Aquele imenso prédio estava lá já havia
uns três anos. Ele mudara a vizinhança do nosso bairro, antes mais calmo e
humilde, então bem condizente com uma pacata cidade média interiorana e
provinciana. Erguia-se majestosa torre, ocupara com o cinza do cimento e o
brilho falso dos reflexos dos vidros o que antes era nosso céu e nosso sol. Interditou
nosso arrebol matinal verdadeiro nas manhãs de primavera e outono. Imenso
tapume geométrico e escuro. Trazia o ruído dos carros da avenida para dentro do
nosso antes quieto quarto de dormir. Excedendo-se nas traquinagens, trazia também
os trens fantasmais da ferrovia distante. Façanhas dos sons viajando nas
entranhas do vento e rebatendo na exagerada torre.
Relaxado na rede nordestina estendida na
varanda do quintal de casa, nas tardes de folga lia os livros amigos que me reclamavam a
distinção daquele lugar tão acolhedor. Enquanto lia, espiava a intrusa torre de
quando em quando. Para divagar, descansar os olhos. Parecia que ela também me vigiava.
Via nela sinais da presença humana: plantas nas sacadas, algumas janelas
entreabertas. Ao anoitecer, umas poucas luzes acendiam-se. Mas nunca via nenhum
humano. Onde estariam eles? Seriam efêmeros e nômades visitantes, tragados de
seus lares pelo crescente turbilhão da cidade que se agiganta, convulsiona e
engole os desprecavidos? Seria o prédio só um avaro dividendo dos grãos
alimentícios exportados para o mundo, convertidos em investimentos destinados
ao abandono, pois não há tanta gente que possa pagá-los para moradia?
Uma tarde, à rede lendo contos fantásticos
que me transportavam às aldeias moçambicanas de nacionalidade e concretude
incertas, pus-me a divagar, libertando as cismas, a observar aquela torre tão
concreta. Ela cortava retilínea o azul sem fim do céu e as brancas nuvens, estas
tão curvilíneas, baças e intangíveis quanto as quimeras humanas.
Entretanto, observando bem, a torre não
era tão concreta. Ainda faltavam os humanos que lhe dessem a cara de urbe
verticalizada pela cupidez humana ─ aqueles monumentos excessivos, açodados,
competindo a sofreguidão de seus projetistas e financiadores.
Mas, surpresa! Desta vez vejo ao longe a
figura de uma pessoa ─ parece uma senhora ─ a lidar numa das sacadas que têm
plantas, lá no alto. Detenho-me a observá-la; pelas idas e vindas, deduzo tratar-se
de alguém a realizar serviços. Possivelmente a diarista que trabalha enquanto
os moradores estão fora. Não resisti: da varanda onde me encontrava, gritei
alto para que ela pudesse me escutar: “Ó
do prédio! Boa tarde!”. Tive de gritar algumas vezes, até que ela me
escutasse e me localizasse, eu acenando os braços feito maluco, lá naquele
quintal das casas térreas servilmente espalhadas pelo rés do chão, circundando
o majestoso edifício.
─ Que bom que a vejo por aí ─ explico-me ─.
É a primeira vez que vejo alguém nesse prédio. A senhora trabalha ou mora aí?
─ Trabalho. Venho uma vez por semana.
─ Bom saber que o prédio é habitado por
pessoas! Andava a pensar se não seria povoado só por invisíveis fantasmas. Quem
são os patrões?
─ Os patrões? Não os conheço.
─ Como não os conhece? Não está na moradia
deles?
─ Ah, sim. Trabalho aqui já se vão três
anos. Mas nunca os vi. Nem imagino quem sejam. Tenho a senha do portão
eletrônico e as chaves. Peguei-as lá na imobiliária. Nem porteiro tem no
prédio. Meu trabalho é só abrir as janelas pra arejar, tirar o pó e regar as
plantas. Não tem nem louça pra lavar. Está sempre tudo impecável, como deixei
na semana anterior.
─ E como fazem pra pagar?
─ Direto na conta bancária. E vem em nome
de uma empresa. Não é nome de gente, não.
Ela diz que tem outros andares para cuidar
no mesmo prédio. Todos no mesmo incógnito esquema. Faz-me um aceno de
despedida, desaparece. Aumenta-me a suspeita que esse prédio simbolize a
essência da civilização que estamos vivendo.
Seria lavagem de dinheiro?
ResponderExcluirSorte da Sra que foi empregada pela firma.
Mas é muito estranho, quase inacreditável.
Que bela imaginação. Gostei muito.
ResponderExcluirRilka Bandeira
Fantástico! Divaguei sobre uma morada de um mundo diverso do nosso, começando a se instalar, para recolher as vozes do vento, os perfumes das flores, os risos das crianças, para poder preservá-los de hecatombes que estejam por vir para nossa destruição...
ResponderExcluirMuito bom. Prende a atenção. Charme de realismo fantástico. Final realista
ResponderExcluirMuito bom. O pior é que esse prédio existe. E
ResponderExcluirme incomoda