sábado, 28 de janeiro de 2023

Aprendendo com os pássaros *


Habituado que estou a praticar exercícios físicos matinais diários ao ar livre ─ há 35 anos ─, com a pandemia tive de me adaptar. Antes da Covid-19, praticava nas quadras poliesportivas do Campus Uvaranas da UEPG, interditadas com o compulsório distanciamento. Então passei a praticar na sala de casa, na Vila Placidina. Abro bem a ampla janela que dá para o jardim, onde temos uma caramboleira, uma pitangueira e uma aceroleira. Visto que nem sempre estão com frutos, pendurei num galho um tabuleiro onde todo dia coloco bananas, pedaços de mamão, melancia, abacate ou laranja. Os pássaros fazem uma algazarra, que eu observo enquanto pratico meus exercícios. São sanhaços, sairões, sabiás-laranjeira, sabiás-do-campo, pardalocas, bem-te-vis e, mais raramente, guaxos, cambacicas e tiés-sangue; eles vêm ariscos bicar os frutos que lhes são oferecidos, na falta da frutescência das árvores.

Observar os pássaros tem sido um interminável e divertido aprendizado, que mostra quanto nós humanos nos comportamos tal qual os bichos na natureza. Primeiro, existe uma rígida hierarquia da prioridade do direito de bicar os frutos. Os sabiás-do-campo têm preferência absoluta. Quando pousam no tabuleiro, os outros pássaros voam, eles ficam sozinhos. Bicam sempre o mamão. Espantam inclusive os sabiás-laranjeira, os segundos na hierarquia. Às vezes até quatro sabiás-do-campo estão juntos no tabuleiro, mostram ser uma família unida. Em época de filhotes, já fui atacado no portão de casa pelos pais, zelosos e agressivos, extremosos com seus ninhos e crias. Com o tempo eles foram se acostumando comigo, deixaram de me atacar.

Já os sabiás-laranjeira não demonstram essa solidariedade dentro da espécie: consigo distinguir três diferentes, nunca estão juntos. Um maior, que chamei de Dita, que identifico graças a uma pena arrepiada na asa esquerda. É o mais agressivo. Suspeito que seja uma fêmea, pois na época dos filhotes vi-o ─ ou vi-a? ─ enchendo o bico de alimento várias vezes e voando sempre para uma mesma árvore próxima. Se são as fêmeas que alimentam as crias, então deve ser uma fêmea. Curioso, ela é maior e mais agressiva que os outros dois. Um destes, mais assíduo, chamei de Nico. Foi fácil distingui-lo quando perdeu todas as penas do rabo, por algum motivo que ignoro. É o menos arisco, aproxima-se enquanto ainda estou colocando as frutas no tabuleiro e tolera minha companhia enquanto dá suas bicadas, de preferência no mamão. O terceiro não tem nenhum sinal característico; é a sua marca. Sempre cede lugar a algum dos outros dois que se aproxime. Seria ainda um filhotão?

Na sequência hierárquica vem o bem-te-vi: ele foge dos sabiás, e espanta os demais. É barulhento, aproxima-se gritando, afugenta os sanhaços. Sempre está solitário no tabuleiro, sempre bica as bananas. Entre os sanhaços, a briga é constante, interessante, instrutiva. Misturam-se no tabuleiro, já vi até uma dezena deles ao mesmo tempo. Alguns são muito agressivos, chegam chiando, bicos escancarados, intimidando e afugentando os demais. Outros são discretos, procuram aproximar-se dos frutos ─ a banana sempre é a preferida ─ por onde não esteja nenhum outro pássaro; são pacíficos. Curioso constatar que as brigas são desnecessárias; existem frutos e espaço suficiente para que todos pudessem comer sem ter que se confrontar. Parecem humanos!

Entre os sanhaços, os mais agressivos são as fêmeas do sairão, também chamado de sanhaço-papa-laranja. É uma espécie com marcante dimorfismo sexual: as fêmeas são maiores e pardo-esverdeadas, os machos são multicoloridos, azul-preto-amarelo-alaranjados. Aprontam muitos entreveros, mas na maioria das vezes os oponentes acabam alimentando-se ao mesmo tempo, em territórios demarcados após as rápidas escaramuças.

As pardalocas ─ nunca vi pardais machos no tabuleiro de frutas ─ são as mais pacíficas e resilientes. Nunca as vi envolvidas nos entreveros. Talvez por esse motivo sejam a espécie mais disseminada na cidade. Mas são raras no tabuleiro de frutas.

Já alguns sanhaços-papa-laranja machos têm uma singular estratégia: vão tranquilos bicar as esquecidas frutas derrubadas no chão pelo alvoroço no tabuleiro pendurado. Parecem muito objetivos e práticos: não desperdiçam energia desnecessariamente. Não lhes interessa a competição e a confusão. Vão direto ao propósito ─ a alimentação.

São um exemplo de pragmatismo.

 Texto escrito originalmente em 20/05/2021

quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Dissecando o fascismo

 Publicado no Jornal da Manhã em 19/01/2023.

Não é preciso ser do ramo. Temos visto muitos textos, vídeos, entrevistas, mesas-redondas de psicanalistas, sociólogos, filósofos que tentam explicar o momento de psicopatia, a ascensão do fascismo, que temos vivido, no Brasil e no mundo. Mas há de se reconhecer, os movimentos radicais em favor das sombras sempre trazem junto a reação de tudo que significa o contrário: a iluminação. Foi assim, por exemplo, no Iluminismo, o “Século das Luzes”, que sucedeu a Idade Média, a “Idade das Trevas”.

Os sociólogos dizem que o fascismo, a tradução da extrema-direita, é um recorrente produto do capitalismo. Este concentra a riqueza, dissemina a pobreza, exclui a grande maioria da população. Origina imensas frustrações, não cumpre a promessa de prosperidade que hipocritamente alardeia. A massa desiludida precisa então encontrar um “bode expiatório” onde evacuar sua frustração e revolta. O capitalismo constrói esse inimigo a ser odiado: ora os judeus, ora os negros, ora os imigrantes, ora os comunistas, ora os mais letrados, ora os ainda mais pobres, ora os petistas, ora o torcedor do outro time, ora o adepto da outra igreja...

Os arautos do capitalismo ─ a elite econômica e seus cooptados prepostos da classe média ─ são mestres em manipular as massas e criar o inimigo a ser odiado. Assim, anulam o que seria a justa e lúcida crítica e revolta contra o sistema, o qual enriquece cada vez mais os ricos, às custas do aprofundamento da exploração dos cada vez mais pobres. Sofisticados e custosos recursos são empregados no logro e na incitação das massas contra elas próprias, e não contra o verdadeiro inimigo. Uma forma refinada do antigo “dividir para conquistar”, que há séculos orienta os impérios para manter enfraquecidas e submissas suas colônias.

As estratégias atuais incluem o científico controle da informação e das mídias, que visam a manipulação das massas: um misto de desinformação e mentira com estímulos que reforçam os reflexos condicionados. Instintos que mais fazem o ser humano parecer uma fera selvagem do que um ente que se presume racional e sensível. Não são só os cães, como mostrou Pavlov, que podem ser condicionados a reagir irracionalmente a estímulos falsos. Os seres humanos reagem igual.

O poder que insufla as massas contra si mesmas, encolerizando-as e dividindo-as, tem muitas faces: são as nações imperialistas que querem a hegemonia do poder mundial; são as corporações transnacionais que detêm o controle da economia; são os prepostos locais, os super-ricos, que controlam capatazes da classe média; são todos aqueles inescrupulosos indivíduos ressentidos, em busca de resgate ou de supremacia a qualquer custo, que tornam-se os herdeiros dos capitães do mato do escravagismo, os responsáveis diretos pela tapeação das massas.

No mundo, particularmente no Brasil, há recursos suficientes para que não existisse pobreza. Ela só existe porque os bens produzidos são espoliados da massa de trabalhadores que os gera. Vão enriquecer ainda mais os que já são super-ricos.

Só há uma maneira de romper com a avareza deste sistema: as massas precisam acordar, deixar de ser manipuladas; precisam unir-se na luta contra a milenar exploração.

sábado, 14 de janeiro de 2023

A ditadura do obsoleto

 

A ditadura é a imposição, a repressão, às vezes por qualquer meio. Pode ser só pela intimidação e pela mentirosa manipulação, ou até por meios criminosos, violentos, incluindo sequestro, tortura e assassinato, como amiúde acontece nos totalitarismos. Vamos falar da ditadura exercida pelo obsoleto.

O que é o obsoleto? É tudo aquilo que não funciona mais, já está ultrapassado. Sua falência traz transtornos intransponíveis. Os mecanismos de funcionamento da sociedade que estamos vivendo estão obsoletos. Não acredita nisso? Então como explicar as tantas crises atuais? Materialismo e consumismo exagerados, aquecimento global, eventos climáticos extremos, pandemia, guerras, embargos econômicos, recrudescimento das desigualdades e exclusão, massas de refugiados deslocando-se entre países, agravamento dos segregacionismos e fundamentalismos, aumento da criminalidade e insegurança, armamentismo, descontrole de preços de bens estratégicos tais como alimentos e combustíveis, o alastrar da desinformação via mentiras digitais...?

Tantas crises em parte resultam da evolução. Ela, além de progresso, gera também desequilíbrios passageiros e a necessidade de novos arranjos, compatíveis com o progresso alcançado. A mulher, depois de conquistar o direito de votar, quer também participar da vida em igualdade com os homens, quer ser respeitada e protegida por leis que não reproduzam um ancestral, faccioso e cruel patriarcalismo. O homem antes analfabeto, após alfabetizar-se e qualificar-se profissionalmente, quer trabalho digno, quer ter direitos reconhecidos, começa a ter melhor noção da exploração social que o penaliza, passa a reivindicar justiça.

Se o progresso da sociedade não é capaz de suprir estas, e muitas outras, novas demandas, não é progresso: desencadeiam-se as crises. As mencionadas acima são só algumas delas. É o momento, então, de mudar. Urge mudar! Antes que a crise, aprofundada, a demandar solução que não chega, passe a ser insolúvel. Então deixa de ser crise, passa a ser colapso. Da crise ainda podemos sair, encontrando correções planejadas. Já o colapso foge do controle, as consequências são imprevisíveis. No exemplo do aquecimento global, a crise já existe. Já sabemos que existe, quais suas causas, quais suas prováveis consequências atuais e futuras, como podemos evitá-las ou mitigá-las. Mas temos vaga ideia de quais possam ser as consequências futuras, se não soubermos evitar o colapso. Só sabemos que serão desastrosas.

Entretanto, há sempre quem queira silenciar e esconder a crise. São os arautos da negação do alerta e do necessário debate. Deturpam a verdade, impõem a omissão, o falso moralismo e a desfaçatez. São os ditadores do obsoleto. São principalmente os privilegiados pela crise, e que não querem mudanças. Apesar de reconhecerem tratar-se de situação crítica. São imediatistas e individualistas, não acreditam que o colapso aconteça ainda durante sua vida, só vai se abater sobre gerações futuras. Não são só obsoletos; são antes extremados egoístas, que só se importam consigo mesmos.

Mas há também aqueles que, embora não privilegiados, não conseguem, ou têm medo de mudar. Mudanças assustam! Temem perder o que já têm, ainda que seja pouco. São também egocêntricos, de uma natureza diferente. São inseguros, não têm lucidez nem desprendimento. Não atinam que, se não houver mudança, todos, a começar pelos menos privilegiados, vão sofrer as consequências. São aqueles obsoletos que reprimem a reflexão crítica e o debate sobre a necessidade de mudar, de adequar-se aos novos tempos. São os atrasados ultraconservadores.

Estes últimos são os mais numerosos obsoletos, usualmente logrados pelos privilegiados. Do despertar destes logrados ditadores do obsoleto depende o reconhecimento da crise e o envidar soluções. Antes do advento do colapso.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

A barbárie escancarada

 Publicado no Jornal da Manhã em 02/02/2023.

Bárbaros, todos nós somos um pouco. Assim como também somos um pouco divinos. Particularidade dos seres humanos, temos ainda muitas reminiscências de nossos ancestrais selvagens. Mas já temos também alguma percepção do sagrado que nos transcende. Somos criaturas intermediárias entre o ignorante e o sábio! Alguns dizem que nosso lado instintivo selvagem é tânatos, catalizador de todo impulso destrutivo. Herança da primordial agressividade essencial para a preservação da espécie. Nosso lado amoroso e criativo é eros. Ele vem se fortalecendo ao longo da evolução do Homo sapiens e da civilização.

Comportarmo-nos ora como egoístas bestas-feras, ora como solidários seres amorosos, dependendo de muitas variáveis que se combinam: nosso meio familiar, a vizinhança e amigos que temos, nossa educação formal e informal, nossas experiências de vida, a cultura do nosso povo, o momento civilizacional que estamos vivendo e até nosso humor num dado momento, que depende de circunstâncias objetivas e subjetivas. A resultante é que ora podemos ou ser uma besta-fera individualista e violenta, ora ser alguém fraternal, compreensivo e conciliador.

Desde sempre a besta-fera que reside em nós tem sido manipulada para promover disputas e guerras em favor de conquistadores. A velha máxima “dividir para conquistar”. Mas nas últimas décadas esta manipulação alcançou sofisticação extraordinária, com o advento das redes sociais, dos algoritmos, dos bots e das criminosas empresas digitais destinadas à desinformação e à doutrinação. Paradoxalmente, o avanço tecnológico, num primeiro momento, propicia o desequilíbrio do frágil arranjo de bem-estar social civilizatório, que temos construído com vagar e dificuldade ao longo de milênios. Se, pouco a pouco, vamos superando a barbárie e nos aproximando de uma sociedade mais humanizada, ao mesmo tempo manifestam-se forças contrárias à emancipação dos seres humanos. É a reação de tânatos, inconformado com a prosperidade de eros.

O mundo dá evidências de que estamos bem num destes momentos de reação de tânatos: segregacionismos e individualismos exacerbados, fundamentalismos, guerras, fanatismos, extremismos. No Brasil não é diferente. Em 2018 elegeu-se um líder que personifica tânatos: genocida, segregacionista, misógino, armamentista, violento, negacionista, escatológico, devastador ambiental... Mas que, contraditoriamente, tornou-se o mito de uma parcela da população: tanto aqueles com ele identificados na reação de tânatos contra eros, quanto aqueles encabrestados pelas tecnologias da desinformação. Com a agravante que estas manipuladas vítimas de tânatos foram ludibriadas e convencidas que sua ira representa os ideais da pátria, da família, de Deus e da liberdade.

Os acontecimentos dos últimos meses, que atingiram clímax no vandalismo deste domingo 8 de janeiro em Brasília, desmascaram tânatos, manifesto naqueles que não souberam discernir. Antes tarde que nunca! Caída a máscara de cidadãos patriotas, devotos e equânimes, que nunca foram de fato, agora estes adeptos de tânatos têm que mostrar coragem para vencer o ódio destrutivo que as cegou. E retomar eros, para retornarmos à marcha de prosperidade da civilização. 

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Psicanálise do fenômeno Lula

 Publicado no Jornal da Manhã em 05/01/2023.

Uma querida amiga psicanalista fez uma análise do significado de Lula e da cerimônia de posse. Que evento! Uma celebração no dia mundial da paz e da esperança que foi dignificada não só no Brasil, mas no mundo todo. Pelo fato que o mundo todo compreende, talvez até melhor que nós mesmos, brasileiros, que nosso país personifica o impasse civilizacional que vivemos: de um lado o totalitarismo truculento e excludente, de outro a democracia que inspira a solidariedade e a inclusão, e desestimula o egoísmo.

Minha amiga chamou a atenção para as muitas vezes em que, durante a longa cerimônia de posse, Lula foi tomado pela emoção: voz embargada, olhos lacrimosos, mãos trêmulas. Uma figura humana, sensível, frágil. Atributos ditos femininos. E a psicanálise assevera que as relações humanas são fundadas no poder e na hierarquia, simbolizados no falo masculino. Como pode, então, a vulnerável figura tão humana de Lula na posse reunir a força e o poder necessários para comandar a conciliação de um país cindido pela segregação e pelo ódio, que vêm sendo agravados entre nós há uma década, desde as “jornadas de junho” de 2013? Segregação e ódio que vêm sendo cultivados ao longo dos nossos cinco séculos de história, pela colonização predatória, o extermínio dos nativos, a prolongada escravatura, a “independência” decretada pelo poder imperial, a desastrada abolição?

O poder e a força de Lula não estavam aparentes na figura do idoso comovido e fragilizado às lágrimas, na mesa do Congresso, no alto da rampa e no parlatório defronte o Palácio do Planalto. A força de Lula não estava visível na figura do líder que tomava posse. Nele, estava invisível. Mas estava presente, na sua já comprovada habilidade de negociar e de conciliar, enraizada numa surpreendente trajetória de vida, que o tornou um homem capaz de compreender a injustiça e o sofrimento humanos, e de entregar-se à construção de um mundo mais solidário.

Mas se a força e o poder de Lula não estavam visíveis na sua frágil figura, estavam escancarados na multidão que o ovacionava, entoando “Lula, guerreiro, do povo brasileiro!” E que teve a honra de receber em retribuição o cumprimento que foi o sensível e delicado reconhecimento da incansável resistência da “Vigília Lula Livre”: “Boa-tarde, povo brasileiro!” Paródia dos abençoados cumprimentos em coro de bom-dia, boa-tarde e boa-noite dos 580 dias da injusta prisão em Curitiba.

A força e o poder de Lula estão no carisma que mobiliza a multidão dos que se contagiam com o ideal de inclusão e justiça social. Representados na posse pela gente do povo que entregou a faixa presidencial. É esta multidão de apoiadores, os que já optaram pela solidariedade contra o egoísmo, que deve manter-se mobilizada e atuante. Disso depende que o governo do líder carismático e humano tenha sucesso no duro desafio da luta contra os arraigados preconceitos e a cupidez que marcam a natureza humana e a sociedade.