quarta-feira, 25 de março de 2020

A praga dos fraquejados



─ Patrão, a praga já se espalhou pelas fazendas vizinhas. Até na nossa matriz do Norte. Muita gente doente, e muitos mortos. Pararam tudo, não tem mais plantio, não tem mais colheita, não tem mais secagem de grãos, não tem mais comércio.
─ Tão exagerando. Como é possível? Acho que tão mentindo. É coisa desse pessoal abolicionista. Assim não vai ter safra. Vão se arruinar! Se não trabalham, o que é que andam fazendo?
─ Estão trancados em casa, tentando evitar o contágio. Mas a praga é ladina, não dá pra saber quem está disseminando. O cabra parece são, está contaminado e contaminando.
─ E os patrões de lá? Também estão trancados em casa?
─ Estão, mais que o povo. A praga não tem compostura. Acomete o lacaio e o patrão do mesmo jeito. Ainda bem que os hospitais, na hora de internar os casos mais graves, selecionam.
─ Ah, ainda bem. Diante de tanta insolência, pelo menos isso. Mas não resolve a interrupção na produção e no comércio. Vão quebrar. Tem que trabalhar. Os que se recusarem a trabalhar por medo, é rua com eles. Tem muitos outros que estão querendo o seu emprego.
─ Acho que lá os patrões estão apostando que tudo passa logo. A malta tá em pânico, correndo aos mercados, os patrões estão vendendo os estoques, estão fazendo gordura econômica pra aguentar os próximos meses, até que tudo volte ao normal.
─ Será que volta ao normal? Se o mercado quebra, minha liderança vai junto.
─ Vai voltar. É preciso comer, é preciso viver. A vida continua. Apesar dos mortos.
─ Ah, os mortos! São na verdade os mais velhos, os já doentes, os mais pobres. Não têm valor no sistema produtivo. Não produzem, pouco consomem. São descartáveis. A praga está nos fazendo um favor, livrando-nos de um fardo social sem ter que carregar isso na consciência. Nem é preciso acabar com a saúde pública.
─ É verdade! Então talvez seja mesmo melhor não fazermos quarentena nenhuma. A praga vai fazer um expurgo, uma limpeza natural. Vamos nos livrar de um peso econômico, os velhos e os fracos. Só fazem lotar os hospitais, são uma sangria no nosso orçamento. Mas a praga também mata os velhos das famílias dos patrões.
─ Damos um jeito. Os patrões podem internar seus velhos nos hospitais da rede privada. Vamos providenciar isso aí. E tá na hora de entendermos que lugar de velho é mesmo no cemitério. São um estorvo.
─ Então não vamos fazer quarentena?
─ Não! Pelo contrário. Vou pessoalmente estimular as grandes multidões, vamos disseminar a praga, quanto mais doentes melhor. E vamos punir quem alegar questões de saúde pra não querer trabalhar. Vamos demitir, vamos cortar salários...
─ Mas patrão, não receia que a praga fuja de controle, mate mais gente do que as previsões?
─ Isso seria bom pro mercado, pra economia. Ia ser um sacrifício desprezível pelo bem da saúde do mercado. Ia melhorar a taxa de emprego, o PIB per capita...
─ Saúde do mercado?
─ É claro, é isso mesmo! A saúde do mercado é que importa. A saúde do povo depende dela. Só não podemos deixar que o povo enxergue isso. Vamos insistir que é só uma gripezinha.
─ Não tem medo de pegar essa praga?
─ Eu não! Isso não! Não tem praga que me pegue nesse mundo de fraquejados!

2 comentários:

  1. Oi Sérgio,
    É isso !
    Quanto mais mortos menos encargos como INSS e com o SUS.
    Lamentável.

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  2. justamente os que tem o privilégio de fazerem quarentena ,menos querem

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