sábado, 16 de março de 2024

Babel silenciosa

 

Aquele imenso prédio estava lá já havia uns três anos. Ele mudara a vizinhança do nosso bairro, antes mais calmo e humilde, então bem condizente com uma pacata cidade média interiorana e provinciana. Erguia-se majestosa torre, ocupara com o cinza do cimento e o brilho falso dos reflexos dos vidros o que antes era nosso céu e nosso sol. Interditou nosso arrebol matinal verdadeiro nas manhãs de primavera e outono. Imenso tapume geométrico e escuro. Trazia o ruído dos carros da avenida para dentro do nosso antes quieto quarto de dormir. Excedendo-se nas traquinagens, trazia também os trens fantasmais da ferrovia distante. Façanhas dos sons viajando nas entranhas do vento e rebatendo na exagerada torre.

Relaxado na rede nordestina estendida na varanda do quintal de casa, nas tardes de folga lia os livros amigos que me reclamavam a distinção daquele lugar tão acolhedor. Enquanto lia, espiava a intrusa torre de quando em quando. Para divagar, descansar os olhos. Parecia que ela também me vigiava. Via nela sinais da presença humana: plantas nas sacadas, algumas janelas entreabertas. Ao anoitecer, umas poucas luzes acendiam-se. Mas nunca via nenhum humano. Onde estariam eles? Seriam efêmeros e nômades visitantes, tragados de seus lares pelo crescente turbilhão da cidade que se agiganta, convulsiona e engole os desprecavidos? Seria o prédio só um avaro dividendo dos grãos alimentícios exportados para o mundo, convertidos em investimentos destinados ao abandono, pois não há tanta gente que possa pagá-los para moradia?

Uma tarde, à rede lendo contos fantásticos que me transportavam às aldeias moçambicanas de nacionalidade e concretude incertas, pus-me a divagar, libertando as cismas, a observar aquela torre tão concreta. Ela cortava retilínea o azul sem fim do céu e as brancas nuvens, estas tão curvilíneas, baças e intangíveis quanto as quimeras humanas.

Entretanto, observando bem, a torre não era tão concreta. Ainda faltavam os humanos que lhe dessem a cara de urbe verticalizada pela cupidez humana ─ aqueles monumentos excessivos, açodados, competindo a sofreguidão de seus projetistas e financiadores.

Mas, surpresa! Desta vez vejo ao longe a figura de uma pessoa ─ parece uma senhora ─ a lidar numa das sacadas que têm plantas, lá no alto. Detenho-me a observá-la; pelas idas e vindas, deduzo tratar-se de alguém a realizar serviços. Possivelmente a diarista que trabalha enquanto os moradores estão fora. Não resisti: da varanda onde me encontrava, gritei alto para que ela pudesse me escutar: “Ó do prédio! Boa tarde!”. Tive de gritar algumas vezes, até que ela me escutasse e me localizasse, eu acenando os braços feito maluco, lá naquele quintal das casas térreas servilmente espalhadas pelo rés do chão, circundando o majestoso edifício.

─ Que bom que a vejo por aí ─ explico-me ─. É a primeira vez que vejo alguém nesse prédio. A senhora trabalha ou mora aí?

─ Trabalho. Venho uma vez por semana.

─ Bom saber que o prédio é habitado por pessoas! Andava a pensar se não seria povoado só por invisíveis fantasmas. Quem são os patrões?

─ Os patrões? Não os conheço.

─ Como não os conhece? Não está na moradia deles?

─ Ah, sim. Trabalho aqui já se vão três anos. Mas nunca os vi. Nem imagino quem sejam. Tenho a senha do portão eletrônico e as chaves. Peguei-as lá na imobiliária. Nem porteiro tem no prédio. Meu trabalho é só abrir as janelas pra arejar, tirar o pó e regar as plantas. Não tem nem louça pra lavar. Está sempre tudo impecável, como deixei na semana anterior.

─ E como fazem pra pagar?

─ Direto na conta bancária. E vem em nome de uma empresa. Não é nome de gente, não.

Ela diz que tem outros andares para cuidar no mesmo prédio. Todos no mesmo incógnito esquema. Faz-me um aceno de despedida, desaparece. Aumenta-me a suspeita que esse prédio simbolize a essência da civilização que estamos vivendo.

5 comentários:

  1. Seria lavagem de dinheiro?
    Sorte da Sra que foi empregada pela firma.
    Mas é muito estranho, quase inacreditável.

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  2. Que bela imaginação. Gostei muito.
    Rilka Bandeira

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  3. Fantástico! Divaguei sobre uma morada de um mundo diverso do nosso, começando a se instalar, para recolher as vozes do vento, os perfumes das flores, os risos das crianças, para poder preservá-los de hecatombes que estejam por vir para nossa destruição...

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  4. Muito bom. Prende a atenção. Charme de realismo fantástico. Final realista

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  5. Muito bom. O pior é que esse prédio existe. E
    me incomoda

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