Publicado no blog de Carta Capital em 16/07/2017.
Risonho Sensalva de repente viu-se diante de um portal grandioso. Não havia nenhuma identificação, mas ele sabia: era a porta do fim da vida.
Risonho Sensalva de repente viu-se diante de um portal grandioso. Não havia nenhuma identificação, mas ele sabia: era a porta do fim da vida.
Ainda
assustado, sem saber o que estava acontecendo, foi se aproximando. Esperava
encontrar ou um velho de barba e batina branca, ou, tomara que não, um ente
vermelho com chifres e rabo. Por um momento repassou os feitos de sua vida. Não
achava que merecesse o inferno, mas mereceria o paraíso?
Outra
surpresa! Quem apareceu foi um jovem vestido a executivo, habilmente manejando
um ipad de última geração.
- Morri? Ou
estou sonhando?
- Olá Risonho
Sensalva. Não, isto não é bem um sonho. É um levantamento preliminar dos seus
dados de vida, para o desenlace futuro. Você ainda não morreu, o que acontecerá
num futuro incerto. Mas com o tamanho da população atual, temos que agilizar no
processamento dos dados. Notou que não há fila por aqui? É graças a estas
providências de planejamento.
- Quer dizer
que ainda não morri, mas vou morrer em breve?
- Ainda não
morreu. Quando vai morrer, se é em breve ou não, só Deus sabe.
- Mas não é
ele quem dirige isto aqui?
- Não. Na
verdade este é um serviço terceirizado. Atendemos a vários clientes.
- Mas se não
sabe quando vou morrer, como é que pode fazer este levantamento?
- Não se
preocupe, Risonho. Isto não é um sonho, mas é como se fosse. Quando você
acordar pela manhã, não vai lembrar de nada disto. Sua vida vai continuar como
sempre. A morte é certa, mas incerta na sua hora. Mas vamos ao que interessa. O
que você tem a dizer sobre sua vida? O que lembra que poderia credenciá-lo para
um ou outro caminho no fim de sua vida?
Risonho
calou-se momentaneamente, pensativo. Então começou sua defesa.
- Bem, desde
criança fui sempre um bom aluno...
- Ora, a
importância da educação formal anda muito relativizada. Hoje se considera que
qualidades como empreendedorismo, iniciativa, agressividade e malícia
profissional são mais efetivas para o sucesso...
- Ah, sim,
sim... Mas nos meus amores, desde jovem, fui sempre muito respeitoso e fiel...
- Ora, essas
qualidades também andam em questionamento. Uma certa ousadia é essencial para
apimentar os relacionamentos. E fidelidade... Ora, está provado que o ser
humano é, definitivamente, um ser infiel. A plenitude dos relacionamentos
depende da concorrência. Funciona como nos negócios.
- Fui um bom
pai de família? (a esta altura Risonho já duvidava de seus feitos).
- Muitos
acreditam que o núcleo familiar é a principal estrutura perpetuadora de vícios,
preconceitos e atavismos...
Já se
desesperando de perceber que o homem desqualificava tudo que pensava que tinham
sido virtudes em sua vida, Risonho Sensalva começou a exasperar-se.
- Fui um
profissional ético, que sempre procurou agir no interesse dos direitos daqueles
a quem servi, da qualidade, da honestidade, da justiça e da verdade...
- Ora, estamos
num novo tempo. Nem sempre o cliente tem a razão. Aliás, quase nunca tem a
razão. Não sabem que decisão tomar de forma a fortalecer o mercado, que é quem
mantém os empregos e a produção. Já qualidade, meu amigo, quer dizer
durabilidade. E se algo dura, a fábrica fecha! E para onde vão os empregos? E honestidade,
justiça e verdade! Ora, esses conceitos são muito relativos. O que pode ser honesto
e justo para um indivíduo pode ser prejudicial para a sociedade. E vice versa.
Verdade então! Existe uma verdade diferente para cada ser humano!
- Ah, sobre
isto tenho minhas convicções. E não abro mão! Sempre procurei seguir os
ensinamentos de minha religião. De que devemos agir com o próximo da mesma maneira
que queremos que ajam conosco. Isto me faz crer no respeito, na solidariedade,
na justiça e na inclusão social, no amor...
De repente,
Risonho Sensalva despertou em seu quarto de dormir. Era uma manhã corriqueira.
Ele tinha a sensação de que algo se passara, mas não conseguia se lembrar do
que era.
Lá no portal
do fim da vida, o executivo Rufinus Mercadante, pensativo, digitava em seu
ipad:
- Esse é de
outro tempo. Vai ter de reencarnar! E vai ter de renascer como, como...
Hesitou um
pouco.
- ... palhaço!
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Aos leitores do blog que desejarem postar comentários, pedimos que se identifiquem. Poderão não ser postados comentários sem identificação.