sexta-feira, 9 de outubro de 2020

A vaca olhando a lua

 

Já viram uma vaca olhando a lua? Não? Acho que também não vi! Ou, se vi, não percebi. Melhor assim. Podemos então divagar com mais liberdade idealizando esta bela imagem. Mas imagino a cena: durante a noite, a vaca com as patas dobradas e o peso do corpanzil placidamente apoiado no relvado macio, o pescoção elegantemente contorcido para trás, ela encantada com o enorme disco de prata alteando-se no horizonte, pulverizando a paisagem campestre com aquele luminoso polvilho argento.

Uma cena cheia de significados. O início de noite enluarado no campo já é algo a inspirar armistício e devaneio. A vaca, um bicho pacífico, herbívoro, sereno, símbolo sagrado de paz e fertilidade no Oriente. Um dia, num futuro imprevisível, ainda nos penitenciaremos por incluirmos em nossa dieta alimentos que não sejam os vegetais e grãos que a natureza tão generosamente nos oferece. Ainda haveremos de compreender que a mesma superfície de terreno que usamos para apascentar umas poucas reses poderia nos conceder uma quantidade imensamente maior de alimento vegetal, mais saudável e com menor corrosão do solo e da alma.

A vaca repousada sobre o terreno, mansa na sua animalidade, com o pescoção sem nenhum excesso vigorosamente contorcido e o olhar embevecido observando nosso indecifrável satélite, deve inspirar-nos poesia e desafetação. Mesmo a rês, tida por nós como ignara, enleva-se fitando a grandeza e a beleza do firmamento. A lua está além de nosso planeta, de nossa realidade terrena, de nossa tacanha avareza mundana. A lua é parte do céu, o início do infindável. Como fica a natureza bovina perante tal grandeza? E quem somos nós, pretensiosos seres humanos, perante a grandeza da lua, do universo, o despojamento da vaca?

Um dos exercícios da prática chinesa do Tai-Chi Chuan tem justamente o nome de “a vaca olhando a lua”. Outro nome para o mesmo exercício é “olhando para trás e deixando para trás”. Deixando o quê para trás? Dizem que as preocupações, as angústias, os rancores, a tristeza, os arrependimentos, a ansiedade, a inveja, a raiva... Tudo aquilo que não nos ajuda em nossa caminhada, ao contrário, só faz sobrecarregar-nos de pesos, totalmente inúteis, desnecessários.

A vaca olhando a lua parece estar encarnando bem isso: a leveza da despreocupação, da confiança, a temperança da humildade e da bondade, o firme pé no chão que para os chineses é representado pelo elemento terra, aliás, o mesmo que, no horóscopo ocidental, corresponde ao signo de Touro. Alguém já viu uma vaca disputando com outra uma touceira de capim? Nunca vi. Mas já vi muitos homens brigando por alguma inutilidade, ou por algo cujo valor só existe nas fantasias e ilusões das artificiais convenções que nos deleitamos em inventar.

Tão humano que sou, invejo a vaca olhando a lua. Ela se basta, e, no entanto, sonha com o universo.


4 comentários:

  1. DIVAGAR SE VAI AO LONGE. NÃO ERA ASSIM QUE DIZIAM OS ANTIGOS? RSRSRS DIVAGUEMOS POIS. COMO DISSE RONALDO BASTOS NA PAGINA DO RELÂMPAGO ELÉTRIGO: FAZER UM MINUTO DE PAZ, UM SILÊNCIO QUE NÃO SE ESQUECE MAIS.
    ABRAÇOS.

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  2. A poesia do texto inicia com o título. Lúdico, infantil e por isso poético. Ótimo!

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  3. Sou vegetariana há quase quatro décadas.
    E sim as vacas olham para o céu dia e noite , buscando clemência talvez.
    Não há sentido na palavra humanidade se não respeitarmos toda criação. Comer para sobreviver ,não acumular coisas inúteis ,uitos ensinamentos nesse texto.

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  4. Um texto muito bom para uma autoreflexão e pensar "para onde caminha a humanidade". Praticar taichi é transcender, vislumbrar o "novo". Parabéns

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