sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Conferência Municipal do Meio Ambiente de Ponta Grossa

 Publicado no Jornal da Manhã em 14/11/2024.

Ponta Grossa realiza, nos dias 21 e 22 deste mês, a 5ª Conferência Municipal do Meio Ambiente, nas dependências da UTFPR-PG. Tendo sido professor de Meio Ambiente e Sustentabilidade na UEPG por 15 anos, venho antecipar alguns temas que creio essenciais e que devem ser tratados no evento. São temas com relevância local, mas que estão estreitamente relacionados com os temas globais conectados com a emergência climática e suas consequências.

O primeiro tema é a questão dos recursos hídricos. Os mananciais superficiais dependem das chuvas, estas cada vez mais imprevisíveis. A água é mundialmente considerada o “ouro azul” do século XXI, crises hídricas serão inevitáveis. É necessário que o município gestione com firmeza a proteção de  seus mananciais, tanto as bacias hidrográficas – os mananciais superficiais – quanto as áreas de recarga do Aquífero Furnas – os mananciais subterrâneos –. As áreas de recarga do aquífero são as áreas de afloramento do Arenito Furnas, na parte leste do município. No caso, o que define a extensão da área a ser protegida é a área de ocorrência da unidade geológica, que ultrapassa o limite da bacia hidrográfica.

O segundo tema, é a proteção e efetiva implantação das unidades de conservação dentro do município. Destacam-se o Parque Nacional dos Campos Gerais, a APA – Área de Proteção Ambiental – da Escarpa Devoniana e o Parque Estadual de Vila Velha. Só não defende as UC’s quem é movido pela cupidez do lucro rápido e pela desfaçatez ambiental. É a ignorância de ainda não ter compreendido os vitais serviços ambientais prestados pelas UC’s: equilíbrio da biodiversidade e controle de pragas e polinizadores; regularização do ciclo hidrológico e preservação dos mananciais hídricos; consequente preservação da qualidade e produtividade dos solos agrícolas; retenção do carbono do solo e da biomassa, redução das emissões de gases estufa e equilíbrio do clima; proteção de patrimônio natural único para pesquisas científicas, educação e lazer junto à natureza. No caso de Ponta Grossa, a proteção das UC’s tem estreita relação com a proteção dos mananciais hídricos, tanto os superficiais quanto os subterrâneos. Um cuidado capital é que não se confundam unidades de conservação com destinos turísticos desregrados. A função ambiental, científica e educacional deve ser sempre prioritária em relação à função turismo e lazer.

O terceiro tema tem a ver com os arroios urbanos. Urge saneá-los. Ponta Grossa tem um sítio urbano peculiar: o centro e os principais eixos radiais da cidade situam-se em áreas elevadas. Deles diverge uma rede hidrográfica com vários arroios: Grande, Pilão de Pedra, Cará-Cará, Olarias, Ronda, Gertrudes – afluentes dos rios Verde, Pitangui e Tibagi. Esta particularidade coloca várias questões: altos bem urbanizados distando poucas dezenas de metros de encostas e fundos de vale caóticos; várias estações de tratamento de esgotos, uma para cada arroio. Ademais, a cidade é antiga: a captação de esgotos amiúde é feita indevidamente na rede pluvial, que os despeja diretamente na rede de drenagem. Por esse motivo os arroios da cidade ainda são poluídos, embora se alegue que ela seja uma das mais bem saneadas do país. É necessário um minucioso trabalho de verificação da destinação correta dos esgotos.

Que a 5ª Conferência Municipal do Meio Ambiente logre lançar as sementes de um futuro ambiental sadio para a cidade.

domingo, 10 de novembro de 2024

Envelhecimento: madurez ou azedume?

 

Dizem que o vinho quanto mais velho melhor. Será? Não é bem assim. O vinho de boa qualidade pode ser. O de má qualidade, azeda, vira vinagre. Mesmo o de boa qualidade, o envelhecimento tem que ser acertado: sem mudanças de temperatura, sem luz, sem sacolejos, sem trocas de fluidos através da rolha. E ainda, na hora de degustar, depois de desarrolhar, aguardar o tempo certo necessário para uma decantação ideal.

Dizem também que a amizade é como o vinho. Então valem para a amizade as mesmas ressalvas que valem para o vinho. E dizem também que o envelhecimento das pessoas é como o do vinho: traz a maturidade, a emancipação do ser humano, que com o passar dos anos livra-se de muitas das opressoras e hipócritas convenções de nossa sociedade. Ah, aqui não se têm dúvidas: se a velhice humana é comparável ao envelhecimento do vinho, pelos resultados – velhos ora sábios, ora amargurados ranzinzas, ora soberbos, ora alienados – deduzimos que por certo há os de boa e os de má cepa, há os que não tiveram o envelhecer – o decorrer da vida – que propiciasse um amadurecimento adequado.

Gosto de compartilhar um exemplo marcante da Geologia para exemplificar a velhice tão cheia de ranços e presunções, que nada se pode atribuir-lhe de sábia. A teoria geológica mais aceita até meados do século XX era a “teoria geossinclinal”, que vinha sendo aperfeiçoada há mais de cem anos. Ela explicava a ocorrência de fósseis marinhos no alto das grandes cadeias montanhosas admitindo movimentos verticais da superfície terrestre: ora depressões invadidas por mares, seguidas de soerguimentos formando as cadeias de montanhas. Essa teoria prevaleceu até depois da segunda guerra mundial. Cursei a graduação em Geologia na USP de 1971 a 1975, e boa parte de meus professores ainda era adepta da teoria geossinclinal.

Mas desde 1915, um jovem geocientista alemão, Alfred Wegener, então com 35 anos de idade, já publicava artigos e defendia em encontros científicos uma hipótese alternativa à teoria geossinclinal: a “teoria da deriva continental”. Baseado em vários argumentos – nítido ajuste de continentes, tal como entre África e América do Sul, semelhanças dos fósseis, rochas, estruturas geológicas e evidências paleoclimáticas em continentes hoje afastados – Wegener advogou que no passado as terras emersas estavam unidas num único grande continente, a Pangeia. Assim, ao contrário da teoria geossinclinal, a deriva continental falava em movimentos horizontais da crosta terrestre. Mas o jovem geocientista não soube explicar o mecanismo que causaria a desagregação da Pangeia e a deriva de seus fragmentos, as placas tectônicas. Os velhos e catedráticos doutores, que se presumiam os donos da verdade sobre a dinâmica terrestre, condenaram a brilhante teoria de Wegener à ridicularização. Mas, passadas algumas décadas, com as evoluções tecnológicas devidas às duas guerras mundiais, o mapeamento do fundo dos mares e o desenvolvimento das técnicas de datação radiométrica das rochas, as ideias do jovem cientista foram finalmente sendo aceitas.

Atualmente é graças à tectônica de placas que se orientam as prospecções de recursos minerais e energéticos, e se faz a gestão de desastres naturais de natureza geológica. As modelagens apoiadas na teoria são fundamentais. Entretanto, talvez mais que a evolução da ciência, a deriva continental e a moderna tectônica de placas tenham tido que aguardar a morte de uma presunçosa e velha geração de geocientistas, que se considerou ofendida com a revolucionária teoria de Wegener.

Aqueles velhos geocientistas não tinham amadurecido como um bom vinho. Retardaram por meio século a evolução das Geociências.

sábado, 2 de novembro de 2024

O chupim do nosso jardim

 

Nosso jardim da casa na Vila Placidina, em Ponta Grossa, embora pequeno, é um santuário de pássaros. Uma pitangueira, uma caramboleira, uma aceroleira, um pote com água fresca, duas garrafinhas com água adocicada, um prato com alpiste e painço, um comedouro com mamão e bananas, quirera esparramada no chão, os insetos e vermes da terra, vasculhada pelas aves, dão conta de fazer aquele reduzido espaço, perto do centro da cidade, sempre muito cheio de vida. São sanhaços, sanhaços-papa-laranja, sabiás-laranjeira, sabiás-do-campo, sabiás-poca, bem-te-vis, cambacicas, saís-azuis, colibris, avoantes, canários-da-terra, rolinhas, chupins, joões-de-barro, corruíras. Mais raramente guaxos, tiés-sangue, saíras-preciosas e, estranhamente, pardais e tico-ticos; estes dois últimos antes eram comuns, mas passaram a quase não mais serem vistos. Nestes últimos dias, para nossa surpresa, apareceram pela primeira vez um jacuguaçu e uma saracura-do-mato. Pareceu-nos que a natureza anda mesmo desorientada.

É um rico divertimento ficar observando os pássaros, aprendendo seus hábitos e comportamentos. Constata-se que há os que são pacíficos, há os briguentos, há os tímidos. Todos têm preferências alimentares bem definidas. No comedouro de frutas, uma rígida hierarquia: os sabiás-do-campo têm prioridade, e costumam comer em família, até quatro indivíduos; depois vêm, na ordem, os sabiás-laranjeira, os sanhaços e, no final, o tranquilo bem-te-vi, que costuma tolerar os sanhaços enquanto bica as bananas. Sabiás-laranjeira e bem-te-vis sempre vêm sozinhos – salvo quando vem junto um filhote –. Os sanhaços aparecem em até sete indivíduos ao mesmo tempo, quando ruidosas balbúrdias chegam a jogar no chão as frutas do prato. As avoantes e os chupins chegam aos bandos para ciscar a quirera no chão, os canários-da-terra vêm quase sempre aos casais, no prato de alpiste e painço, e também na quirera.

Não sei por qual razão destes tempos desarrazoados, os antes predominantes pardais e tico-ticos têm desaparecido. Uma pardaloca às vezes vem bicar as frutas do comedouro, junto com os sanhaços. Mas o que nos chamou a atenção no início deste ano foi uma extremosa mãe tico-tico, alimentando um filhote de chupim já bem maior que ela. Aparentemente embaraçada em sua transvertida tarefa, ela ora conduzia o filhotão às frutas, ora à quirera no chão, ora ao prato com alpiste e painço. E ele, chiando de protesto, seguia-a obsessivo, abrindo um bico enorme, onde cabia toda a cabeça da mãe adotiva. Uma visão bizarra, às vezes até revoltante. A natureza não se cansa de nos surpreender com suas traquinagens.

Talvez por ser a preferência alimentar dos tico-ticos, era mais comum ver mãe e filhotão no prato de alpiste e painço. Mas, justamente para evitar que os pássaros maiores, tais como as avoantes, rolinhas e os chupins, acabassem com os grãos destinados prioritariamente aos pequenos canários-da-terra, protegi o prato com uma tela de arame com duas aberturas pequenas, que só deixam passar os pássaros menores: não só os canários, mas também os pardais e os tico-ticos. Um graveto fora da tela, junto às aberturas, serve de poleiro para os pássaros. Então, a mãe tico-tico entrava pela abertura, enquanto o filhotão aguardava chiando, protestando, abaixado, tremulando as asas, bico aberto, empoleirado no graveto. A mãe pacientemente entrava e saía pela abertura, levava os grãos do prato para o bico do birrento chupim.

Passados meses, os chupins continuam frequentando a quirera esparramada no chão. No início, só um chupim adulto – que creio ser uma fêmea, por não exibir o brilho azulado típico dos machos – frequenta o prato com alpiste e painço. Ela vem sozinha, pousa no poleiro fora do prato, não consegue passar pela abertura pequena, então enfia a cabeça e alcança alguns grãos mais próximos. De quando em quando, saltita no poleiro, como a sacudir o prato para fazer que mais grãos cheguem ao alcance do seu bico. Engenhosa, parece ter aprendido o método com uma extremosa mãe granívora.

Deduzimos que é o filhotão – então seria filhotona – que víamos meses atrás, agora já um chupim adulto. Resolvemos dar-lhe o nome de Macuna, sincopado de Macunaíma. Apesar da implicância pelo fato de a considerarmos fruto de um cruel parasitismo, ela acabou conquistando nossa simpatia; pela criatividade, pela confiança e assiduidade com que frequenta o prato de grãos e nos diverte com seu engenho.

Mas eis que ela continua nos surpreendendo. Agora, tem vindo acompanhada de um chupim com o característico brilho azulado dos machos. Ela está compartilhando seu aprendizado com um companheiro recente. E dentro em pouco, possivelmente veremos de novo uma extremosa mãe tico-tico visitando o prato de grãos com um filhotão chupim. Nos perguntaremos então se ele será um filho-neto adotivo, fruto das artimanhas da natureza.