Publicado no Jornal da Manhã e no Diário dos Campos em 27/02/2024.
Uma querida amiga psicanalista explicou-me
o verdadeiro sentido da palavra “narcisista”: não é, como eu pensava, só aquele
que se apaixona pela sua imagem no espelho; é, sim, aquele que julga que sua
imagem é a única aceitável, e que rejeita e condena todas as demais. Rejeitando
o diferente, empenha-se em doutriná-lo e em transformá-lo na própria imagem;
ou, se for o caso, simplesmente exterminá-lo.
O narcisismo é, portanto, algo muito mais destrutivo que o egocentrismo. Este é só um filho do narcisismo, irmão do egoísmo, indiferença, frivolidade, alheamento, vaidade, soberba, inveja, ciúme, ambição, negacionismo, agressividade, hipocrisia, clientelismo, fisiologismo... É o narcisismo que empurra os seres humanos a serem dominadores e violentos. É ele que move os tiranos e as tiranias às conquistas e às guerras. É ele que seduz para os desatinos de poder, de exploração, de concentração e acúmulo de riquezas ─ moléstias que estão a sacrificar a humanidade.
Cada ser humano, e, como resultado, toda a humanidade ─ que é a soma de todos nós ─ trava dentro de si a luta mortal entre o narcisismo e seu oposto, a solidariedade. O narcisismo nega, afasta, separa. A solidariedade compreende, une, agrega.
O surto de narcisismo que a civilização
atual está vivendo, manifesto nas guerras, no segregacionismo, nas teologias da
prosperidade e da dominação, na disseminada crença em mentiras rasas, parece
ter uma finalidade evolutiva. Ao longo dos milênios, surtos de narcisismo
sucederam-se: impérios expandiram-se, e depois sucumbiram, suplantados por
novos arranjos civilizacionais mais lúcidos, inclusivos e equilibrados.
Esse talvez seja o lado transformador dos
surtos de narcisismo, como este que ora vivemos: a doença engendra a sua
própria cura. O narcisismo, no seu tresloucado desvario, acaba por despertar
para a lucidez, o discernimento. Aquilo que era uma patologia latente, oculta,
revela-se. E, revelada, pode ser melhor diagnosticada, compreendida, tratada e
curada.
No passado já houve exemplos marcantes da
consequência transformadora do narcisismo: o obscurantismo da Idade Média
engendrou a luminosidade do Renascimento; o totalitarismo do fascismo e do
nazismo engendrou o culto à democracia. Mas parece fazer parte do desígnio da
evolução que os surtos de narcisismo e de discernimento se alternem
indefinidamente. Até quando? O que ainda falta à humanidade para enfim
reconhecermos os milagres da engenhosidade humana e da generosidade do planeta,
que nos acolhe e supre nossas necessidades e sonhos?
Talvez o que falta seja que, na luta íntima
que travamos entre o narcisismo e a solidariedade, nossa vontade coloque-se
firmemente em favor desta última. Decerto assim agindo, algum dia ainda
aprenderemos a respeitar o diferente. Compreenderemos, enfim, que a diferença
enriquece e dá plenitude ao ser humano.
Urge que aprendamos essa lição! Antes de
exterminarmos a espécie humana. A evolução está a nos testar, a verificar se
somos viáveis e merecedores do milagre da vida. Ou se é necessário
extinguir-nos para transferir a oportunidade para outra espécie mais
qualificada. A natureza vem fazendo isso ao longo da história do planeta, desde
muito antes de nós humanos. A diferença é que hoje somos capazes de exterminarmo-nos, e
até de destruir o planeta.
Perfeito! Outro grande problema dos narcisistas é que eles não se vêem como tal.
ResponderExcluirO narcisismo está em todos nós, o que temos que fazer é compreender que o outro pode ser diferente. Mas, existe limites. Aí , haja paciência pra engolir àqueles que ultrapassam esse limite.
ExcluirRilka Bandeira.
Salve Valenz. É bem isso! Um grande problema é reconhecermos o narcisista dentro de nós: eu, você, todos. Precisamos ver e civilizar esse narcisista.
ExcluirVerdade!
ExcluirMário, que texto!!! Uma palavra sequer pode ser qualificada como desnecessária! Parabéns pelo brilhantismo, que não se aplica apenas ao texto; é brilhantismo de uma mente que está em constante aprimoramento!
ResponderExcluirParabéns pelo belo texto, Mário! Eu, como você, descobri recentemente o verdadeiro significado de narcisismo. Os narcisistas estão por toda parte, inclusive bem mais perto do que julgávamos; dentro das famílias, arruinando casamentos e destruindo relações com os filhos.
ResponderExcluirMario, que texto profundo! Eu também não sabia o alcance do significado do narcisismo! Concordo que todos temos esse lado. Acho que é nosso lado “sombra”. Mas acredito que estamos caminhando para a “luz”, embora muito lentamente!
ResponderExcluirObrigada pelas suas reflexões tão lúcidas e precisas!
Mirian Cruxên