Naquela madrugada nos inefáveis ermos celestiais, Pedro
percebeu uma réstia de luz acesa, vinda lá da sala de controle. Estranhou a luz
em horas tão devolutas. Curioso, levantou-se, foi lá ver do que se tratava.
Ainda à distância viu o Mestre, uma auréola de preocupação envolvendo sua
aura, coluna encurvada, debruçado sobre seu monitor plasmático que visualizava
o universo. Pedro percebeu que algum problema grave acontecia:
─ As bênçãos, Mestre. O que de tão sério o traz à sala de
controle a estas horas?
─ As bênçãos, Pedro. Boa noite. Desculpe, não queria
incomodá-lo. Não se preocupe. É que eu também, como você*, às vezes inquieto-me
com o andamento dos rumos da criação.
─ Pois é, parece que isso é inevitável. Como já dissemos, a
criação é como se fosse uma filha. Temos dificuldade de acatar o livre arbítrio.
Sabemos que ela vai seguir seu próprio caminho, tem a liberdade de escolhê-lo,
vai aprendendo com os erros. Mas estamos sempre querendo interferir, pra que
tudo aconteça do jeito que julgamos ser o menos sofrido.
─ Esse é o problema. A criação nos surpreende. Subverte o
que pensamos ser o caminho normal da evolução.
─ Mas o que foi desta vez, Mestre?
─ Ah, Pedro! De novo o planeta Terra. Acho que se lembra
bem dele, né?
─ Claro Mestre! Como não lembrar? Ele é o paraíso. Que
infelizmente às vezes parece não estar dando certo.
─ Como pode isso, Pedro? Há milênios temos inspirado
missionários daquele povo da Terra! Desde a história de Adão e Eva, a tentação
da serpente, o pecado e a expulsão do paraíso. A parábola não poderia ter sido
mais evidente. Não entenderam ou não aprenderam nada?
─ Parece que ainda não, Mestre. Não perceberam que o paraíso é o
planeta onde vivem. Que reúne todas as maravilhas que suportam e encantam a
vida. E não perceberam que a inteligência, a engenhosidade humana, é o milagre
que complementa e dá sentido às dádivas daquele mundo. Inventaram a fantasia de um
paraíso noutro lugar, após o desencarne. Não se dão conta de que já estão nele.
─ O que mais me entristece é que estão destruindo o éden,
que criamos com tanto carinho e dedicação.
─ Isso porque estão usando mal o segundo milagre que lhes
foi atribuído: a inteligência e a criatividade.
─ É bem isso, Pedro!
─ Parecem estar possuídos pela ânsia de dominar, de
possuir, de sobressair. A serpente da parábola, que não conseguem entender. Estão
acumulando riquezas e disseminando pobreza, fazendo guerras insanas, amontoando
armas de destruição em massa, cultivando o ódio, espalhando mentiras,
contaminando a água e o ar, aquecendo o planeta, ensejando epidemias, exaurindo
os solos, exterminando matas e bichos... É muita incúria! Estão transformando a
Terra no inferno. A solidariedade, o despojamento, o discernimento e a
humildade, que eram atributos originais, estão esquecidos.
─ Essa é a razão da minha inquietação, Pedro. A cobiça e a
insensatez também estão destruindo o clima. O que era pra ser aquele sistema de
purificação da água do mar e a distribuição fraterna sobre os continentes,
agora tá virando catástrofe: enchentes destruidoras, epidemias, falta da água
em outros lugares, secas, incêndios...
─ Sei bem como é, Mestre. Também me entristeço com tudo
isso. Mas temos de respeitar o livre arbítrio.
─ Sim. Vamos continuar torcendo pra que eles acordem antes que seja
tarde demais.
* Ver
os textos “Diálogos infernais”
(19/07/2022), “Diálogos celestiais”
(29/01/2022), “Pandemia: Deus escreve certo
por linhas tortas” (04/04/2020), “Livre
arbítrio” (06/12/2018), “Diálogos
celestiais também falam de futebol” (08/06/2018), “Pesquisa celestial” (01/01/2018), “Juízo final” (13/07/2017), “Vinganças
divinas II” (20/04/2016), “Vinganças
divinas” (04/02/2016) e “Estória da
criação” (26/11/2015), neste blog.
Triste demais.
ResponderExcluirAções e suas consequências.
Sem os ditos humanos seria o paraíso.
Feliz dia das mães ❤️
Estava muito bem nas mãos dos indígenas... Vi um post acredito que uma verdade (se for fake, ainda terá valor de verdade): Herr Blumenau, ao ocupar uma banda do vale do Itajaí, após dois anos plantando e colhendo, resolver conversar com indígenas que ocupavam um platô próximo, sem nunca tê-lo confrontado. Desculpiuc-se pela ocupação sem licença das terras deles, o cacique disse: não são nossas. São das Águas.
ResponderExcluirTerra, um paraíso que até agora não deu certo. Haverá tempo para reverter o dano?
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