A vigorosa canção de Zé Ramalho “Admirável gado novo” (1979)
diz “Ê, ô, ô, vida de gado/Povo marcado, ê!/ Povo feliz!”. Apesar de ter
quarenta anos, a canção é atualíssima. Quem não a conhece, procure conhecê-la,
é facilmente encontrável na web.
O povo continua sendo marcado, mas não liga, se pode ser
feliz. Veja-se a notícia de que num único dia do carnaval dois milhões de
pessoas juntaram-se festejando nos blocos de rua do Rio. Viva os blocos de rua,
talvez sejam a expressão mais autêntica dessa que já foi uma festa popular,
espontânea.
Mas estes dois milhões de foliões poderiam ser também
cidadãos lúcidos, e apresentar-se nos momentos em que é mister indignar-se. A
imagem de povo gado confunde-se com a imagem do “corno manso”. Gado manso? Não
faz muito a expressão designava os frouxos de caráter que não tinham firmeza
para reagir à infidelidade, naquele tempo algo imperdoável, passível de punição
até por lei. Os tempos mudaram, mas a expressão corno manso ainda tem sua força
original. O corno é aquela figura inexpressiva, sem nenhuma energia, que não se
incomoda que lhe usurpem a parceira, que roubem a flor, depois pisem o jardim,
depois roubem a voz e por fim lhes roubem a identidade, a dignidade, a vida. O
corno manso é um capacho em que todos pisam, fornicam até na sua própria cama,
e ele, acovardado, não sabe como reagir, ou até faz que não sabe de nada do que
acontece, enfia a cabeça num buraco, como o avestruz.
O terço da população que é atavicamente fascista e vive
inebriado pelo fascínio do poder e da posse a qualquer custo pode ser comparado
com o chifrador. Os outros dois terços são as vítimas potenciais. E boa parte
destes dois terços anda se portando como legítimo gado manso, marcado, alienado,
e feliz.
O que mais falta para mostrar que o povo está sendo tangido
como gado ou chifrado por estupradores? Que não se satisfazem em violentar a
população, mas querem ferrar o País, submetendo-o a garanhões ainda mais
truculentos, a quem nossos estupradores domésticos, amansados, submetem-se de bom
grado?
Destruição, venda, fechamento de grandes empresas
brasileiras (Petrobras, OAS, JBS, Odebrecht, Embraer...), congelamento de
investimentos sufocando áreas estratégicas (infraestrutura, saúde, educação,
pesquisa científica...), incentivo à destruição da Amazônia (que equilibra o
clima no Brasil), liberação de agrotóxicos condenados (que envenenam os
alimentos), precarização do trabalho, restrições à aposentadoria e ao emprego
público, redução dos programas sociais, ocultação ou queima de arquivo de
testemunhas-chave (Cunha, Paulo Preto, Queiroz, Capitão Adriano...), assassinato
de opositores (Marielle), excludente de ilicitude (igual a autorização para
matar o pobre), incentivo ao armamentismo, associação de governantes com
milícias que impõem com terror e bala seu mando...
Se isto não basta para nos indignar é porque somos gado
marcado e feliz, ou exemplares cornos mansos. Estão nos tangendo para o
abatedouro, estão mesmo nos ferrando, e não queremos ver.
Muito bom texto. Vivemos de pão mofado e circo dos horrores. Tempos tristes esses e muitos aceitando cabisbaixos.
ResponderExcluirPerfeita a nossa descrição pela canção nesse texto visceral e contundente.
ResponderExcluirÉ muito triste que esse país que desabrochava seja ceifado desta forma.
Acredito que estamos caminhando pra revolta... nosso país sempre foi de cornos mansos, desde sempre nosso povo foi obrigado a aceitar as violências dos chifradores. Uma hora a gota d'água chega! Já acho que devia ter chego, mas tem algo ainda que vai despertar a debandada do gado bravo!
ResponderExcluir