Publicado no Diário dos Campos em 7 de julho de 2016.
Vimos neste blog (ver texto "O novo surto de intolerância" postado em 30 de junho) que o planeta dá mostras de que nos encontramos num momento de crescente intolerância. Haveria alguma motivação para isso, visto que, em tese, deveríamos estar evoluindo para uma civilização mais solidária na alteridade?
No início
do Século XX o cientista russo Ivan Pavlov realizou um experimento simples, mas
de incomensurável importância: ao longo de vários dias, tocava-se repetidamente
uma sineta ao mesmo tempo em que se alimentava um cão; passado um tempo, a
sineta passou a ser tocada mas agora sem o alimento, e então o cão, já
condicionado, apresentava todas as evidências de que estava pronto para receber
o alimento, como ensalivar e outras reações orgânicas e comportamentais. O cão
sujeito da experiência passa a considerar que a sineta quer dizer alimento,
embora tal associação já tenha passado a ser falsa.
A isto
denominou-se “reflexo condicionado”, isto é, a repetição de uma associação
(alimento+sineta) induz uma resposta comportamental aprendida (salivação), que
passa a ocorrer mesmo na ausência do fator real desencadeador da reação (sineta
sem o alimento). Logo atinou-se com as enormes possibilidades de aplicação da
descoberta, não só em tratamentos psicológicos, mas também na propaganda, de
produtos, ideologias e comportamentos.
Examinemos
algumas aplicações da experiência de Pavlov. Até há pouco tempo éramos
bombardeados com mensagens cigarro=aventura, cigarro=masculinidade, cigarro=força,
cigarro=glamour, cigarro=prazer... E a verdade é que o cigarro é um veneno que
mata aos poucos. Todos os dias, por todos os meios, chega-nos insinuantemente
que carro novo=sucesso, carro novo=conforto, carro novo=beleza, carro
novo=desempenho, carro novo=status, carro novo=segurança, carro
novo=conquistas, carro novo=felicidade... E mesmo que não precisemos e nem
tenhamos condições de comprar o carro novo, ele passa a nos parecer
imprescindível, irresistível.
Talvez o
consumo de produtos e bens seja um imenso campo de aplicação do reflexo
condicionado de Pavlov, pois nós, seres humanos, costumamos ter o mesmo nível
de reação inconsciente dos cães utilizados na experiência. Mas certamente
existem os outros campos de aplicação do reflexo, muito mais vastos e nefastos.
O que impediria que o condicionamento fosse utilizado para estigmatizar
pessoas, raças, credos, instituições, ideologias e até nações? Não tem sido
assim ao longo do tempo?
O reflexo condicionado tem sido empregado para
cristalizar associações como latino=indolente, muçulmano=terrorista,
MST=baderneiros, comunista=comedor de crianças, Irã=mal, etc. Tomemos como exemplo
um sujeito hipotético denominado Darci. O que aconteceria conosco se fôssemos
bombardeados incessantemente com estímulos do tipo Darci=corrupção, Darci=recessão,
Darci=ingovernabilidade, Darci=crise, Darci=antipatia, Darci=erros,
Darci=mentira...? Supondo que estas associações pudessem não ser verdadeiras,
mas fruto da intenção dos inimigos de Darci, depois do bombardeio, o que
pensaríamos de Darci?
Seria
muito desejável que, ao invés da reação irracional do cão que associa, mesmo
que falsamente, sineta=alimento, utilizássemos a razão e o discernimento que
nos diferencia do cão para refletir se estas associações são verdadeiras, ou se
são falsas e visam condicionar nosso julgamento. E se assim for, quem está nos
manipulando? Com qual propósito? Trata-se de uma experiência como a de Pavlov
ou os interesses são outros? Quais?
No mundo
atual, em nossas vidas, além do consumo de produtos, muitas vezes supérfluos,
quais outros tipos de condicionamentos temos sofrido? Quem sabe até para
manipular nosso julgamento sobre quem é corrupto e ladrão, e quem é honesto? Ou
sobre quem fala a verdade, quem fala mentira? Ou quem é nacionalista, quem é
entreguista? Ou quem é estadista, quem é oportunista?
Pavlov
nos demonstrou que somos manipuláveis, como os cães. Mas não somos cães, somos
seres humanos, a quem foi dada a capacidade de refletir, de discernir, e também
os sentidos de justiça e solidariedade, que nos fazem assumir compromissos com
o respeito aos direitos e deveres não só de nós mesmos, mas também de nossos
semelhantes, e de toda a vida no planeta. Mas parece que temos tendência de
abrir mão destas nossas capacidades. Comportamo-nos condicionada e
irrefletidamente, como os cães. A força, a astúcia e a mesquinhez dos
interesses que controlam a manipulação são muito grandes. Se vacilarmos,
sucumbimos a seu poder.
É urgente
que deixemos de reagir como condicionados cães, e passemos a agir como seres
humanos, com discernimento, autonomia e sensibilidade. Disto depende nosso
futuro, o futuro do país, do planeta.
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