empresa de unidade nacional?
Guilherme
Estrella: Não
adianta ganhar o governo sem demolir tudo isso que foi feito. Se não tivermos
uma proposta de governo que seja levada ao povo brasileiro, em que não conste o
arrasamento amplo, geral e irrestrito e a demolição total de tudo que foi
feito, para efetivamente construirmos o Brasil, de nada vai adiantar. Não
adianta, ao ganhar o governo, dar uma de bom moço e não tocar nos contratos que
foram assinados porque “são atos jurídicos perfeitos”. Não são coisa nenhuma!
Porque as eleições de 2018 foram manipuladas e tiraram delas o cidadão
brasileiro que tinha a maior probabilidade de vencê-las e que foi preso sem
provas. Eleições fraudadas deslegitimam o governo que delas se beneficia e que,
a partir delas, tomou posse do Brasil. Então, esses atos não são juridicamente
perfeitos, não. Eles devem ser anulados liminarmente. É aí que vem a proposta
do senador Requião, que tem como co-autor o professor Gilberto Bercovici, da
USP, e a Associação Engenheiros da Petrobrás (AEPET) do Rio de Janeiro. Eles
fizeram um texto juridicamente impecável, considerando os interesses do Brasil
envolvidos que dão a base para a proposta do senador de realizarmos referendos
revogatórios. Isso é uma coisa absolutamente legal.
Vou
trazer a você a Constituição Federal de 1988, que já foi violada por esse e o
outro governo anterior. No Artigo 1º dela, diz o seguinte: “A República
Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios
e do Distrito Federal, tem como fundamentos: I – a soberania nacional”. Energia
é um aspecto de soberania nacional. Quem não defender e não aceitar isso ou
decolou, ou é mal-intencionado. E, no Parágrafo Único, diz assim: “Todo o poder
emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos”. Isso copia a
Constituição de 1946, mas ela acrescenta: “ou diretamente, nos termos desta
Constituição”. Lá na Constituição tem a garantia da realização de referendos
para você ouvir do povo exatamente o que ele está pensando. Esse não é um
assunto trivial, como todos nós sabemos. É um assunto do Item I do Artigo 1º da
Constituição. É um assunto de soberania nacional, de presente e futuro nesse
século XXI, que interessa a vocês, jovens, meus filhos e netos.
A
esquerda brasileira não tem conseguido se unir, mas temos um valor maior que é
a soberania e o futuro das novas gerações. Não tem patriotismo partidário que
possa impedir que os cidadãos de pensamento progressista se unam para nos
apresentarmos unidos nas eleições de 2022. Mas, além disso, tem que constar nas
nossas proposições a anulação disso tudo que está aí. Pois, se não, num governo
de esquerda, nós gerenciaremos uma colônia desnacionalizada, governada não por
indústrias, mas pelo cassino financeiro internacional. Com trabalhadores sem
direitos e com uma Previdência Social injusta, que não corresponde eticamente à
responsabilidade que uma sociedade tem para com seus cidadãos. Se não contiver
essa mensagem, que tem origem no senador Requião, não vai adiantar ganhar as
eleições de 2022 a partir de uma imaginária união das esquerdas, que não se deu
nem nessas eleições municipais. A consideração maior é que, para os partidos de
esquerda brasileiros na sua maior parte, o Brasil não importou. Ou fazemos
isso, ou meus filhos e netos vão atender a fundos de investimentos
internacionais, com a indústria toda desnacionalizada e servindo de emprego
para estrangeiros e técnicos de fora.