segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

A barbárie escancarada

 Publicado no Jornal da Manhã em 02/02/2023.

Bárbaros, todos nós somos um pouco. Assim como também somos um pouco divinos. Particularidade dos seres humanos, temos ainda muitas reminiscências de nossos ancestrais selvagens. Mas já temos também alguma percepção do sagrado que nos transcende. Somos criaturas intermediárias entre o ignorante e o sábio! Alguns dizem que nosso lado instintivo selvagem é tânatos, catalizador de todo impulso destrutivo. Herança da primordial agressividade essencial para a preservação da espécie. Nosso lado amoroso e criativo é eros. Ele vem se fortalecendo ao longo da evolução do Homo sapiens e da civilização.

Comportarmo-nos ora como egoístas bestas-feras, ora como solidários seres amorosos, dependendo de muitas variáveis que se combinam: nosso meio familiar, a vizinhança e amigos que temos, nossa educação formal e informal, nossas experiências de vida, a cultura do nosso povo, o momento civilizacional que estamos vivendo e até nosso humor num dado momento, que depende de circunstâncias objetivas e subjetivas. A resultante é que ora podemos ou ser uma besta-fera individualista e violenta, ora ser alguém fraternal, compreensivo e conciliador.

Desde sempre a besta-fera que reside em nós tem sido manipulada para promover disputas e guerras em favor de conquistadores. A velha máxima “dividir para conquistar”. Mas nas últimas décadas esta manipulação alcançou sofisticação extraordinária, com o advento das redes sociais, dos algoritmos, dos bots e das criminosas empresas digitais destinadas à desinformação e à doutrinação. Paradoxalmente, o avanço tecnológico, num primeiro momento, propicia o desequilíbrio do frágil arranjo de bem-estar social civilizatório, que temos construído com vagar e dificuldade ao longo de milênios. Se, pouco a pouco, vamos superando a barbárie e nos aproximando de uma sociedade mais humanizada, ao mesmo tempo manifestam-se forças contrárias à emancipação dos seres humanos. É a reação de tânatos, inconformado com a prosperidade de eros.

O mundo dá evidências de que estamos bem num destes momentos de reação de tânatos: segregacionismos e individualismos exacerbados, fundamentalismos, guerras, fanatismos, extremismos. No Brasil não é diferente. Em 2018 elegeu-se um líder que personifica tânatos: genocida, segregacionista, misógino, armamentista, violento, negacionista, escatológico, devastador ambiental... Mas que, contraditoriamente, tornou-se o mito de uma parcela da população: tanto aqueles com ele identificados na reação de tânatos contra eros, quanto aqueles encabrestados pelas tecnologias da desinformação. Com a agravante que estas manipuladas vítimas de tânatos foram ludibriadas e convencidas que sua ira representa os ideais da pátria, da família, de Deus e da liberdade.

Os acontecimentos dos últimos meses, que atingiram clímax no vandalismo deste domingo 8 de janeiro em Brasília, desmascaram tânatos, manifesto naqueles que não souberam discernir. Antes tarde que nunca! Caída a máscara de cidadãos patriotas, devotos e equânimes, que nunca foram de fato, agora estes adeptos de tânatos têm que mostrar coragem para vencer o ódio destrutivo que as cegou. E retomar eros, para retornarmos à marcha de prosperidade da civilização. 

5 comentários:

  1. Excelente texto. Infelizmente, pessoas que, tempos atrás, anteriores às redes sociais, eram apenas desinformadas, ou seja, não acessavam qualquer tipo de informação, hoje recebem uma enxurrada de informações porcas, mentirosas, sujas. E com elas em mente, tomam atitudes funestas, prejudiciais a si mesmas e à coletividade.

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  2. Rosicler Antoniácomi9 de janeiro de 2023 às 17:01

    O comentário anônimo anterior é meu. Esqueci de me identificar.

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  3. o problema é que eles são muitos!!! não são poucos, isto é, quem hoje diz que o minto não o representa, na próxima eleição vai votar novamente nele, para "salvar o país do comunismo", "para o país não virar uma Cuba ou Venezuela", "tirar os petralhas do poder", e por aí vai ...

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  4. O que vejo é uma abrupta identificação de gde parte da sociedade com o mau, talvez pela enxurrada de informações mentirosas ou mesmo pq sempre foram filhos de tªnatos que sem voz se reprimiam.
    Muito boa esta abordagem .

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  5. Excelente reflexão Mário! Contudo, me pergunto se não cometemos erros ao comparar este ato do dia 8/01 a cultura dos vândalos. Tão distante da gente em termos civilizatórios, na percepção da alteridade.

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