quinta-feira, 10 de maio de 2018

Cegueira moral

Publicado no Diário dos Campos em 11/05/2018

Em seu instigante livro Ensaio sobre a cegueira, o premiado escritor português José Saramago (ganhou entre outros o Nobel de Literatura e o Prêmio Camões, máxima distinção literária da língua portuguesa) faz um provocante ensaio sobre como seria o comportamento humano caso nos víssemos livres das leis e convenções que nos governam e limitam nossos instintos. A partir de uma inexplicável epidemia de cegueira, os personagens do livro passam a uma selvagem disputa, primeiro por alimento, depois pelo poder e depois por sexo.
A cegueira visual, no caso do livro, liberta os demônios precariamente contidos pelas regras sociais quando estas colapsam. Mas não é necessária a ficção de um livro para nos mostrar do que somos capazes se nos virmos livres de regras. Basta ver o que acontece durante uma guerra ou qualquer outro conflito armado disseminado.
Existem outros tipos de cegueira: a religiosa, a política, a intelectual, a de sensibilidade... Mas talvez a mais insidiosa seja a cegueira moral, que impede de ver a diferença entre o certo e o errado, entre o que é socialmente aceitável e construtivo, e o que é prejudicial e destrutivo. Moral requer sensibilidade, empatia, solidariedade. Contrários a ela são a truculência, o individualismo ganancioso, a agressiva competitividade, a desfaçatez...
E como anda o mundo atual em relação a essas qualidades? De que forma têm agido os países que têm poderio militar e econômico? E as grandes corporações transnacionais? E as maiorias, étnicas, religiosas, ideológicas, como têm se comportado em relação às minorias? Qual papel têm exercido os grandes líderes mundiais, e mesmo os homens públicos em geral, até mesmo aqueles das pequenas cidades, muitas vezes eleitos pela população? Não são títeres a serviço de mesquinhos interesses corporativos que se confundem com ambições pessoais?
Parece que a civilização está sofrendo de uma cegueira real, não é a ficção da literatura de Saramago. Mas não é cegueira da visão, é cegueira moral, cegueira dos sentidos do que existe de humano entre nós. E, assim cegos, somos preza fácil de manipulações. Gostos de consumo, opiniões, comportamentos, ideologias são-nos imputados sem que nos apercebamos que acreditamos ser nosso o que nos é estranho. E passamos a consumir, a rejeitar, a odiar ou idolatrar aquilo que nos é subliminarmente induzido. Somos como cães das experiências de Pavlov treinados para ter os reflexos condicionados.
Não nos guiamos mais pela moral, noção muito íntima. Somos guiados pela grande mídia, pelo consenso construído, pelo nefasto exemplo dos homens públicos, eles mesmos já desmoralizados muito antes que nós.
Se pretendemos ver a humanidade prosperar e não sucumbir, agora que adquiriu o poder de autodestruir-se e de destruir o planeta, urge que recuperemos a visão moral.

3 comentários:

  1. Na mosca Mario Sergio. Sempre ouço o grande Lennon cantar que não estamos aqui pra viver em sofrimento e dor mas sim pra brilhar, como o sol, a lua e as estrelas. (Instant Karma). Vida de gado, povo marcado é povo feliz, essa do Ze Ramalho. São muitas os toques que vem não so pela musica mas pela literatura, cinema, as artes enfim. abs. Carlos Sa

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  2. bela reflexão, sempre acompanho aqui.

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  3. Lendo o texto e depois o comentário do Carlos Sá, deixo aqui um trechinho das palavras do John Lennon

    You may say I'm a dreamer
    But I'm not the only one
    I hope some day you'll join us
    And the world will be as one

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