terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Feliz 2025, Brasil!

 Publicado no Jornal da Manhã e no Diário dos Campos em 31/12/2024.

Para simplificar, diante da insólita e nada inspiradora realidade dos tempos atuais, vamos resumir os votos para o Brasil – e para o mundo – para o ano de 2025 em duas palavras: discernimento e solidariedade. Discernimento para nos dar lucidez para compreender a realidade, enxergar a verdade. Solidariedade para que usemos a compreensão da realidade com o propósito de trazermos à tona a tolerância e a empatia, que cooperam para a fraternidade e a paz.

Discernimento é sem dúvida um atributo abençoado e, atualmente, vital, dada sua escassez. Com certeza os seres humanos nunca antes estiveram tão bombardeados por informações e desinformações. Distinguir entre as duas é essencial para que consigamos escapar do logro de embusteiros alucinados pela loucura ou pela ambição desmesurada. E que, no seu desvario e obstinação, não medem as consequências das mentiras que disseminam, dos desastres ambientais, sociais, econômicos e éticos que deflagram. Os falsos profetas do mundo atual alimentam-se da falta de lucidez e da incúria humanas. Mas, lúcidos e cuidadosos, seremos capazes de construir um mundo melhor em 2025.

Solidariedade é essencial num mundo globalizado, com mais de oito bilhões de habitantes, de contextos, raças, culturas, crenças, valores e idiomas diversos. Ela é uma bênção que desencadeia muitas outras: empatia, compaixão, perdão, igualdade, liberdade, tolerância, despojamento, humildade são algumas delas. Elas conduzem à convivência pacífica, respeitosa, edificante, amorosa. A solidariedade vai nos mostrar que conviver respeitosamente com o diferente nos enriquece. O diferente nos acrescenta saberes e olhares que desconhecíamos. Junto com o discernimento, a solidariedade vai fazer 2025 um ano com mais esperanças e realizações.

Oxalá consigamos praticar estas duas bênçãos – discernimento e solidariedade – dentro de nós mesmos. Se formos capazes de personificar estas dádivas, decerto contagiaremos com nosso exemplo aqueles com quem convivemos. É tempo de plantarmos a semente do bem viver e cuidá-la com todo carinho, com todo zelo. Um dia ela irá germinar e florescer, ainda que demore algum tempo para isso. Então é termos perseverança e paciência. Tal como a água, que fluida se adapta, mas teima, até que transforma o rígido rochedo na macia areia do rio e da praia.

As maiores bênçãos que poderíamos desejar para 2025 já nos foram concedidas, há muito tempo. A primeira delas é este planeta extraordinário, que nos concedeu e sustenta o milagre da vida. A outra é a engenhosidade humana, que nos faz capazes de criar e de refletir. Nossas crenças nos falam de céu e inferno, numa vida futura. É tempo de enxergarmos que na vida presente foi-nos concedido o céu, esta Terra que nos supre todas as carestias. Que saibamos, então, empregar a inteligência para não transformá-la num inferno. Urge acordar, reconhecer e reverenciar o milagre da Mãe Terra.

Discernimento e solidariedade são qualidades que dormem dentro de nós. Vamos resgatá-las e praticá-las em 2025.

Feliz 2025, Brasil!

terça-feira, 24 de dezembro de 2024

Feliz Natal!

 

Ele nasceu numa manjedoura, entre os animais de um estábulo humilde, porque seus pais, refugiados, a mãe parturiente, não conseguiram hospedagem mais adequada. Só tiveram o amparo do estábulo graças à benevolência do proprietário, um homem simples como eles.

Ele teve seu nascimento anunciado por uma estrela que brilhou forte nos céus. Seu brilho profetizava a chegada de uma mensagem de esperança e renascimento. Ela encantou próceres espirituais de terras distantes, que levaram honrarias ao recém-nascido.

Ele passou décadas – toda a infância e a juventude – aprendendo com sábios eremitas, retirados da civilização. Eram homens bondosos, que tinham se espantado com os desvairados rumos que o povo estava seguindo. Pensavam que talvez desterrados, solitários, pudessem reconquistar e fortalecer princípios e valores em si mesmos, e ensiná-los a um jovem de firmeza, lucidez e santidade inquebrantáveis.

Ele retornou ao convívio na sociedade quando julgou que já estava preparado. E então foi submetido à prova. Procurou ensinar a solidariedade, a simplicidade, a justiça, a esperança, o respeito. Fez seus companheiros compreenderem que os sonhos começam a realizar-se quando são sonhados. E assim fizeram milagres.

Ele não conseguiu encantar os de seu tempo, salvo um pequeno grupo de seguidores. Perseguidos, ainda portadores de dúvidas e temores. Suas ideias atraíram muitos inimigos, uns poucos adeptos. Isso obrigou-o a afastar-se do convívio familiar e dos confortos do lar. Sua vida foi um exemplo de luta, de generoso sacrifício, de peregrinação, de despojamento, de dedicação.

Ele logo foi acusado de heresias, difamação e sublevação. Não só as autoridades de seu tempo, mas também o povo simples, sentia-se ameaçado por aquele homem que dizia verdades que afrontavam o senso comum. Foi injuriado, perseguido, aprisionado.

Os governantes temeram julgá-lo. Não sabiam como o povo reagiria à condenação de um possível santo. Lavaram as mãos, deixaram que a multidão o julgasse. Então ele confirmou o que já sabia: um notório e aproveitador ladrão era o mais estimado, com quem se identificava a grande maioria.

Ele foi inculpado, o outro foi absolvido. Condenado, foi humilhado, torturado, morto com a mais extrema crueldade. À morte, ainda pronunciou-se perdoando seus algozes.

Não conseguiu mostrar o milagre do amor à maioria dos de seu tempo. Mais de dois mil anos depois, seu nascimento é celebrado, sua mensagem ainda é uma esperança viva. Um dia seu sonho ainda há de se realizar.

Feliz Natal!

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

O deus dinheiro e o profeta mercado

 Publicado no Jornal da Manhã em 20/12/2024

O mercado está nervoso: a bolsa cai, o dólar dispara, o preço dos alimentos sobe, o pobre fica mais pobre. E o rico fica mais rico. Por qual motivo o mercado anda tão nervoso? Diz o noticiário que é pela incerteza com a aprovação das medidas do “ajuste fiscal” e contenção de despesas, que estão em tramitação no Congresso Nacional – este mais um personagem neste imbróglio.

Enquanto isso, a taxa Selic – definida pelo Banco Central – é uma das maiores do mundo. É a taxa que diz qual o tamanho dos juros que o Governo paga aos credores da dívida pública. Cada elevação da taxa Selic quer dizer muito dinheiro que o Governo paga aos credores, e deixa de investir em saúde, educação, infraestrutura, moradia, programas sociais... Dinheiro que é fruto da arrecadação daqueles que pagam impostos – sobretudo a população mais pobre, que não tem isenção nem esquemas de sonegação.

São muitos personagens, muitas variáveis, várias delas ocultas, nessa complicada equação que é a economia do país. Parece que o mercado é um ser imaterial, mas muito afetado. Fica nervoso até com longínquas expectativas, boatos e infundadas especulações. Atribui-se ao mercado a instabilidade que derruba a bolsa, incha o dólar, faz crescer a inflação e a taxa Selic. E empobrece ainda mais a população pobre. Na verdade, o mercado é a máscara que esconde as corporações e os especuladores que vivem de sangrar a economia. E quem vive das operações do mercado usa artifícios, disfarces e linguagem obscura para manter a maior parte da população na ignorância do que realmente acontece. E numa impotente imobilidade.

E o Congresso Nacional, que na suposta democracia representativa que vivemos deveria estar empenhado em defender os direitos da maioria da população? Não nos enganemos. O Congresso representa quem o elegeu. E fala-se com muita propriedade que atualmente as eleições não são vencidas; são compradas. Por isso o Congresso está tão cheio de representantes do agro, do boi, da bala, da bíblia, das grandes corporações. Além de uma enorme bancada de aluguel. São minoria os legítimos representantes do povo pobre, que é a grande maioria da população.

E os congressistas amiúde agem em proveito próprio. É vergonhoso constatar como o Governo Federal vê-se um refém chantageado a liberar recursos para os congressistas – na forma das famigeradas emendas – para fazer tramitar as regulamentações tributárias e orçamentárias. A composição atual do Congresso Brasileiro é uma boa mostra de como a população é ludibriada pela desinformação, e manipulada para eleger os lobos mais vorazes para cuidar do galinheiro.

Há ainda uma motivação principal a mover mercado, Congresso e Banco Central atuais: o muitas vezes escondido, ou mesmo distorcido, embate entre uma visão de país socialista – onde o Estado age firme em nome da coletividade – e outra neoliberal – onde as corporações e empreendedores têm liberdade de ação para auferir lucros cada vez maiores, às custas do empobrecimento da coletividade. Os fiéis do deus dinheiro unem-se contra as tentativas de regramento de sua inescrupulosa e insaciável ambição.

Enquanto a população aceitar cegamente os engodos da desinformação, continuaremos a mercê do deus dinheiro e seu profeta mercado.

domingo, 15 de dezembro de 2024

Distopia: ficção ou realidade?

 Publicado no Jornal da Manhã em 17/12/2024

Distopia é algo como o contrário de utopia. Utopia seria um lugar (topos) melhor que este onde estamos vivendo. Não uma quimera irrealizável, como alguns teimam em tentar estigmatizar o sentido da palavra. Utopia é um sonho alcançável, cuja primeira exigência para ser realizado é ser sonhado. Depois vêm outras exigências: planejamento, estratégia, resiliência, perseverança... Há quem diga que “um sonho bem sonhado é meio caminho andado”.

Distopia seria então um lugar ainda pior que este que estamos vivendo. Muito se argumenta e se alerta que nossa civilização atual, com seus desatinos, está celeremente caminhando para uma distopia. Um paradoxo, visto que nunca conseguimos amealhar e compartilhar tanto conhecimento e tecnologias que, em princípio, deveriam melhorar a vida. Mas parece mesmo que evoluímos muito tecnologicamente, e regredimos ética e espiritualmente. As potenciais maravilhas que inventamos parecem mais capazes de destruir-nos ou alucinar-nos – e igualmente destruir-nos – inapelavelmente.

Se considerarmos os mais ou menos 200 mil anos de existência do Homo sapiens, somos ainda muito jovens, comparados com os primeiros vertebrados, que existem há mais de 400 milhões de anos. Temos ainda o cérebro reptiliano preponderante, que é regido pelos instintos da agressividade, do poder e da sexualidade. Impulsos essenciais para a sobrevivência, ela que foi a principal preocupação de nossos ancestrais humanos a até cerca de 10 mil anos atrás. O cérebro límbico (zelo com a prole e o bando), o neocórtex (raciocínio lógico) e o suposto e incipiente cérebro hipofisário (ética, solidariedade e espiritualidade) ainda são submissos ao cérebro reptiliano e seus instintos de preservação da espécie.

É pelo fato de ainda agirmos muito como répteis - os nossos longínquos ancestrais - que parece muito factível imaginar distopias marcadas por injustiças, desigualdades extremas, guerras, miséria, pandemias, crises ambientais, segregacionismo, enlouquecimento e destruição da humanidade e até do planeta. As crises atuais que vivemos já fazem acreditar nisso. Ainda são crises, não chegamos – queremos crer – ao ponto do colapso sem retorno, sem salvação. Inúmeros livros, filmes, séries, que ainda classificamos como “ficção científica”, retratam tais distopias: Admirável mundo novo, 1984, Blade Runner, Matrix, Ensaio sobre a cegueira, Laranja mecânica, Idiocracia, Eu sou a lenda, WALL-E, Elysium, Interestelar, Mad Max são só alguns poucos de uma longa lista de títulos.

Estaria a imaginação criativa da humanidade antevendo as possibilidades do futuro distópico que estamos construindo? Arsenais nucleares, guerras de extermínio, aquecimento global, endeusamento do mercado e do dinheiro, alastramento da desinformação, rendição à inteligência artificial, pandemias, séculos de um sistema econômico que cultiva o egocentrismo, a competição, a exploração, a concentração da riqueza, a disseminação da pobreza e o hiperconsumismo não são já evidências suficientes para mostrar-nos que estamos a caminho das imaginadas – ou seria melhor denominá-las premonitórias – distopias?

A humanidade encontra-se diante de um dilema crucial, e as distopias que a ficção nos apresenta parecem querer alertar-nos: ou aprendemos com os muitos erros que temos cometido, ou logo a barbárie das distopias tornar-se-á realidade.

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

A extrema-direita no divã

 Publicado no Jornal da Manhã em 07/12/2024.

A extrema-direita que prospera no mundo atual, seja qual for o rótulo que lhe coloquemos – fascismo, neonazismo, totalitarismo, trumpismo, bolsonarismo –, precisa ser analisada por olhos que vão além da política e da economia. A extrema-direita é um fenômeno social complexo: cultural, ético, educacional, ideológico, religioso... Enfim, psicológico.

A extrema-direita é armamentista, negacionista, segregacionista, narcisista... Muitos outros adjetivos poderiam ser-lhe atribuídos, mas estes bastam para uma reflexão inicial. O entendimento psicanalítico do narcisismo dá boa ideia do que seja a extrema-direita: o narcisista não é só apaixonado pela própria imagem no espelho, mas odeia, e precisa subjugar – ou destruir – o diferente. A extrema-direita não sabe o significado da palavra empatia, muito menos das palavras solidariedade e compaixão.

A crescente organização da extrema-direita no mundo é financiada por bilionários que já não sabem o que fazer com tanto dinheiro que amealham. Muitos de seus seguidores pensam que se trata de gênios empreendedores, meritosos do sucesso financeiro. Outros pensam que toda sua riqueza provém da falta de ética e de limites com que exploram a humanidade. Sua principal qualidade, mais do que a engenhosidade e a ambição desmesurada, é a falta de escrúpulos. São extremados narcisistas.

A extrema-direita talvez seja mesmo o fruto de séculos de capitalismo, esse sistema econômico que incentiva a competição, a concentração de riqueza, a disseminação da pobreza, o consumismo insano. Não podia resultar outra coisa que não fosse a revolta de uma grande parcela da população, aquela mais desejosa das supostas benesses do capitalismo. Sentindo-se lograda por nunca alcançar as regalias prometidas, rebela-se; não contra os astuciosos exploradores, mas contra os explorados como ela.

O equívoco no discernimento de quem seja o responsável pela crise humanitária que vivemos é fruto de um sofisticado controle da população. A grande mídia, que domina a veiculação das notícias e influencia a cultura e a educação, é toda ela uma ferramenta a serviço dos patronos da extrema-direita. Na verdade, ela é o braço hipnótico que alucina a opinião pública. Esse braço pertence à extrema direita. Ele manipula, distorce, inventa, mente, distrai, deturpa, oculta, insufla amor ou ódio. Explora a crendice e a desatenção humana para instilar os vírus da cizânia, que mantêm a maior parte da população ocupada com conflitos fratricidas. Enquanto os multimilionários prosseguem impunes, alimentando sua insaciável ânsia de riqueza e de poder.

A crendice humana talvez nunca tenha sido tão lograda quanto nestes nossos tempos atuais, dotados da sofisticação da mídia e das redes sociais. A fé nos messias que ensinaram a ética, a solidariedade, o amor, a retidão de caráter, deu lugar ao culto ao dinheiro e ao poder, a fé na prosperidade e na dominação. Que inacreditável incompreensão e distorção!

A causa fundamental do mundo em crise que vivemos – do qual a extrema-direita é só uma de muitas patologias – talvez não seja o capitalismo, a religião, a mídia, a educação. Talvez seja o traço narcisista da natureza humana. Ele é quem tem criado tudo o mais. É preciso com urgência reconhecê-lo e tratá-lo, cultivando o lado solidário que existe dentro de nós.