sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Livros na fogueira

  Publicado no Jornal da Manhã em 03/10/2020.

Não faz muito que uso celular. Não gosto do exagero com que se abusa das ditas mídias sociais, procuro usá-las o menos possível. Ainda assim, recebo muita coisa que me faz pensar que estamos regredindo na capacidade de nos comunicarmos, de forma inversa ao prodigioso avanço na tecnologia de comunicação. Ou seria tecnologia de doutrinação?

Recebi um vídeo no qual uma encanecida senhorinha, com ares de uma bondosa avozinha, junto com o senhorinho queimavam livros de Paulo Coelho na churrasqueira. Ela não estava para as ternuras das vovós. Estava enraivecida. Com palavrões indizíveis diante de netos ofendia o autor dos livros, acusando-o de canalha, comunista, petista que fala mal do Brasil e pede para boicotarem os produtos do país. A furiosa avozinha dizia ter lido já dez livros do Bruxo, enquanto, arrancando as páginas de um deles, ia jogando-as sobre as labaredas e desfiando seu rosário de imprecações. E finaliza esconjurando o autor para o inferno.

Nunca curti Paulo Coelho. Li o primeiro livro, para não encompridar motivos, digo que não gostei do estilo, não gosto do gênero. Como diria uma estimada e saudosa amiga ─ Gosto não se discute; se lamenta! ─ Não vi o que ele andou falando para enfurecer tanto a senhorinha, mas suspeito que se o Capiroto tiver que escolher entre o autor e o casal de incendiários avós para ter a seu lado lá nas profundezas, não vai ter dúvida. Pobres avós, parece que chegaram à velhice sem que a vida tenha-lhes acrescentado sabedoria e bondade. E suspeito que na verdade o Bruxo não falou mal do Brasil, nem dos brasileiros. Deve, sim, ter dito diabruras do irresponsável desgoverno que anda arruinando o país.

Mas que vídeo intrigante, incita à reflexão! O que teria feito o casal de velhinhos passar a odiar tanto o antes apreciado escritor? Paulo Coelho não é a primeira celebridade brasileira fustigada pela ira de antes supostos pacíficos cidadãos. Junto com ele estão Chico Buarque, Paulo Freire, Marilena Chauí e tantos outros. O que anda acontecendo? A senhorinha do vídeo incendiário diz ter lido dez livros do Bruxo. Por certo viu algo de proveitoso. O que a teria feito mudar de opinião tão radicalmente?

É possível que nossa opinião nunca antes tenha estado tão à mercê da tecnologia de informação que sabidamente nos manipula, nos doutrina. Se alguém ainda duvida disso, veja o documentário “O dilema das redes” (2020, direção de Jeff Orlowski), que revela como nossas escolhas têm sido governadas pelos onipresentes sistemas de controle da informação. Deixamos de ser usuários ou consumidores, passamos a ser o produto que é oferecido aos verdadeiros consumidores: os fazedores de opinião.

O casal incendiário gostava do Paulo Coelho, leu dez livros dele. Mas o autor passou a receber deles os qualificativos de canalha, f.d.p. e outras baixarias. E, no dizer dos idosos, é um comunista, petista, que deveria mudar-se para Cuba, Venezuela ou a China, e não viver no bem-bom da Suíça.

Trata-se de uma revisão de entendimentos, que vem com a acrescentada sabedoria da velhice? Não me parece. O que tem mudado nas últimas décadas é o poder de manipulação das tecnologias midiáticas. Até idosos com gostos consolidados mudam suas convicções, e queimam na fogueira as referências anteriores. Talvez não tenham aprendido nada com elas? Queimar livros é um histórico símbolo de incompreensão e retrocesso obscurantista.

O que mais preocupa é constatar como somos vulneráveis à manipulação. Não soubemos controlar as tecnologias de informação. Então estamos sendo controlados por elas.

8 comentários:

  1. Que bizarro viver nesse mundo cheio de tecnologia e comunicação em que as pessoas escolhem não se informar direito. Bizarro! A manipulação é visível, e mesmo assim somos manipulados. Bizarro...

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  2. Não conheço toda a sua obra, mas do pouco que li também não entendo a reação da anciã. Mas também é difícil avaliar oque pode ser um caso isolado. Lembrando que, para alguns, a idade traz a sabedoria, mas, para outros, a senilidade.

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  3. Acho que queimar livros seja de que autor for,é voltar ao passado do qual não quero participar.

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  4. Mario, acho que concordo com essa senhorinha: o guru deles diz que o Paulo Coelho, o Paulo Freire, e tantos outros que defendem as classes menos desfavorecidas são comunistas e outras coisas, que o papel deles é fazer o que ela fez, um churrasco de livros... O problema, agora nosso, é, como recuperar esse país depois dessa onda nazi-fascista) pois como ela, têm pelo menos 35% da população brasileira, tanto fazendo churrasco com livros como churrasqueando as matas e florestas (acho que não são os índios e os caboclos que estão a fazer essas queimadas, não!). Por outro lado, caro amigo, as mídias sociais estão aí para serem utilizadas, que é o "novo" (não tão novo assim) meio de comunicação, rápida, abrangente, totalitária, igualitária (para o bem e para o mal, o bozo e seus filhos e asseclas as utilizam muito bem para a disseminação de fakenews, uma vez que eles não conseguem produzir nada de útil e aproveitável!). Um abraço ...

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  5. Não sou fã da literatura meio mística, meio fantasiosa de Paulo Coelho. Mas fico imaginando se os "velhinhos" sabem que Paulo Coelho é o escritor mais lido e traduzido fora do Brasil depois de Jorge Amado. Quanto a queimar livros...Será que teremos um "Index" além dos portais do Clero?

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  6. John Lennon um pouco antes de morrer (1980) fez uma canção descrevendo varias coisas que estavam acontecendo e que ele não entendia e no final de cada verso escrevia: NINGUEM ME FALOU QUE HAVERIAM DIAS COMO ESSES... (NOBODY TOLD ME o nome da canção). Fico pensando o que haveria de dizer o famoso e talentoso beatle nos dias de hoje...
    abs.

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  7. Onde será que chegaremos , dias tristes esses.

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  8. Sérgio,
    Ele mora na Suiça às custas de leitores ávidos pelas obras do momento. Puro modismo.
    Nem gostam , nem entendem nada.
    Que exemplo mais ridículo fica para os jovens.

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