quarta-feira, 20 de março de 2024

Práticas democráticas

 Publicado no Jornal da Manhã em 20/03/2024.

Estamos vivendo, no Brasil, uma época de grave ataque à democracia. Aliás, um fenômeno mundial. A intolerância, a truculência, a ignorância e a tirania crescem em todo o mundo. Analistas sérios interpretam que seja uma inevitável e periódica crise, uma explosão de ressentimento com o capitalismo, o consumismo, o neoliberalismo, arranjos que só fazem concentrar riquezas e disseminar miséria.

Infelizmente, esquemas de condutas antidemocráticas acabam por estender-se às pessoas e às agremiações que se supõem e tentam permanecer democráticas. Talvez seja um fenômeno natural: numa sociedade em que predominam os logros e hipocrisias midiáticas e institucionais para manter os privilégios e o status quo, parece inevitável que todos, mesmo aqueles que sonham com um mundo mais inclusivo e justo, acabem contaminados pelas práticas que se revelam manipuladoras, discriminadoras e mantenedoras da sociedade exatamente tal como está hoje. Com todas as suas imperfeições, com consequências que beiram a tragédia: crise climática e ambiental, pandemias e epidemias, guerras, crescente criminalidade e impunidade, corrupção, segregacionismos, aumento da pobreza, desinformação, tapeação religiosa...

A reação à mudança, mesmo entre as pessoas supostas progressistas e democráticas, é um traço da natureza humana: o Homo sapiens é movido sobretudo pelos instintos de agressividade e dominação, que tiveram (ainda têm?) importância fundamental quando pensamos em preservação e evolução da espécie. Como resultado, sempre surgem os “donos” dos espaços em que vivemos. O planeta tem seus pretensos donos. As cidades, os bairros e as ruas têm seus donos. Às vezes, a padaria, o ônibus, o mercado têm seus donos, que julgam que os presentes têm que escutar e acatar suas bravatas. As instituições culturais, educacionais, científicas têm seus donos. Eles disputam prestígio e poder, resistem visceralmente às mudanças. E os partidos políticos têm seus donos, que também não querem mudar, ainda que se declarem progressistas.

Mas mudar, adaptando-se às contínuas transformações do ambiente e da cultura, é vital. Sob pena de extinção frente às alterações ao longo do tempo. A evolução tem nos ensinado isso ao longo da história da Terra e da civilização.

Os expedientes para pretensamente perpetuar a imutabilidade são rasos: decisões tomadas em encontros sigilosos; longos atrasos nos encontros supostos abertos; excessivo e desigual tempo de fala aos “donos”, que só fazem comunicar as decisões já tomadas; interdição do debate franco e amplo; fomento ao divisionismo entre concepções divergentes, evitando a construção de consensos mais amplos, refletidos, inclusivos...

São muitos os estratagemas, que acabam tolerados por parecerem fazer parte do jogo democrático normal do embate de ideias. Não é um jogo normal! É um jogo viciado, que dissimula os ardis para preservar os donos. E estes, tão imbuídos que estão do papel de donos, não percebem quando estão ultrapassando os limites entre a democracia e um fingido autoritarismo.

Com lideranças que não conseguem despojar-se do papel de donos, que não conseguem formar novas lideranças e nem cativar e agregar a parcela da população cansada de uma sociedade de dominação e privilégios, os ditos progressistas não precisam de inimigos externos: já lhes bastam os internos.

Um comentário:

  1. Até donos da Bandeira Nacional de acham... Intoleráveis são os que se acham donos de Deus... Mas pior está ficando, pois o diálogo está desaparecendo, ninguém mais sabe ouvir o adverso, pois são donos da verdade também.

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