“A mosca azul –
reflexão sobre o poder” (Editora Rocco, 2006) é um imperdível livro de Frei
Betto (Carlos Alberto Libânio Christo). Apesar de escrito há quase duas
décadas, é oportuníssimo para se pensar em como agem nossos dirigentes e o que
anda acontecendo em nossa sociedade.
Frei Betto é frade dominicano, jornalista e escritor
laureado, ganhador do Prêmio Juca Pato (1985) e do Jabuti, este duas vezes
(1982 e 2005). O frei revela no livro que, embora tenha participado do primeiro
governo Lula (2003-2004), sua formação religiosa e política foi nas Comunidades
Eclesiais de Base e na Pastoral Operária. Ele nunca foi filiado a nenhum
partido, mas declara-se um religioso que enxerga que fé e política caminham
juntas, e a fé cristã é aquela que Cristo ensinou, repartindo o pão com os
pobres.
O livro narra a trajetória dos movimentos populares no
Brasil, até a criação do Partido dos Trabalhadores (1980) e a eleição de Lula
para o governo federal (2002). Analisa como o sonho de uma sociedade livre e
justa no início catalisou expressiva parcela da população brasileira, e como,
após a chegada ao poder, a força do sonho inicial foi sendo dissipada pela
reação conservadora e por erros ou impossibilidades do governo e do PT: enfoque
mais econômico que de ideias e princípios, lideranças desvinculadas da base,
divisão entre tendências conflitantes, oportunismo de carreiristas... Frei
Betto alerta que o alimento da mudança é a quimera, mas que amiúde o logro
prevalece, o ideal dos pobres passa a ser a ilusão burguesa. Diferencia três
tipos de militantes: os pelegos (visam benefícios pessoais), os ideológicos
(teóricos dogmáticos distantes das bases) e os orgânicos (os identificados com
os pobres e o sonho legítimo de liberdade e justiça).
A formação e prática religiosa de Frei Betto capacitou-o a
uma acurada percepção das múltiplas faces que tem o ser humano, a exemplo
de um cristal facetado. Temos faces angelicais e diabólicas. Por esse motivo é
essencial cultivar a face solidária e a aspiração de um projeto de nação livre,
justa, inclusiva. A face diabólica a ser superada é narcisista, mentirosa, que faz
caixa dois e falsas promessas, é clientelista e fisiológica, despreza os que
não lhe servem de degrau ascendente.
Frei Betto adverte para o erro da mera disputa de cargos
eleitorais, a inexistência de um projeto de nação, a política de resultados
superando a de princípios, o descolamento das bases, a míngua da formação
política, o desparecimento dos núcleos de base: “O partido deixa de ser ferramenta de transformação da sociedade para
tornar-se quase que somente a via de acesso de seus quadros ao poder”.
O autor ressalta que as elites manipulam o falso e
camuflado paradoxo entre justiça e liberdade: um terço da humanidade goza os
privilégios da suposta liberdade do mercado, que penaliza outros dois terços,
vítimas da ausência de justiça, que concentra renda e dissemina pobreza. A
questão da sonhada harmonia entre justiça e liberdade não é ideológica, mas é
ética: é preciso despertar para o crime de lesa-humanidade que é o arranjo que beneficia
uma minoria às custas da exploração e exclusão da maioria.
O livro indica alguns caminhos para a saída dos impasses da
esquerda e superação da indiferença e desesperança, que acometem sobretudo os jovens: retomar o trabalho de base,
reinventar a estrutura sindical, reativar o movimento estudantil, abordar
questões indígenas, étnicas, sexuais, femininas, ambientais... Se fosse escrito
hoje, possivelmente Frei Betto também recomendaria perícia no uso dos modernos meios
de comunicação, como ferramenta de contato com as bases e de combate à
desinformação e à mentira.
No último capítulo, Frei Betto dedica-se a declarar sua
convicção de que fé cristã e política são inseparáveis. Ele relembra que a vida
de Cristo foi uma vida de militância, de pregação, de convício com os pobres e
do sonho de justiça e liberdade. A mística cristã é o amor. É ele o caminho
para o mundo de justiça e liberdade que almejamos.