domingo, 29 de setembro de 2024

Crise hídrica e guerra mundial

 Publicado no Jornal da Manhã em 28/09/2024.

Os eventos recentes escancaram que já estamos vivendo as consequências do aquecimento global e da emergência climática: enchentes catastróficas, secas prolongadas, recordes de temperatura, incêndios... As previsões são que os eventos climáticos extremos serão cada vez mais frequentes e agudos.

A água tem sido considerada a substância chave para o Século XXI. Por isso é chamada “o ouro azul” do século. A distribuição da água potável no planeta deverá sofrer profunda crise com as mudanças climáticas. Atualmente, segundo a UNICEF (órgão da ONU para a infância), a escassez de água já penaliza cruelmente a humanidade: 2,1 bilhões de pessoas sofrem de insegurança hídrica, 4,5 bilhões não contam com serviços de saneamento seguros. E esta atroz realidade só vai piorar.

No Brasil, parecemos não querer nos preocupar com a água. Afinal, o país é o detentor dos maiores volumes de água doce do planeta. Mas a despreocupação está dando origem à negligência, à ruína. Poluímos águas superficiais, incendiamos a vegetação nativa e degradamos solos que são essenciais no ciclo da água, causamos a depleção de aquíferos... Com os incêndios na floresta, os “rios voadores”, que transportam umidade da Amazônia para o Centro-Oeste, Sul e Sudeste do país, estão se transformando em torrentes de fumaça e fuligem. Atenção: comprometer a capacidade da Amazônia de abastecer os rios voadores que irrigam o Brasil causaria mais danos que um ataque nuclear ao nosso país.

Com o agravamento da emergência climática, as águas subterrâneas passam a ter importância estratégica crescente. Os aquíferos – as unidades rochosas que acumulam água nos seus poros e vazios – fornecem água de boa qualidade, em volumes que podem suprir as necessidades humanas por muito tempo. A água subterrânea tem algumas vantagens: não depende das mudanças nas precipitações; a água é de boa qualidade e em volumes apreciáveis; dispensa tratamento prévio; os poços podem ser perfurados no local de uso, evitando redes de distribuição. Mas a água subterrânea também tem suas vulnerabilidades: se poluídos, os aquíferos tornam-se praticamente irrecuperáveis. Assim, diante da emergência climática, nunca foi tão importante cuidar da proteção dos aquíferos.

A cidade de Ponta Grossa no Paraná – um exemplo bem oportuno – é abençoada com a existência de um generoso manancial subterrâneo em seu subsolo: o Aquífero Furnas. Em estudos realizados em 2010, os poços tubulares profundos que exploravam águas desse aquífero na cidade já tinham possibilidade de produzir 30% da demanda. Decerto essa capacidade cresceu com a perfuração de novos poços desde então; novos estudos têm que ser feitos.

A preservação da qualidade da água do Aquífero Furnas depende de ação firme. É urgente um regramento municipal que regule o uso da terra nas áreas de recarga do aquífero: na porção leste da cidade, onde aflora o Arenito Furnas, é essencial a condição de proteção de manancial, que evite qualquer atividade potencialmente poluente. Lá não é lugar para aterros sanitários, uso de agrotóxicos, efluentes da indústria e da pecuária. O que implica inclusive a remoção do lixo contido no encerrado Aterro Botuquara para outro local. Ademais, a exploração pelos poços também tem de ser regulamentada, para evitar a depleção e a poluição pela contaminação com águas impróprias, provindas de unidades rochosas justapostas.

Enquanto, com o agravamento das crises na Ucrânia e no Oriente Médio, a humanidade se preocupa com o risco de uma nova guerra mundial, urge a atenção com a água, diante do incerto futuro climático. Sua escassez pode ser igualmente devastadora.

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

O deus dinheiro, o messias Narciso e a escrava Terra

 Publicado no Jornal da Manhã em 20/09/2024.

Estaremos já colhendo os sinais de autoextinção da humanidade? Os desastres de Mariana e Brumadinho, a pandemia de Covid-19, o aquecimento global e derretimento das calotas polares, as inundações no RS, a aguda seca e as queimadas atuais, o desregramento e a disseminação da desinformação, os temores com o descontrole e a sublevação da inteligência artificial, as guerras cognitivas e por procuração, o risco crescente de confrontos nucleares, a ascensão de radicalismos, segregacionismos e limpezas étnicas, a chamada teologia da dominação... Estes são só alguns sinais mais recentes da insanidade que nos conduz a uma tragédia final.

Há várias alternativas concretas para o fim da civilização atual: cataclismos climáticos que nos privassem da água, de alimentos e de ar respirável; uma pandemia incontrolável; uma guerra nuclear generalizada; a bestificação das massas manipuladas, encolerizadas e armadas; a destruição por uma inteligência artificial revoltada... Muitas ficções – ou seriam previsões? – têm abordado estes temas. Acrescentam outros, naturais, como o impacto de um meteorito destruidor, terremotos, vulcões e tsunamis avassaladores. O tema do colapso da civilização nunca esteve tão presente nos nossos temores e suas manifestações na literatura, no cinema.

O deus dinheiro tem sido o guia da humanidade há séculos. Inventou-se até a teologia da prosperidade. Ele abençoa o lucro, e condena a solidariedade humana e a natureza. Narciso, no sentido freudiano – tudo que não é imagem especular é condenável e deve ser dominado ou destruído –, é o messias do deus dinheiro. Seus mandamentos ensinam a ganância, a competição, a supremacia, a improbidade, a agressividade, a incúria moral e ambiental, o desperdício. O planeta Terra tornou-se a escrava a ser explorada sem misericórdia, até sua completa ruína.

Para lembrar algumas séries e filmes que tratam das fictícias distopias provocadas pela demência humana, podemos citar O dia depois de amanhã, O exterminador do futuro, Matrix, Interestelar... Mas são muitos títulos. Além dos que tratam de fenômenos naturais, como 2012, Não olhe para cima, Impacto profundo, Destruição final – o último refúgio... Também são muitos títulos. Será que tanta criação artística calamitosa estaria dando vazão a um justificável temor de nossa própria insanidade?

O deus dinheiro e os deslumbrados narcisistas estão exaurindo a capacidade de regeneração da escrava Terra. Agimos como um vírus mortal, que, no afã de disseminação e dominação, não consegue parar antes de sacrificar o hospedeiro. Matando-o, acaba por também sacrificar a si mesmo. Será que o tino da espécie humana é igual ao desse incauto vírus, que se autodestrói? Será essa uma providência das leis naturais, para controlar organismos predadores que ameaçam o milagre que é a multiplicidade da vida no planeta Terra?

Se essa lei natural que extermina organismos nocivos realmente funcionar, estamos correndo sério risco. Mas ainda nos resta uma centelha de discernimento. Quem sabe ainda logremos aprender a conviver com os diferentes entre nós, com as outras espécies, e dentro dos limites de recuperação da natureza?

Oxalá aprendamos!

terça-feira, 10 de setembro de 2024

Uma revolução ética e solidária

 Postado no Portal DCmais em 10/09/2024, publicado no Jornal da Manhã em 11/09/2024.

A chegada a Ponta Grossa, vindo de Curitiba, quando se alcança o Distrito Industrial, cinco quilômetros antes da cidade, proporciona uma bela visão da silhueta urbana, que se alteia sobre o horizonte de colinas suaves dos Campos Gerais. Uma visão que já inspirou muitos viajantes, de hoje e de antigamente, a traduzir em belas palavras o sentimento de acolhida e de boas-vindas daqueles que divisam a Princesa dos Campos, seja ela o lar ou uma passagem de um percurso maior.

Mas neste último sábado, 7 de setembro de 2024, o sentimento de alegria do retorno ao generoso lar foi-nos substituído por outro: de desolação, de preocupação. Quase não se via a silhueta da cidade, embaçada pela densa e esbranquiçada névoa seca, um eufemismo para a fumaça vinda das insanas queimadas na Amazônia e no Pantanal. Que paradoxo! Os chamados “rios voadores”, que trazem a umidade da Amazônia para dessedentar e fertilizar o Sul e Sudeste do Brasil, agora trazem fumaça! Junto com massas de ar quente e seco, que subvertem a normalidade climática.

O impacto visual não chega sozinho: a água da pífia chuva da semana anterior, que coletamos no quintal, que escorreu pelos telhados, ficou enegrecida com a fuligem finíssima depositada pela névoa seca; a população é acometida de um surto de doenças respiratórias, e já não se encontram umidificadores nas lojas especializadas; os agricultores anunciam colheitas antecipadas e perda de safras; o preço de alguns produtos, tais como açúcar, feijão e carne, ficam mais caros em consequência das queimadas e da seca; a tarifa da energia elétrica sobe para o vermelho, pelo imperativo de ativar as caras e poluentes termelétricas...

Estaremos já vivendo o anunciado apocalipse, resultante da desmedida incúria humana, que incendeia as florestas que são a fonte da vitalidade de grande parte do Brasil? E estes sinais ambientais de nossa insensatez vêm acompanhados de outros: o endeusamento do dinheiro e do mercado; a mentira mais crível que a verdade; o egoísmo suplantando a solidariedade; a tolerância rendendo-se aos extremismos; as guerras de extermínio e de dominação; a boçalidade de homens e mulheres candidatos a parlamentares e governantes; a falência da democracia representativa transformada em plutocracia; a fé convertida em mercadoria; os milhões de refugiados da fome e da violência mundo afora...

Vivemos um momento em que a barbárie está superando a civilização. Urge uma mudança drástica, uma revolução, antes que a espécie humana cometa sua autoextinção e a devastação das condições da Terra suportar a vida. Não é uma revolução nos sistemas políticos, econômicos ou sociais. Estes são só o espelho da conduta humana. A revolução inadiável é no comportamento humano. Se lograrmos transformá-lo, tudo se beneficiará. Sim, somos seres muito complexos. Convivem em nosso íntimo contraditórios impulsos de destruição e de construção, de competição e de solidariedade, de violência e de paz, de cupidez e de generosidade. É a hora de escolhermos os impulsos construtivos, amorosos.

A engenhosidade da humanidade é caprichosa: ela pode criar novas plantas alimentícias, curar doenças, enviar-nos à Lua, ou pode dizimar-nos numa guerra nuclear, deteriorar as águas, os solos, o clima... Dilemas que precisam ser resolvidos com ética, com solidariedade.

Ou não será possível reverter a catástrofe que estamos cultivando.