sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Frei Betto e a mosca azul

 

A mosca azul – reflexão sobre o poder” (Editora Rocco, 2006) é um imperdível livro de Frei Betto (Carlos Alberto Libânio Christo). Apesar de escrito há quase duas décadas, é oportuníssimo para se pensar em como agem nossos dirigentes e o que anda acontecendo em nossa sociedade.

Frei Betto é frade dominicano, jornalista e escritor laureado, ganhador do Prêmio Juca Pato (1985) e do Jabuti, este duas vezes (1982 e 2005). O frei revela no livro que, embora tenha participado do primeiro governo Lula (2003-2004), sua formação religiosa e política foi nas Comunidades Eclesiais de Base e na Pastoral Operária. Ele nunca foi filiado a nenhum partido, mas declara-se um religioso que enxerga que fé e política caminham juntas, e a fé cristã é aquela que Cristo ensinou, repartindo o pão com os pobres.

O livro narra a trajetória dos movimentos populares no Brasil, até a criação do Partido dos Trabalhadores (1980) e a eleição de Lula para o governo federal (2002). Analisa como o sonho de uma sociedade livre e justa no início catalisou expressiva parcela da população brasileira, e como, após a chegada ao poder, a força do sonho inicial foi sendo dissipada pela reação conservadora e por erros ou impossibilidades do governo e do PT: enfoque mais econômico que de ideias e princípios, lideranças desvinculadas da base, divisão entre tendências conflitantes, oportunismo de carreiristas... Frei Betto alerta que o alimento da mudança é a quimera, mas que amiúde o logro prevalece, o ideal dos pobres passa a ser a ilusão burguesa. Diferencia três tipos de militantes: os pelegos (visam benefícios pessoais), os ideológicos (teóricos dogmáticos distantes das bases) e os orgânicos (os identificados com os pobres e o sonho legítimo de liberdade e justiça).

A formação e prática religiosa de Frei Betto capacitou-o a uma acurada percepção das múltiplas faces que tem o ser humano, a exemplo de um cristal facetado. Temos faces angelicais e diabólicas. Por esse motivo é essencial cultivar a face solidária e a aspiração de um projeto de nação livre, justa, inclusiva. A face diabólica a ser superada é narcisista, mentirosa, que faz caixa dois e falsas promessas, é clientelista e fisiológica, despreza os que não lhe servem de degrau ascendente.

Frei Betto adverte para o erro da mera disputa de cargos eleitorais, a inexistência de um projeto de nação, a política de resultados superando a de princípios, o descolamento das bases, a míngua da formação política, o desparecimento dos núcleos de base: “O partido deixa de ser ferramenta de transformação da sociedade para tornar-se quase que somente a via de acesso de seus quadros ao poder”.

O autor ressalta que as elites manipulam o falso e camuflado paradoxo entre justiça e liberdade: um terço da humanidade goza os privilégios da suposta liberdade do mercado, que penaliza outros dois terços, vítimas da ausência de justiça, que concentra renda e dissemina pobreza. A questão da sonhada harmonia entre justiça e liberdade não é ideológica, mas é ética: é preciso despertar para o crime de lesa-humanidade que é o arranjo que beneficia uma minoria às custas da exploração e exclusão da maioria.

O livro indica alguns caminhos para a saída dos impasses da esquerda e superação da indiferença e desesperança, que acometem sobretudo os jovens: retomar o trabalho de base, reinventar a estrutura sindical, reativar o movimento estudantil, abordar questões indígenas, étnicas, sexuais, femininas, ambientais... Se fosse escrito hoje, possivelmente Frei Betto também recomendaria perícia no uso dos modernos meios de comunicação, como ferramenta de contato com as bases e de combate à desinformação e à mentira.

No último capítulo, Frei Betto dedica-se a declarar sua convicção de que fé cristã e política são inseparáveis. Ele relembra que a vida de Cristo foi uma vida de militância, de pregação, de convício com os pobres e do sonho de justiça e liberdade. A mística cristã é o amor. É ele o caminho para o mundo de justiça e liberdade que almejamos.

sábado, 12 de outubro de 2024

Dilema civilizacional - a mosca e a janela de vidro

 Publicado no Jornal da Manhã em 15/10/2024.

Na sala de uma moradia há, de um lado, uma ampla janela de vidro, fechada, que dá para um iluminado jardim, com apetitosas flores e frutos. Do outro lado da sala, uma porta dá para o interior da casa, mais escuro que o luminoso jardim. Duas moscas tentam chegar ao jardim. Malogradas, batem-se repetidamente contra o para elas invisível vidro. Já estão extenuadas, quase mortas. Uma delas repousa um instante de recuperação, e volta a bater-se contra o vidro. Até tombar sem vida. A segunda, resolve usar outra forma de percepção que não seja só a visão, que lhe mostra o ambicionado jardim, mas não o vidro. Olha em volta, vê a porta, não tão atraente, mas uma possível saída. Voa para ela, consegue chegar a outro aposento da casa, depois a outro, até encontrar uma janela aberta, e assim sai para a liberdade do ar livre. Se procurar, ainda vai poder encontrar o jardim. A outra mosca, jaz no vão da janela.

Os seres humanos parecem comportar-se como estas moscas. A janela de vidro intransponível, contra a qual nos batemos, ignorando-a ou negando-a, é o cuidado que deveríamos ter para com a natureza, que nos provê a vida, e a solidariedade para com o próximo, que nos provê a justiça e a paz. A natureza já não consegue se recuperar no planeta finito que está superpovoado e superexplorado. A teimosia em bater-se contra o vidro é a cobiça, a compulsão de ter, de poder, de competir, de sobressair-se. O jardim luminoso que nos seduz talvez seja o sonho de emancipação, de paz, de fraternidade. O caminho alternativo – a menos fascinante e mais longa porta de saída para a sobrevivência, a liberdade e o devir esperançoso – é o controle de nossas pulsões, o discernimento, a sobriedade para com a natureza, a compreensão dos inevitáveis limites, a amorosidade para com o próximo. Tarefa que nos parece assaz penosa.

Se teimarmos fazer como a mosca que se debate impulsiva contra o vidro, vamos acabar como ela. É bem provável que não só venhamos a perecer, mas também causemos uma extinção em massa no planeta. Apesar do colapso, a Terra há de se recuperar, como já fez outras vezes após cataclismos naturais: novas espécies, mais evoluídas, povoarão o planeta após a infausta experiência humana. Temos imitado esta mosca negligentemente suicida: na ânsia de dominar, de enriquecer, de se sobressair. As crises que a humanidade vivencia hoje – climática, hídrica, sanitária, política, social, educacional, cultural, religiosa, de segurança, de guerras, de foragidos, de desinformação, ética, moral – e a impotência para resolvê-las, escancaram o quanto estamos agarrados ao papel da mosca suicida.

A humanidade há de ter um lado mais evoluído, algo que a distinga da mosca que não é cega da visão, mas é cega de capacidade de reflexão e de cooperação. As crises que vivenciamos hoje não resultam de um sistema econômico cruel, de uma nação imperialista guerreira, de um arranjo político e social falido. Todos estes desatinos é que são resultantes do lado ainda primitivo da índole humana, da teimosia de continuar batendo-se contra o vidro da janela, ao invés de refletir para encontrar uma saída viável. Infelizmente, esta cegueira de bom senso é alimentada por um avançado sistema de manipulação da opinião, que tange multidões, dissemina mentiras e semeia desesperança, reduzindo o gênio humano ao mesmo comportamento da mosca suicida.

Vê-se logo que a estória das duas moscas é muito simplista. Há também aquelas que têm empatia com a congênere que se debate cega, e mostra a ela o caminho da saída. Há aquelas que, chegando ao cobiçado jardim, vão tentar tirar egoístico proveito dele. Talvez até construam anteparos de vidro para isso.

Mas, com certeza, o ser humano é mais que a mosca cega de discernimento. Só é preciso lembrá-lo disso.