sábado, 16 de maio de 2020

Somos ogros ou gente?



Ogros (ou orcs, morlocks) são aqueles seres míticos imemoriais, que desde as mais antigas culturas têm encarnado os monstros sombrios que emergem das profundezas. Funduras da Terra? Do subconsciente? Da alma? Este tema há muito tem sido um prato cheio para os antropólogos e psicanalistas.
Já foi dito, um país é feito de seu povo. Como isto é verdade no Brasil! O gigante continental com riquíssimos recursos naturais, deitado eternamente em berço esplêndido. Deve estar a lhe faltar o povo que o faça despertar. Neste instante próximo do clímax da pandemia do COVID-19, somos motivo de escárnio e de aguda preocupação em todo o mundo: os esforços de enfrentamento e de contenção do vírus, que são de todos os países, veem-se ameaçados pela insensatez que emana do que se faz por aqui. Arriscamos continuar propagadores do vírus para o resto do mundo, a despeito das medidas sérias e bem sucedidas de erradicação que tenham tomado por lá. Hoje já somos os principais transmissores para o Paraguai, a Colômbia e outros vizinhos sul-americanos menos ensandecidos.
A insanidade dentro do nosso território tem ares de festim diabólico, que dá vida aos ogros. Os números de contaminados e mortos só fazem crescer, mas uma parte da população teima nas manifestações ruidosas, agressivas, contagiosas, de apoio a uma liderança que ameaça endurecer as regras rumo ao totalitarismo. Quem são essas gentes unha e carne com o líder mitificado sem rumo, que elegeram e defendem como uma matilha a remedar seu agressivo alfa?
Há quem compare as gentes que têm se aglomerado semanalmente vestidos de verde e amarelo para proferir insultos contra todos que discordam, agredir jornalistas, profissionais de saúde, funcionários públicos, professores, artistas, com os ogros monstruosos desenterrados dos subterrâneos. Onde sempre estiveram, à espera do momento de descuido para revelar-se e vir subjugar as gentes simples a quem ainda resta um laivo de consciência, de humanidade, de dúvida. Para os ogros não resta dúvida. Estão certos da sua verdade, ainda que ela contradiga a ciência e os cientistas, os organismos mundiais de saúde, a experiência de outros países, os dados crescentes de contaminados e mortos entre nós, os alertas de desapaixonados e experimentados profissionais aqui dentro de nosso país.
Os ogros emergiram das trevas, libertaram-se das amarras do frágil contrato social que nos dá ares de civilizados. Estão à vontade para dar vazão à bestialidade antes reprimida, mas que existe latente em todo ser humano. Mas onde andam as pessoas que têm logrado resistir à irrupção do ogro, cuja civilidade ainda domina a tentação de entregar-se à bestialidade? Estão assustadas e confinadas? Estão confusas? Seria enfim preferível extravasar o ogro adormecido dentro de cada um de nós? Estará certo o líder da potência armada que não reluta em destruir ou sufocar economicamente os países que se negam a submeter-se ao seu projeto de hegemonia mundial? O lema de Tio Sam é “nós primeiro”, um bordão sinistro de destrutivo egocentrismo e furiosa competitividade que contraria a solidariedade imprescindível para a sobrevivência e o progresso da humanidade. Bordão copiado por nosso inqualificável presidente e seu governo.
O Brasil está voltando a ser o quintal explorado do tempo de colônia. As gentes não ogros que porventura ainda restem por aqui estão estarrecidas. Urge superar a indecisão, a imobilidade, a frouxidão. Talvez o país nunca antes tenha tido tanta precisão do brio de sua gente.

4 comentários:

  1. Ate onde eu saiba o Brasil ainda e sempre foi uma colônia. Houveram alguns poucos períodos em que tentamos nos libertar mas devido aos grandes interesses de nossa matriz, sempre foram sufocados.E graças a sua grande influencia e penetração nosso povo ficou alienado e pasmo. Mas sei sim que é um povo de grande valor que ainda dorme em berço esplendido como diz o hino. Talvez um dia esse povo comece a tomar conta melhor do que é seu. abs. Carlos SA

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  2. Excelente essa percepção das gentes dessa terra.
    Por mim estou confinada , assustada , temerosa pelo Brasil inclusive.

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  3. Comentário de Fábio Ortiz (primeira parte):

    "MS, meu caro amigo, é sempre bom ouvi-lo.
    O diagnóstico é esse e é terrível.
    Alguém já disse: "Quer conhecer melhor a humanidade? Preste atenção aos chimpanzés." Tribais, territorialistas, patriarcais, guerreiros, infanticidas, às vezes canibais. Não confundi-los com os bonobos, muito parecidos, mas matriarcais, não tão agressivos e mais sociáveis.
    A ideia do "ogro", entretanto, evoca mitologias; e mitologias hoje sempre evocam a ciência psicanalítica.
    É neste campo que as coisas se tornam mais reais e, portanto, mais tenebrosas. Aqui, a figura do ogro tem outro nome e descrição: psicopata.
    Bem resumidamente, define-se como psicopata aquele ser com toda aparência humana comum mas a quem falta precisamente aquilo que caracteriza o que se considera "ser humano": a alteridade, a capacidade de ver o outro, colocar-se em seu lugar. "Alter", no latim [derivado do grego "heter(o)"], é "outro", no caso, distinto do "ego". Alguns chamam isto de empatia; prefiro alteridade.
    Enfim, o psicopata é aquele ser, com aparência humana, a quem falta a capacidade de ver outro ser como distinto de si mesmo. Ele é incapaz de sentir esta emoção, de perceber outra pessoa, outras necessidades e, portanto, direitos outros que não os seus. Para o psicopata só existe ele e seus impulsos, não existe mais ninguém. Todos os demais são como tudo o mais: apenas coisas a serem usadas, apêndices ora necessários, ora descartáveis. Não há o "tu", não há o "vós"; há apenas "isso", "coisa".
    Se quiser conhecer mais, recomendo a leitura dos livros (e alguns vídeos) da psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva, em especial o "Mentes Perigosas". É preciso estômago forte para ler. Discordo dela apenas em um ponto: penso que ela subestima (ou, a esta altura, subestimava - o livro é de 2008) a proporção de psicopatas na população. Minha experiência triplica a estimativa dela; e estes tempos parecem me dar razão.

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  4. Comentário de Fábio Ortiz (segunda parte, final):

    Assim, respondendo a uma das dúvidas que você coloca, não vejo um "ogro adormecido em cada um de nós": ogros são míticos, psicopatas são reais, infelizmente. Penso que todos nós, humanos, podemos ser levados, "in extremis", à violência, especialmente em defesa da própria vida ou a de alguém mais; mas estar violento não significa ser violento. Em condições ditas normais a maioria absoluta das pessoas não é violenta, ao contrário, vemos demonstrações de solidariedade a todo instante (fosse diferente disto, o Homo sapiens - a última humanidade restante - não teria chegado até aqui). No mínimo, temos alguma percepção concreta dos benefícios de assim ser. Já os psicopatas, não. Sendo em geral inteligentes, são perfeitamente capazes de dissimular, reproduzir por conveniência circunstancial um comportamento humano; mas sempre, inexoravelmente, num cálculo em benefício próprio. Não é fácil reconhecê-los, quase sempre apenas a convivência íntima os revelará; mas uma vez identificados, tornam-se absolutamente previsíveis, o mistério se dissolve.
    Um dos fenômenos que mais me intriga hoje (e desespera) é a imensa dificuldade que vejo, mesmo nas pessoas do campo dito progressista, em compreender e aceitar o fato da existência dos psicopatas, seja em que lugar for. Em nossa relutância ao fato, tendemos a minimizá-lo, desculpá-lo, atribuí-lo a outra coisa qualquer.
    Hoje muita gente "qualifica" o nosso idiota-em-chefe e alguns de seus "auxiliares" como psicopatas, mas isto apenas no meio combativo da luta política, já que o fato está escancarado em nosso cotidiano de sofrimento acelerado. Mas quem se dignava reconhecê-lo já na origem, há 30 anos? Quem ouviu os alertas crescentes? A imensa maioria prefere encarar isto como idiossincrasias "políticas"...
    Quem era capaz de olhar um Trump, uma Hillary e ali reconhecer psicopatas? Só à beira da eleição passada nos EUA é que uns poucos foram capazes de formular a questão em termos de que um representava "a probabilidade de guerra" (Trump) enquanto que outro(a) significava "a certeza de guerra" (Hillary)? Quem, ainda hoje, com tudo o que já se sabe, é capaz de reconhecer nos EUA, desde sua fundação, um estado psicopata, formador de psicopatas, governado por psicopatas e presidido (com raras exceções como Lincoln, Roosevelt, Kennedy) por psicopatas?
    De modo que não é nada fácil, meu amigo... e assim me lembro da antiga fábula: quem é que terá a coragem de botar o guizo no pescoço do gato?
    Abraço fraterno e prossigamos na luta."
    Abração,
    Fabio

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