Publicado no Jornal da Manhã em 09/04/2024.
Vamos aqui considerar como “talento” aquela habilidade nata
edificante, que engrandece o indivíduo e contribui para o convívio social
pacífico e próspero. Diferente de outras habilidades, que podem ser nefastas,
como a do projetista de minas terrestres explosivas, ou a do exímio ladrão
profissional. E vamos considerar como “vocação” o chamado, o desejo e empenho
em firmar-se numa determinada habilidade, seja profissional, artística, esportiva,
científica...
Bem-aventurada aquela pessoa na qual convergem talento e
vocação! Quem tem talento para ser um músico, e deseja firmemente sê-lo, superará
obstáculos, e terá grande chance de tornar-se um músico bem-sucedido. Mas quem
tem talento para ser um escritor, e não deseja nem se empenha em sê-lo, talvez
nunca escreva nada. Para concretizar-se, o talento deve vir acompanhado da
vocação.
Há ainda outras componentes decisivas nessa relação entre
talento e vocação. A oportunidade, concedida pelo ambiente, natural ou social,
em que a pessoa vive e evolui, é uma delas. Alguém com talento para a música
que nunca seja apresentado a ela, nem a um instrumento musical, dificilmente
poderá tornar-se um músico. A menos que seu talento seja tão prodigioso que ele
encontre a música nos sons da natureza, e crie seus próprios instrumentos. Alguém
com talento para a literatura que nunca venha a conhecer um livro, nem a
linguagem escrita, dificilmente poderá tornar-se um escritor.
Outra componente é a circunstância. Entre os sobreviventes
de um acidente aéreo na floresta, por exemplo, um hábil escriturário da cidade
pode ser forçado a revelar-se um competente intérprete da ignorada linguagem da
selva. E pode salvar a todos. Um milagre da “Santa Necessidade”.
Uma condição essencial para que o talento se manifeste é a
aceitação do dom natural. Mas é possível que o talentoso nunca descubra seu
talento ─ dizem que esta é a situação mais comum ─. Ou até saiba dele, mas o
rejeite, influenciado por modismos, preconceitos ou imposições sociais. A
mulher agregadora e líder nata pode vir a ser segregada e sabotada num meio ferozmente
patriarcal, e pode optar por anular-se. O poeta sensível pode preferir o anonimato
numa sociedade machista e mercantil. Ou ainda, uma talentosa cozinheira nata
pode ser convencida que cozinhar seja tarefa de escravas e serviçais, e assim
prefira nunca desenvolver e praticar seu condão.
Há ademais o outro lado: o desejo, a vocação, divorciada do
talento natural. Neste caso, a eventual realização do desejo, a transformação
da vocação em comprovada habilidade, vai depender da combinação de outros fatores.
Sobretudo, de firme dedicação. Vai ser preciso adquirir uma habilidade que não
se possuía naturalmente. Isso é possível, com empenho e perseverança. E desde
que a pessoa seja capaz de vencer as limitações para construir-se talentosa na
sua vocação. E de reconhecer quais os limites intransponíveis. Não é plausível
que um deficiente visual venha a tornar-se um fotógrafo renomado. Nem que
alguém dotado para ser um velocista torne-se um campeão de levantamento de peso
pesado. Nem que a pessoa com aguda deficiência de atenção transforme-se numa
revisora de textos eficiente.
Em qualquer dos muitos casos possíveis ─ estes aqui
lembrados são só uma parca amostragem ─, é essencial que cada ser humano tenha
oportunidade e estímulo para reconhecer, valorizar, praticar e desenvolver seus
talentos. Educação e inclusão social são capitais para que isso aconteça, e
devem ser prioridade de um governo democrático.
É bem crível que todos nós, sem exceção, tenhamos nossos
talentos natos. Lograr descobri-los e exercê-los realizaria o indivíduo e
acrescentaria à sociedade.
Lido e apreciado.
ResponderExcluirUma excelente reflexão sobre o quanto cada um conhece a si mesmo. Às vezes a pessoa talentosa, porém também dotada de excessiva humildade, pode jamais chegar ao ápice do desenvolvimento do próprio talento.
ResponderExcluirParabéns Mário você foi mais uma vez muito feliz
ResponderExcluirPois é, quem diria há muitas décadas atrás que o seu talento fosse escrever e tão.maravilhosamente bem ?
ResponderExcluirParabéns !!! Principalmente por ter permitido que esse dom aflorasse e que iria investir tanto nele.