terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Feliz 2025, Brasil!

 Publicado no Jornal da Manhã e no Diário dos Campos em 31/12/2024.

Para simplificar, diante da insólita e nada inspiradora realidade dos tempos atuais, vamos resumir os votos para o Brasil – e para o mundo – para o ano de 2025 em duas palavras: discernimento e solidariedade. Discernimento para nos dar lucidez para compreender a realidade, enxergar a verdade. Solidariedade para que usemos a compreensão da realidade com o propósito de trazermos à tona a tolerância e a empatia, que cooperam para a fraternidade e a paz.

Discernimento é sem dúvida um atributo abençoado e, atualmente, vital, dada sua escassez. Com certeza os seres humanos nunca antes estiveram tão bombardeados por informações e desinformações. Distinguir entre as duas é essencial para que consigamos escapar do logro de embusteiros alucinados pela loucura ou pela ambição desmesurada. E que, no seu desvario e obstinação, não medem as consequências das mentiras que disseminam, dos desastres ambientais, sociais, econômicos e éticos que deflagram. Os falsos profetas do mundo atual alimentam-se da falta de lucidez e da incúria humanas. Mas, lúcidos e cuidadosos, seremos capazes de construir um mundo melhor em 2025.

Solidariedade é essencial num mundo globalizado, com mais de oito bilhões de habitantes, de contextos, raças, culturas, crenças, valores e idiomas diversos. Ela é uma bênção que desencadeia muitas outras: empatia, compaixão, perdão, igualdade, liberdade, tolerância, despojamento, humildade são algumas delas. Elas conduzem à convivência pacífica, respeitosa, edificante, amorosa. A solidariedade vai nos mostrar que conviver respeitosamente com o diferente nos enriquece. O diferente nos acrescenta saberes e olhares que desconhecíamos. Junto com o discernimento, a solidariedade vai fazer 2025 um ano com mais esperanças e realizações.

Oxalá consigamos praticar estas duas bênçãos – discernimento e solidariedade – dentro de nós mesmos. Se formos capazes de personificar estas dádivas, decerto contagiaremos com nosso exemplo aqueles com quem convivemos. É tempo de plantarmos a semente do bem viver e cuidá-la com todo carinho, com todo zelo. Um dia ela irá germinar e florescer, ainda que demore algum tempo para isso. Então é termos perseverança e paciência. Tal como a água, que fluida se adapta, mas teima, até que transforma o rígido rochedo na macia areia do rio e da praia.

As maiores bênçãos que poderíamos desejar para 2025 já nos foram concedidas, há muito tempo. A primeira delas é este planeta extraordinário, que nos concedeu e sustenta o milagre da vida. A outra é a engenhosidade humana, que nos faz capazes de criar e de refletir. Nossas crenças nos falam de céu e inferno, numa vida futura. É tempo de enxergarmos que na vida presente foi-nos concedido o céu, esta Terra que nos supre todas as carestias. Que saibamos, então, empregar a inteligência para não transformá-la num inferno. Urge acordar, reconhecer e reverenciar o milagre da Mãe Terra.

Discernimento e solidariedade são qualidades que dormem dentro de nós. Vamos resgatá-las e praticá-las em 2025.

Feliz 2025, Brasil!

terça-feira, 24 de dezembro de 2024

Feliz Natal!

 

Ele nasceu numa manjedoura, entre os animais de um estábulo humilde, porque seus pais, refugiados, a mãe parturiente, não conseguiram hospedagem mais adequada. Só tiveram o amparo do estábulo graças à benevolência do proprietário, um homem simples como eles.

Ele teve seu nascimento anunciado por uma estrela que brilhou forte nos céus. Seu brilho profetizava a chegada de uma mensagem de esperança e renascimento. Ela encantou próceres espirituais de terras distantes, que levaram honrarias ao recém-nascido.

Ele passou décadas – toda a infância e a juventude – aprendendo com sábios eremitas, retirados da civilização. Eram homens bondosos, que tinham se espantado com os desvairados rumos que o povo estava seguindo. Pensavam que talvez desterrados, solitários, pudessem reconquistar e fortalecer princípios e valores em si mesmos, e ensiná-los a um jovem de firmeza, lucidez e santidade inquebrantáveis.

Ele retornou ao convívio na sociedade quando julgou que já estava preparado. E então foi submetido à prova. Procurou ensinar a solidariedade, a simplicidade, a justiça, a esperança, o respeito. Fez seus companheiros compreenderem que os sonhos começam a realizar-se quando são sonhados. E assim fizeram milagres.

Ele não conseguiu encantar os de seu tempo, salvo um pequeno grupo de seguidores. Perseguidos, ainda portadores de dúvidas e temores. Suas ideias atraíram muitos inimigos, uns poucos adeptos. Isso obrigou-o a afastar-se do convívio familiar e dos confortos do lar. Sua vida foi um exemplo de luta, de generoso sacrifício, de peregrinação, de despojamento, de dedicação.

Ele logo foi acusado de heresias, difamação e sublevação. Não só as autoridades de seu tempo, mas também o povo simples, sentia-se ameaçado por aquele homem que dizia verdades que afrontavam o senso comum. Foi injuriado, perseguido, aprisionado.

Os governantes temeram julgá-lo. Não sabiam como o povo reagiria à condenação de um possível santo. Lavaram as mãos, deixaram que a multidão o julgasse. Então ele confirmou o que já sabia: um notório e aproveitador ladrão era o mais estimado, com quem se identificava a grande maioria.

Ele foi inculpado, o outro foi absolvido. Condenado, foi humilhado, torturado, morto com a mais extrema crueldade. À morte, ainda pronunciou-se perdoando seus algozes.

Não conseguiu mostrar o milagre do amor à maioria dos de seu tempo. Mais de dois mil anos depois, seu nascimento é celebrado, sua mensagem ainda é uma esperança viva. Um dia seu sonho ainda há de se realizar.

Feliz Natal!

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

O deus dinheiro e o profeta mercado

 Publicado no Jornal da Manhã em 20/12/2024

O mercado está nervoso: a bolsa cai, o dólar dispara, o preço dos alimentos sobe, o pobre fica mais pobre. E o rico fica mais rico. Por qual motivo o mercado anda tão nervoso? Diz o noticiário que é pela incerteza com a aprovação das medidas do “ajuste fiscal” e contenção de despesas, que estão em tramitação no Congresso Nacional – este mais um personagem neste imbróglio.

Enquanto isso, a taxa Selic – definida pelo Banco Central – é uma das maiores do mundo. É a taxa que diz qual o tamanho dos juros que o Governo paga aos credores da dívida pública. Cada elevação da taxa Selic quer dizer muito dinheiro que o Governo paga aos credores, e deixa de investir em saúde, educação, infraestrutura, moradia, programas sociais... Dinheiro que é fruto da arrecadação daqueles que pagam impostos – sobretudo a população mais pobre, que não tem isenção nem esquemas de sonegação.

São muitos personagens, muitas variáveis, várias delas ocultas, nessa complicada equação que é a economia do país. Parece que o mercado é um ser imaterial, mas muito afetado. Fica nervoso até com longínquas expectativas, boatos e infundadas especulações. Atribui-se ao mercado a instabilidade que derruba a bolsa, incha o dólar, faz crescer a inflação e a taxa Selic. E empobrece ainda mais a população pobre. Na verdade, o mercado é a máscara que esconde as corporações e os especuladores que vivem de sangrar a economia. E quem vive das operações do mercado usa artifícios, disfarces e linguagem obscura para manter a maior parte da população na ignorância do que realmente acontece. E numa impotente imobilidade.

E o Congresso Nacional, que na suposta democracia representativa que vivemos deveria estar empenhado em defender os direitos da maioria da população? Não nos enganemos. O Congresso representa quem o elegeu. E fala-se com muita propriedade que atualmente as eleições não são vencidas; são compradas. Por isso o Congresso está tão cheio de representantes do agro, do boi, da bala, da bíblia, das grandes corporações. Além de uma enorme bancada de aluguel. São minoria os legítimos representantes do povo pobre, que é a grande maioria da população.

E os congressistas amiúde agem em proveito próprio. É vergonhoso constatar como o Governo Federal vê-se um refém chantageado a liberar recursos para os congressistas – na forma das famigeradas emendas – para fazer tramitar as regulamentações tributárias e orçamentárias. A composição atual do Congresso Brasileiro é uma boa mostra de como a população é ludibriada pela desinformação, e manipulada para eleger os lobos mais vorazes para cuidar do galinheiro.

Há ainda uma motivação principal a mover mercado, Congresso e Banco Central atuais: o muitas vezes escondido, ou mesmo distorcido, embate entre uma visão de país socialista – onde o Estado age firme em nome da coletividade – e outra neoliberal – onde as corporações e empreendedores têm liberdade de ação para auferir lucros cada vez maiores, às custas do empobrecimento da coletividade. Os fiéis do deus dinheiro unem-se contra as tentativas de regramento de sua inescrupulosa e insaciável ambição.

Enquanto a população aceitar cegamente os engodos da desinformação, continuaremos a mercê do deus dinheiro e seu profeta mercado.

domingo, 15 de dezembro de 2024

Distopia: ficção ou realidade?

 Publicado no Jornal da Manhã em 17/12/2024

Distopia é algo como o contrário de utopia. Utopia seria um lugar (topos) melhor que este onde estamos vivendo. Não uma quimera irrealizável, como alguns teimam em tentar estigmatizar o sentido da palavra. Utopia é um sonho alcançável, cuja primeira exigência para ser realizado é ser sonhado. Depois vêm outras exigências: planejamento, estratégia, resiliência, perseverança... Há quem diga que “um sonho bem sonhado é meio caminho andado”.

Distopia seria então um lugar ainda pior que este que estamos vivendo. Muito se argumenta e se alerta que nossa civilização atual, com seus desatinos, está celeremente caminhando para uma distopia. Um paradoxo, visto que nunca conseguimos amealhar e compartilhar tanto conhecimento e tecnologias que, em princípio, deveriam melhorar a vida. Mas parece mesmo que evoluímos muito tecnologicamente, e regredimos ética e espiritualmente. As potenciais maravilhas que inventamos parecem mais capazes de destruir-nos ou alucinar-nos – e igualmente destruir-nos – inapelavelmente.

Se considerarmos os mais ou menos 200 mil anos de existência do Homo sapiens, somos ainda muito jovens, comparados com os primeiros vertebrados, que existem há mais de 400 milhões de anos. Temos ainda o cérebro reptiliano preponderante, que é regido pelos instintos da agressividade, do poder e da sexualidade. Impulsos essenciais para a sobrevivência, ela que foi a principal preocupação de nossos ancestrais humanos a até cerca de 10 mil anos atrás. O cérebro límbico (zelo com a prole e o bando), o neocórtex (raciocínio lógico) e o suposto e incipiente cérebro hipofisário (ética, solidariedade e espiritualidade) ainda são submissos ao cérebro reptiliano e seus instintos de preservação da espécie.

É pelo fato de ainda agirmos muito como répteis - os nossos longínquos ancestrais - que parece muito factível imaginar distopias marcadas por injustiças, desigualdades extremas, guerras, miséria, pandemias, crises ambientais, segregacionismo, enlouquecimento e destruição da humanidade e até do planeta. As crises atuais que vivemos já fazem acreditar nisso. Ainda são crises, não chegamos – queremos crer – ao ponto do colapso sem retorno, sem salvação. Inúmeros livros, filmes, séries, que ainda classificamos como “ficção científica”, retratam tais distopias: Admirável mundo novo, 1984, Blade Runner, Matrix, Ensaio sobre a cegueira, Laranja mecânica, Idiocracia, Eu sou a lenda, WALL-E, Elysium, Interestelar, Mad Max são só alguns poucos de uma longa lista de títulos.

Estaria a imaginação criativa da humanidade antevendo as possibilidades do futuro distópico que estamos construindo? Arsenais nucleares, guerras de extermínio, aquecimento global, endeusamento do mercado e do dinheiro, alastramento da desinformação, rendição à inteligência artificial, pandemias, séculos de um sistema econômico que cultiva o egocentrismo, a competição, a exploração, a concentração da riqueza, a disseminação da pobreza e o hiperconsumismo não são já evidências suficientes para mostrar-nos que estamos a caminho das imaginadas – ou seria melhor denominá-las premonitórias – distopias?

A humanidade encontra-se diante de um dilema crucial, e as distopias que a ficção nos apresenta parecem querer alertar-nos: ou aprendemos com os muitos erros que temos cometido, ou logo a barbárie das distopias tornar-se-á realidade.

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

A extrema-direita no divã

 Publicado no Jornal da Manhã em 07/12/2024.

A extrema-direita que prospera no mundo atual, seja qual for o rótulo que lhe coloquemos – fascismo, neonazismo, totalitarismo, trumpismo, bolsonarismo –, precisa ser analisada por olhos que vão além da política e da economia. A extrema-direita é um fenômeno social complexo: cultural, ético, educacional, ideológico, religioso... Enfim, psicológico.

A extrema-direita é armamentista, negacionista, segregacionista, narcisista... Muitos outros adjetivos poderiam ser-lhe atribuídos, mas estes bastam para uma reflexão inicial. O entendimento psicanalítico do narcisismo dá boa ideia do que seja a extrema-direita: o narcisista não é só apaixonado pela própria imagem no espelho, mas odeia, e precisa subjugar – ou destruir – o diferente. A extrema-direita não sabe o significado da palavra empatia, muito menos das palavras solidariedade e compaixão.

A crescente organização da extrema-direita no mundo é financiada por bilionários que já não sabem o que fazer com tanto dinheiro que amealham. Muitos de seus seguidores pensam que se trata de gênios empreendedores, meritosos do sucesso financeiro. Outros pensam que toda sua riqueza provém da falta de ética e de limites com que exploram a humanidade. Sua principal qualidade, mais do que a engenhosidade e a ambição desmesurada, é a falta de escrúpulos. São extremados narcisistas.

A extrema-direita talvez seja mesmo o fruto de séculos de capitalismo, esse sistema econômico que incentiva a competição, a concentração de riqueza, a disseminação da pobreza, o consumismo insano. Não podia resultar outra coisa que não fosse a revolta de uma grande parcela da população, aquela mais desejosa das supostas benesses do capitalismo. Sentindo-se lograda por nunca alcançar as regalias prometidas, rebela-se; não contra os astuciosos exploradores, mas contra os explorados como ela.

O equívoco no discernimento de quem seja o responsável pela crise humanitária que vivemos é fruto de um sofisticado controle da população. A grande mídia, que domina a veiculação das notícias e influencia a cultura e a educação, é toda ela uma ferramenta a serviço dos patronos da extrema-direita. Na verdade, ela é o braço hipnótico que alucina a opinião pública. Esse braço pertence à extrema direita. Ele manipula, distorce, inventa, mente, distrai, deturpa, oculta, insufla amor ou ódio. Explora a crendice e a desatenção humana para instilar os vírus da cizânia, que mantêm a maior parte da população ocupada com conflitos fratricidas. Enquanto os multimilionários prosseguem impunes, alimentando sua insaciável ânsia de riqueza e de poder.

A crendice humana talvez nunca tenha sido tão lograda quanto nestes nossos tempos atuais, dotados da sofisticação da mídia e das redes sociais. A fé nos messias que ensinaram a ética, a solidariedade, o amor, a retidão de caráter, deu lugar ao culto ao dinheiro e ao poder, a fé na prosperidade e na dominação. Que inacreditável incompreensão e distorção!

A causa fundamental do mundo em crise que vivemos – do qual a extrema-direita é só uma de muitas patologias – talvez não seja o capitalismo, a religião, a mídia, a educação. Talvez seja o traço narcisista da natureza humana. Ele é quem tem criado tudo o mais. É preciso com urgência reconhecê-lo e tratá-lo, cultivando o lado solidário que existe dentro de nós.

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Conferência Municipal do Meio Ambiente de Ponta Grossa

 Publicado no Jornal da Manhã em 14/11/2024.

Ponta Grossa realiza, nos dias 21 e 22 deste mês, a 5ª Conferência Municipal do Meio Ambiente, nas dependências da UTFPR-PG. Tendo sido professor de Meio Ambiente e Sustentabilidade na UEPG por 15 anos, venho antecipar alguns temas que creio essenciais e que devem ser tratados no evento. São temas com relevância local, mas que estão estreitamente relacionados com os temas globais conectados com a emergência climática e suas consequências.

O primeiro tema é a questão dos recursos hídricos. Os mananciais superficiais dependem das chuvas, estas cada vez mais imprevisíveis. A água é mundialmente considerada o “ouro azul” do século XXI, crises hídricas serão inevitáveis. É necessário que o município gestione com firmeza a proteção de  seus mananciais, tanto as bacias hidrográficas – os mananciais superficiais – quanto as áreas de recarga do Aquífero Furnas – os mananciais subterrâneos –. As áreas de recarga do aquífero são as áreas de afloramento do Arenito Furnas, na parte leste do município. No caso, o que define a extensão da área a ser protegida é a área de ocorrência da unidade geológica, que ultrapassa o limite da bacia hidrográfica.

O segundo tema, é a proteção e efetiva implantação das unidades de conservação dentro do município. Destacam-se o Parque Nacional dos Campos Gerais, a APA – Área de Proteção Ambiental – da Escarpa Devoniana e o Parque Estadual de Vila Velha. Só não defende as UC’s quem é movido pela cupidez do lucro rápido e pela desfaçatez ambiental. É a ignorância de ainda não ter compreendido os vitais serviços ambientais prestados pelas UC’s: equilíbrio da biodiversidade e controle de pragas e polinizadores; regularização do ciclo hidrológico e preservação dos mananciais hídricos; consequente preservação da qualidade e produtividade dos solos agrícolas; retenção do carbono do solo e da biomassa, redução das emissões de gases estufa e equilíbrio do clima; proteção de patrimônio natural único para pesquisas científicas, educação e lazer junto à natureza. No caso de Ponta Grossa, a proteção das UC’s tem estreita relação com a proteção dos mananciais hídricos, tanto os superficiais quanto os subterrâneos. Um cuidado capital é que não se confundam unidades de conservação com destinos turísticos desregrados. A função ambiental, científica e educacional deve ser sempre prioritária em relação à função turismo e lazer.

O terceiro tema tem a ver com os arroios urbanos. Urge saneá-los. Ponta Grossa tem um sítio urbano peculiar: o centro e os principais eixos radiais da cidade situam-se em áreas elevadas. Deles diverge uma rede hidrográfica com vários arroios: Grande, Pilão de Pedra, Cará-Cará, Olarias, Ronda, Gertrudes – afluentes dos rios Verde, Pitangui e Tibagi. Esta particularidade coloca várias questões: altos bem urbanizados distando poucas dezenas de metros de encostas e fundos de vale caóticos; várias estações de tratamento de esgotos, uma para cada arroio. Ademais, a cidade é antiga: a captação de esgotos amiúde é feita indevidamente na rede pluvial, que os despeja diretamente na rede de drenagem. Por esse motivo os arroios da cidade ainda são poluídos, embora se alegue que ela seja uma das mais bem saneadas do país. É necessário um minucioso trabalho de verificação da destinação correta dos esgotos.

Que a 5ª Conferência Municipal do Meio Ambiente logre lançar as sementes de um futuro ambiental sadio para a cidade.

domingo, 10 de novembro de 2024

Envelhecimento: madurez ou azedume?

 

Dizem que o vinho quanto mais velho melhor. Será? Não é bem assim. O vinho de boa qualidade pode ser. O de má qualidade, azeda, vira vinagre. Mesmo o de boa qualidade, o envelhecimento tem que ser acertado: sem mudanças de temperatura, sem luz, sem sacolejos, sem trocas de fluidos através da rolha. E ainda, na hora de degustar, depois de desarrolhar, aguardar o tempo certo necessário para uma decantação ideal.

Dizem também que a amizade é como o vinho. Então valem para a amizade as mesmas ressalvas que valem para o vinho. E dizem também que o envelhecimento das pessoas é como o do vinho: traz a maturidade, a emancipação do ser humano, que com o passar dos anos livra-se de muitas das opressoras e hipócritas convenções de nossa sociedade. Ah, aqui não se têm dúvidas: se a velhice humana é comparável ao envelhecimento do vinho, pelos resultados – velhos ora sábios, ora amargurados ranzinzas, ora soberbos, ora alienados – deduzimos que por certo há os de boa e os de má cepa, há os que não tiveram o envelhecer – o decorrer da vida – que propiciasse um amadurecimento adequado.

Gosto de compartilhar um exemplo marcante da Geologia para exemplificar a velhice tão cheia de ranços e presunções, que nada se pode atribuir-lhe de sábia. A teoria geológica mais aceita até meados do século XX era a “teoria geossinclinal”, que vinha sendo aperfeiçoada há mais de cem anos. Ela explicava a ocorrência de fósseis marinhos no alto das grandes cadeias montanhosas admitindo movimentos verticais da superfície terrestre: ora depressões invadidas por mares, seguidas de soerguimentos formando as cadeias de montanhas. Essa teoria prevaleceu até depois da segunda guerra mundial. Cursei a graduação em Geologia na USP de 1971 a 1975, e boa parte de meus professores ainda era adepta da teoria geossinclinal.

Mas desde 1915, um jovem geocientista alemão, Alfred Wegener, então com 35 anos de idade, já publicava artigos e defendia em encontros científicos uma hipótese alternativa à teoria geossinclinal: a “teoria da deriva continental”. Baseado em vários argumentos – nítido ajuste de continentes, tal como entre África e América do Sul, semelhanças dos fósseis, rochas, estruturas geológicas e evidências paleoclimáticas em continentes hoje afastados – Wegener advogou que no passado as terras emersas estavam unidas num único grande continente, a Pangeia. Assim, ao contrário da teoria geossinclinal, a deriva continental falava em movimentos horizontais da crosta terrestre. Mas o jovem geocientista não soube explicar o mecanismo que causaria a desagregação da Pangeia e a deriva de seus fragmentos, as placas tectônicas. Os velhos e catedráticos doutores, que se presumiam os donos da verdade sobre a dinâmica terrestre, condenaram a brilhante teoria de Wegener à ridicularização. Mas, passadas algumas décadas, com as evoluções tecnológicas devidas às duas guerras mundiais, o mapeamento do fundo dos mares e o desenvolvimento das técnicas de datação radiométrica das rochas, as ideias do jovem cientista foram finalmente sendo aceitas.

Atualmente é graças à tectônica de placas que se orientam as prospecções de recursos minerais e energéticos, e se faz a gestão de desastres naturais de natureza geológica. As modelagens apoiadas na teoria são fundamentais. Entretanto, talvez mais que a evolução da ciência, a deriva continental e a moderna tectônica de placas tenham tido que aguardar a morte de uma presunçosa e velha geração de geocientistas, que se considerou ofendida com a revolucionária teoria de Wegener.

Aqueles velhos geocientistas não tinham amadurecido como um bom vinho. Retardaram por meio século a evolução das Geociências.

sábado, 2 de novembro de 2024

O chupim do nosso jardim

 

Nosso jardim da casa na Vila Placidina, em Ponta Grossa, embora pequeno, é um santuário de pássaros. Uma pitangueira, uma caramboleira, uma aceroleira, um pote com água fresca, duas garrafinhas com água adocicada, um prato com alpiste e painço, um comedouro com mamão e bananas, quirera esparramada no chão, os insetos e vermes da terra, vasculhada pelas aves, dão conta de fazer aquele reduzido espaço, perto do centro da cidade, sempre muito cheio de vida. São sanhaços, sanhaços-papa-laranja, sabiás-laranjeira, sabiás-do-campo, sabiás-poca, bem-te-vis, cambacicas, saís-azuis, colibris, avoantes, canários-da-terra, rolinhas, chupins, joões-de-barro, corruíras. Mais raramente guaxos, tiés-sangue, saíras-preciosas e, estranhamente, pardais e tico-ticos; estes dois últimos antes eram comuns, mas passaram a quase não mais serem vistos. Nestes últimos dias, para nossa surpresa, apareceram pela primeira vez um jacuguaçu e uma saracura-do-mato. Pareceu-nos que a natureza anda mesmo desorientada.

É um rico divertimento ficar observando os pássaros, aprendendo seus hábitos e comportamentos. Constata-se que há os que são pacíficos, há os briguentos, há os tímidos. Todos têm preferências alimentares bem definidas. No comedouro de frutas, uma rígida hierarquia: os sabiás-do-campo têm prioridade, e costumam comer em família, até quatro indivíduos; depois vêm, na ordem, os sabiás-laranjeira, os sanhaços e, no final, o tranquilo bem-te-vi, que costuma tolerar os sanhaços enquanto bica as bananas. Sabiás-laranjeira e bem-te-vis sempre vêm sozinhos – salvo quando vem junto um filhote –. Os sanhaços aparecem em até sete indivíduos ao mesmo tempo, quando ruidosas balbúrdias chegam a jogar no chão as frutas do prato. As avoantes e os chupins chegam aos bandos para ciscar a quirera no chão, os canários-da-terra vêm quase sempre aos casais, no prato de alpiste e painço, e também na quirera.

Não sei por qual razão destes tempos desarrazoados, os antes predominantes pardais e tico-ticos têm desaparecido. Uma pardaloca às vezes vem bicar as frutas do comedouro, junto com os sanhaços. Mas o que nos chamou a atenção no início deste ano foi uma extremosa mãe tico-tico, alimentando um filhote de chupim já bem maior que ela. Aparentemente embaraçada em sua transvertida tarefa, ela ora conduzia o filhotão às frutas, ora à quirera no chão, ora ao prato com alpiste e painço. E ele, chiando de protesto, seguia-a obsessivo, abrindo um bico enorme, onde cabia toda a cabeça da mãe adotiva. Uma visão bizarra, às vezes até revoltante. A natureza não se cansa de nos surpreender com suas traquinagens.

Talvez por ser a preferência alimentar dos tico-ticos, era mais comum ver mãe e filhotão no prato de alpiste e painço. Mas, justamente para evitar que os pássaros maiores, tais como as avoantes, rolinhas e os chupins, acabassem com os grãos destinados prioritariamente aos pequenos canários-da-terra, protegi o prato com uma tela de arame com duas aberturas pequenas, que só deixam passar os pássaros menores: não só os canários, mas também os pardais e os tico-ticos. Um graveto fora da tela, junto às aberturas, serve de poleiro para os pássaros. Então, a mãe tico-tico entrava pela abertura, enquanto o filhotão aguardava chiando, protestando, abaixado, tremulando as asas, bico aberto, empoleirado no graveto. A mãe pacientemente entrava e saía pela abertura, levava os grãos do prato para o bico do birrento chupim.

Passados meses, os chupins continuam frequentando a quirera esparramada no chão. No início, só um chupim adulto – que creio ser uma fêmea, por não exibir o brilho azulado típico dos machos – frequenta o prato com alpiste e painço. Ela vem sozinha, pousa no poleiro fora do prato, não consegue passar pela abertura pequena, então enfia a cabeça e alcança alguns grãos mais próximos. De quando em quando, saltita no poleiro, como a sacudir o prato para fazer que mais grãos cheguem ao alcance do seu bico. Engenhosa, parece ter aprendido o método com uma extremosa mãe granívora.

Deduzimos que é o filhotão – então seria filhotona – que víamos meses atrás, agora já um chupim adulto. Resolvemos dar-lhe o nome de Macuna, sincopado de Macunaíma. Apesar da implicância pelo fato de a considerarmos fruto de um cruel parasitismo, ela acabou conquistando nossa simpatia; pela criatividade, pela confiança e assiduidade com que frequenta o prato de grãos e nos diverte com seu engenho.

Mas eis que ela continua nos surpreendendo. Agora, tem vindo acompanhada de um chupim com o característico brilho azulado dos machos. Ela está compartilhando seu aprendizado com um companheiro recente. E dentro em pouco, possivelmente veremos de novo uma extremosa mãe tico-tico visitando o prato de grãos com um filhotão chupim. Nos perguntaremos então se ele será um filho-neto adotivo, fruto das artimanhas da natureza.

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Frei Betto e a mosca azul

 

A mosca azul – reflexão sobre o poder” (Editora Rocco, 2006) é um imperdível livro de Frei Betto (Carlos Alberto Libânio Christo). Apesar de escrito há quase duas décadas, é oportuníssimo para se pensar em como agem nossos dirigentes e o que anda acontecendo em nossa sociedade.

Frei Betto é frade dominicano, jornalista e escritor laureado, ganhador do Prêmio Juca Pato (1985) e do Jabuti, este duas vezes (1982 e 2005). O frei revela no livro que, embora tenha participado do primeiro governo Lula (2003-2004), sua formação religiosa e política foi nas Comunidades Eclesiais de Base e na Pastoral Operária. Ele nunca foi filiado a nenhum partido, mas declara-se um religioso que enxerga que fé e política caminham juntas, e a fé cristã é aquela que Cristo ensinou, repartindo o pão com os pobres.

O livro narra a trajetória dos movimentos populares no Brasil, até a criação do Partido dos Trabalhadores (1980) e a eleição de Lula para o governo federal (2002). Analisa como o sonho de uma sociedade livre e justa no início catalisou expressiva parcela da população brasileira, e como, após a chegada ao poder, a força do sonho inicial foi sendo dissipada pela reação conservadora e por erros ou impossibilidades do governo e do PT: enfoque mais econômico que de ideias e princípios, lideranças desvinculadas da base, divisão entre tendências conflitantes, oportunismo de carreiristas... Frei Betto alerta que o alimento da mudança é a quimera, mas que amiúde o logro prevalece, o ideal dos pobres passa a ser a ilusão burguesa. Diferencia três tipos de militantes: os pelegos (visam benefícios pessoais), os ideológicos (teóricos dogmáticos distantes das bases) e os orgânicos (os identificados com os pobres e o sonho legítimo de liberdade e justiça).

A formação e prática religiosa de Frei Betto capacitou-o a uma acurada percepção das múltiplas faces que tem o ser humano, a exemplo de um cristal facetado. Temos faces angelicais e diabólicas. Por esse motivo é essencial cultivar a face solidária e a aspiração de um projeto de nação livre, justa, inclusiva. A face diabólica a ser superada é narcisista, mentirosa, que faz caixa dois e falsas promessas, é clientelista e fisiológica, despreza os que não lhe servem de degrau ascendente.

Frei Betto adverte para o erro da mera disputa de cargos eleitorais, a inexistência de um projeto de nação, a política de resultados superando a de princípios, o descolamento das bases, a míngua da formação política, o desparecimento dos núcleos de base: “O partido deixa de ser ferramenta de transformação da sociedade para tornar-se quase que somente a via de acesso de seus quadros ao poder”.

O autor ressalta que as elites manipulam o falso e camuflado paradoxo entre justiça e liberdade: um terço da humanidade goza os privilégios da suposta liberdade do mercado, que penaliza outros dois terços, vítimas da ausência de justiça, que concentra renda e dissemina pobreza. A questão da sonhada harmonia entre justiça e liberdade não é ideológica, mas é ética: é preciso despertar para o crime de lesa-humanidade que é o arranjo que beneficia uma minoria às custas da exploração e exclusão da maioria.

O livro indica alguns caminhos para a saída dos impasses da esquerda e superação da indiferença e desesperança, que acometem sobretudo os jovens: retomar o trabalho de base, reinventar a estrutura sindical, reativar o movimento estudantil, abordar questões indígenas, étnicas, sexuais, femininas, ambientais... Se fosse escrito hoje, possivelmente Frei Betto também recomendaria perícia no uso dos modernos meios de comunicação, como ferramenta de contato com as bases e de combate à desinformação e à mentira.

No último capítulo, Frei Betto dedica-se a declarar sua convicção de que fé cristã e política são inseparáveis. Ele relembra que a vida de Cristo foi uma vida de militância, de pregação, de convício com os pobres e do sonho de justiça e liberdade. A mística cristã é o amor. É ele o caminho para o mundo de justiça e liberdade que almejamos.

sábado, 12 de outubro de 2024

Dilema civilizacional - a mosca e a janela de vidro

 Publicado no Jornal da Manhã em 15/10/2024.

Na sala de uma moradia há, de um lado, uma ampla janela de vidro, fechada, que dá para um iluminado jardim, com apetitosas flores e frutos. Do outro lado da sala, uma porta dá para o interior da casa, mais escuro que o luminoso jardim. Duas moscas tentam chegar ao jardim. Malogradas, batem-se repetidamente contra o para elas invisível vidro. Já estão extenuadas, quase mortas. Uma delas repousa um instante de recuperação, e volta a bater-se contra o vidro. Até tombar sem vida. A segunda, resolve usar outra forma de percepção que não seja só a visão, que lhe mostra o ambicionado jardim, mas não o vidro. Olha em volta, vê a porta, não tão atraente, mas uma possível saída. Voa para ela, consegue chegar a outro aposento da casa, depois a outro, até encontrar uma janela aberta, e assim sai para a liberdade do ar livre. Se procurar, ainda vai poder encontrar o jardim. A outra mosca, jaz no vão da janela.

Os seres humanos parecem comportar-se como estas moscas. A janela de vidro intransponível, contra a qual nos batemos, ignorando-a ou negando-a, é o cuidado que deveríamos ter para com a natureza, que nos provê a vida, e a solidariedade para com o próximo, que nos provê a justiça e a paz. A natureza já não consegue se recuperar no planeta finito que está superpovoado e superexplorado. A teimosia em bater-se contra o vidro é a cobiça, a compulsão de ter, de poder, de competir, de sobressair-se. O jardim luminoso que nos seduz talvez seja o sonho de emancipação, de paz, de fraternidade. O caminho alternativo – a menos fascinante e mais longa porta de saída para a sobrevivência, a liberdade e o devir esperançoso – é o controle de nossas pulsões, o discernimento, a sobriedade para com a natureza, a compreensão dos inevitáveis limites, a amorosidade para com o próximo. Tarefa que nos parece assaz penosa.

Se teimarmos fazer como a mosca que se debate impulsiva contra o vidro, vamos acabar como ela. É bem provável que não só venhamos a perecer, mas também causemos uma extinção em massa no planeta. Apesar do colapso, a Terra há de se recuperar, como já fez outras vezes após cataclismos naturais: novas espécies, mais evoluídas, povoarão o planeta após a infausta experiência humana. Temos imitado esta mosca negligentemente suicida: na ânsia de dominar, de enriquecer, de se sobressair. As crises que a humanidade vivencia hoje – climática, hídrica, sanitária, política, social, educacional, cultural, religiosa, de segurança, de guerras, de foragidos, de desinformação, ética, moral – e a impotência para resolvê-las, escancaram o quanto estamos agarrados ao papel da mosca suicida.

A humanidade há de ter um lado mais evoluído, algo que a distinga da mosca que não é cega da visão, mas é cega de capacidade de reflexão e de cooperação. As crises que vivenciamos hoje não resultam de um sistema econômico cruel, de uma nação imperialista guerreira, de um arranjo político e social falido. Todos estes desatinos é que são resultantes do lado ainda primitivo da índole humana, da teimosia de continuar batendo-se contra o vidro da janela, ao invés de refletir para encontrar uma saída viável. Infelizmente, esta cegueira de bom senso é alimentada por um avançado sistema de manipulação da opinião, que tange multidões, dissemina mentiras e semeia desesperança, reduzindo o gênio humano ao mesmo comportamento da mosca suicida.

Vê-se logo que a estória das duas moscas é muito simplista. Há também aquelas que têm empatia com a congênere que se debate cega, e mostra a ela o caminho da saída. Há aquelas que, chegando ao cobiçado jardim, vão tentar tirar egoístico proveito dele. Talvez até construam anteparos de vidro para isso.

Mas, com certeza, o ser humano é mais que a mosca cega de discernimento. Só é preciso lembrá-lo disso.

domingo, 29 de setembro de 2024

Crise hídrica e guerra mundial

 Publicado no Jornal da Manhã em 28/09/2024.

Os eventos recentes escancaram que já estamos vivendo as consequências do aquecimento global e da emergência climática: enchentes catastróficas, secas prolongadas, recordes de temperatura, incêndios... As previsões são que os eventos climáticos extremos serão cada vez mais frequentes e agudos.

A água tem sido considerada a substância chave para o Século XXI. Por isso é chamada “o ouro azul” do século. A distribuição da água potável no planeta deverá sofrer profunda crise com as mudanças climáticas. Atualmente, segundo a UNICEF (órgão da ONU para a infância), a escassez de água já penaliza cruelmente a humanidade: 2,1 bilhões de pessoas sofrem de insegurança hídrica, 4,5 bilhões não contam com serviços de saneamento seguros. E esta atroz realidade só vai piorar.

No Brasil, parecemos não querer nos preocupar com a água. Afinal, o país é o detentor dos maiores volumes de água doce do planeta. Mas a despreocupação está dando origem à negligência, à ruína. Poluímos águas superficiais, incendiamos a vegetação nativa e degradamos solos que são essenciais no ciclo da água, causamos a depleção de aquíferos... Com os incêndios na floresta, os “rios voadores”, que transportam umidade da Amazônia para o Centro-Oeste, Sul e Sudeste do país, estão se transformando em torrentes de fumaça e fuligem. Atenção: comprometer a capacidade da Amazônia de abastecer os rios voadores que irrigam o Brasil causaria mais danos que um ataque nuclear ao nosso país.

Com o agravamento da emergência climática, as águas subterrâneas passam a ter importância estratégica crescente. Os aquíferos – as unidades rochosas que acumulam água nos seus poros e vazios – fornecem água de boa qualidade, em volumes que podem suprir as necessidades humanas por muito tempo. A água subterrânea tem algumas vantagens: não depende das mudanças nas precipitações; a água é de boa qualidade e em volumes apreciáveis; dispensa tratamento prévio; os poços podem ser perfurados no local de uso, evitando redes de distribuição. Mas a água subterrânea também tem suas vulnerabilidades: se poluídos, os aquíferos tornam-se praticamente irrecuperáveis. Assim, diante da emergência climática, nunca foi tão importante cuidar da proteção dos aquíferos.

A cidade de Ponta Grossa no Paraná – um exemplo bem oportuno – é abençoada com a existência de um generoso manancial subterrâneo em seu subsolo: o Aquífero Furnas. Em estudos realizados em 2010, os poços tubulares profundos que exploravam águas desse aquífero na cidade já tinham possibilidade de produzir 30% da demanda. Decerto essa capacidade cresceu com a perfuração de novos poços desde então; novos estudos têm que ser feitos.

A preservação da qualidade da água do Aquífero Furnas depende de ação firme. É urgente um regramento municipal que regule o uso da terra nas áreas de recarga do aquífero: na porção leste da cidade, onde aflora o Arenito Furnas, é essencial a condição de proteção de manancial, que evite qualquer atividade potencialmente poluente. Lá não é lugar para aterros sanitários, uso de agrotóxicos, efluentes da indústria e da pecuária. O que implica inclusive a remoção do lixo contido no encerrado Aterro Botuquara para outro local. Ademais, a exploração pelos poços também tem de ser regulamentada, para evitar a depleção e a poluição pela contaminação com águas impróprias, provindas de unidades rochosas justapostas.

Enquanto, com o agravamento das crises na Ucrânia e no Oriente Médio, a humanidade se preocupa com o risco de uma nova guerra mundial, urge a atenção com a água, diante do incerto futuro climático. Sua escassez pode ser igualmente devastadora.

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

O deus dinheiro, o messias Narciso e a escrava Terra

 Publicado no Jornal da Manhã em 20/09/2024.

Estaremos já colhendo os sinais de autoextinção da humanidade? Os desastres de Mariana e Brumadinho, a pandemia de Covid-19, o aquecimento global e derretimento das calotas polares, as inundações no RS, a aguda seca e as queimadas atuais, o desregramento e a disseminação da desinformação, os temores com o descontrole e a sublevação da inteligência artificial, as guerras cognitivas e por procuração, o risco crescente de confrontos nucleares, a ascensão de radicalismos, segregacionismos e limpezas étnicas, a chamada teologia da dominação... Estes são só alguns sinais mais recentes da insanidade que nos conduz a uma tragédia final.

Há várias alternativas concretas para o fim da civilização atual: cataclismos climáticos que nos privassem da água, de alimentos e de ar respirável; uma pandemia incontrolável; uma guerra nuclear generalizada; a bestificação das massas manipuladas, encolerizadas e armadas; a destruição por uma inteligência artificial revoltada... Muitas ficções – ou seriam previsões? – têm abordado estes temas. Acrescentam outros, naturais, como o impacto de um meteorito destruidor, terremotos, vulcões e tsunamis avassaladores. O tema do colapso da civilização nunca esteve tão presente nos nossos temores e suas manifestações na literatura, no cinema.

O deus dinheiro tem sido o guia da humanidade há séculos. Inventou-se até a teologia da prosperidade. Ele abençoa o lucro, e condena a solidariedade humana e a natureza. Narciso, no sentido freudiano – tudo que não é imagem especular é condenável e deve ser dominado ou destruído –, é o messias do deus dinheiro. Seus mandamentos ensinam a ganância, a competição, a supremacia, a improbidade, a agressividade, a incúria moral e ambiental, o desperdício. O planeta Terra tornou-se a escrava a ser explorada sem misericórdia, até sua completa ruína.

Para lembrar algumas séries e filmes que tratam das fictícias distopias provocadas pela demência humana, podemos citar O dia depois de amanhã, O exterminador do futuro, Matrix, Interestelar... Mas são muitos títulos. Além dos que tratam de fenômenos naturais, como 2012, Não olhe para cima, Impacto profundo, Destruição final – o último refúgio... Também são muitos títulos. Será que tanta criação artística calamitosa estaria dando vazão a um justificável temor de nossa própria insanidade?

O deus dinheiro e os deslumbrados narcisistas estão exaurindo a capacidade de regeneração da escrava Terra. Agimos como um vírus mortal, que, no afã de disseminação e dominação, não consegue parar antes de sacrificar o hospedeiro. Matando-o, acaba por também sacrificar a si mesmo. Será que o tino da espécie humana é igual ao desse incauto vírus, que se autodestrói? Será essa uma providência das leis naturais, para controlar organismos predadores que ameaçam o milagre que é a multiplicidade da vida no planeta Terra?

Se essa lei natural que extermina organismos nocivos realmente funcionar, estamos correndo sério risco. Mas ainda nos resta uma centelha de discernimento. Quem sabe ainda logremos aprender a conviver com os diferentes entre nós, com as outras espécies, e dentro dos limites de recuperação da natureza?

Oxalá aprendamos!

terça-feira, 10 de setembro de 2024

Uma revolução ética e solidária

 Postado no Portal DCmais em 10/09/2024, publicado no Jornal da Manhã em 11/09/2024.

A chegada a Ponta Grossa, vindo de Curitiba, quando se alcança o Distrito Industrial, cinco quilômetros antes da cidade, proporciona uma bela visão da silhueta urbana, que se alteia sobre o horizonte de colinas suaves dos Campos Gerais. Uma visão que já inspirou muitos viajantes, de hoje e de antigamente, a traduzir em belas palavras o sentimento de acolhida e de boas-vindas daqueles que divisam a Princesa dos Campos, seja ela o lar ou uma passagem de um percurso maior.

Mas neste último sábado, 7 de setembro de 2024, o sentimento de alegria do retorno ao generoso lar foi-nos substituído por outro: de desolação, de preocupação. Quase não se via a silhueta da cidade, embaçada pela densa e esbranquiçada névoa seca, um eufemismo para a fumaça vinda das insanas queimadas na Amazônia e no Pantanal. Que paradoxo! Os chamados “rios voadores”, que trazem a umidade da Amazônia para dessedentar e fertilizar o Sul e Sudeste do Brasil, agora trazem fumaça! Junto com massas de ar quente e seco, que subvertem a normalidade climática.

O impacto visual não chega sozinho: a água da pífia chuva da semana anterior, que coletamos no quintal, que escorreu pelos telhados, ficou enegrecida com a fuligem finíssima depositada pela névoa seca; a população é acometida de um surto de doenças respiratórias, e já não se encontram umidificadores nas lojas especializadas; os agricultores anunciam colheitas antecipadas e perda de safras; o preço de alguns produtos, tais como açúcar, feijão e carne, ficam mais caros em consequência das queimadas e da seca; a tarifa da energia elétrica sobe para o vermelho, pelo imperativo de ativar as caras e poluentes termelétricas...

Estaremos já vivendo o anunciado apocalipse, resultante da desmedida incúria humana, que incendeia as florestas que são a fonte da vitalidade de grande parte do Brasil? E estes sinais ambientais de nossa insensatez vêm acompanhados de outros: o endeusamento do dinheiro e do mercado; a mentira mais crível que a verdade; o egoísmo suplantando a solidariedade; a tolerância rendendo-se aos extremismos; as guerras de extermínio e de dominação; a boçalidade de homens e mulheres candidatos a parlamentares e governantes; a falência da democracia representativa transformada em plutocracia; a fé convertida em mercadoria; os milhões de refugiados da fome e da violência mundo afora...

Vivemos um momento em que a barbárie está superando a civilização. Urge uma mudança drástica, uma revolução, antes que a espécie humana cometa sua autoextinção e a devastação das condições da Terra suportar a vida. Não é uma revolução nos sistemas políticos, econômicos ou sociais. Estes são só o espelho da conduta humana. A revolução inadiável é no comportamento humano. Se lograrmos transformá-lo, tudo se beneficiará. Sim, somos seres muito complexos. Convivem em nosso íntimo contraditórios impulsos de destruição e de construção, de competição e de solidariedade, de violência e de paz, de cupidez e de generosidade. É a hora de escolhermos os impulsos construtivos, amorosos.

A engenhosidade da humanidade é caprichosa: ela pode criar novas plantas alimentícias, curar doenças, enviar-nos à Lua, ou pode dizimar-nos numa guerra nuclear, deteriorar as águas, os solos, o clima... Dilemas que precisam ser resolvidos com ética, com solidariedade.

Ou não será possível reverter a catástrofe que estamos cultivando.

domingo, 18 de agosto de 2024

A rede transnacional de desinformação e dominação

 Publicado no Jornal da Manhã em 20/08/2024.

Elon Musk, o dono da Twitter/X, diz que vai fechar o escritório da empresa no Brasil. Não quer deixar que algum funcionário seu no país possa ser responsabilizado por crimes de incitação à mentira, à violência e aos atos antidemocráticos. De outro lado, sem conseguir provar, autoridades venezuelanas cogitam que a pirataria digital vinda da Macedônia do Norte (!), que transformou em imbróglio mundial o resultado da eleição no vizinho sul-americano, tenha sido comandada pelas empresas de Musk. E é bom se perguntar: quais foram as fontes dos jornalões da grande mídia brasileira que revelaram tratativas entre TSE e TSF na CPI das fake news, na tentativa de desacreditar o ministro Alexandre de Moraes? O qual decidiu denunciar formalmente Elon Musk e sua empresa por descumprimento de ordens judiciais a respeito de contas que veiculam mentiras e ataques contra a democracia e o governo?

Não há dúvida, há uma rede transnacional de pirataria digital e de desinformação. Antes, no Brasil, já tivemos pelo menos um caso relevante: a arapongagem das comunicações da Presidenta Dilma, que contribuíram para o golpe que a depôs. Qual o objetivo dessa nefasta rede, da qual Elon Musk e suas empresas são só um de muitos tentáculos? Basta ver estes poucos casos aqui citados: objetiva a impunidade de crimes contra a democracia no Brasil; objetiva desestabilizar o governo que tenta manter a Venezuela um país soberano frente à voracidade do império; objetivou derrubar um governo no Brasil – o de Dilma – que também tinha a intenção de livrar o país de grilhões do império. A conclusão óbvia é que a rede transnacional está a serviço de reforçar o imperialismo hegemônico dos EUA.

A grande rede transnacional tem seus tentáculos regionais. No Brasil, mesmo na imprensa menor, há um orquestrado sistema de desinformação e de oposição ao governo federal que tenta libertar o país de históricos laços do colonialismo. Não vamos nos enganar: o governo federal atual tem viés social e soberano. Empenha-se em transformar o país numa grande nação, independente do imperialismo, e em prol do bem-estar de toda a população, reduzindo os abismos sociais. Quem não enxerga assim, precisa procurar rever suas fontes de informação e seus preconceitos. A oposição, ao contrário, quer desunir a população e tornar o país mais frágil e vulnerável à rapinagem internacional.

Mesmo na imprensa menor tem-se visto artigos com títulos que dizem que as contas do governo estão erradas, que a reforma fiscal vai prejudicar os mais pobres, que a justiça indevidamente tenta punir os criminosos midiáticos. Amiúde os autores de tais artigos assinam com endereços institucionais, que só fazem reforçar que se trata de um orquestrado sistema para desacreditar o governo federal.

A população que permanece iludida pelos detratores do atual governo concretiza o Hino Nacional no seu dizer: “Deitado eternamente em berço esplêndido”. Não deixaremos de ser colônia submissa, talvez ajoelhada, e não deitada, enquanto não conseguirmos discernir entre quem deseja um Brasil justo e soberano, e quem deseja uma população desunida, uma sociedade injusta e um grande país subjugado.

sábado, 3 de agosto de 2024

A mídia e o imbróglio venezuelano

 Publicado no Jornal da Manhã em 06/08/2024.

O que está de verdade acontecendo na Venezuela após a eleição de 28 de julho passado? Garimpando o que parecem ser os fatos, principalmente na mídia dita alternativa, consegue-se saber alguma coisa: as apurações começaram normais, as tais atas eram divulgadas regularmente, e davam vitória à oposição; um ataque hacker vindo da Macedônia do Norte (!!!!) interferiu no sistema de apuração, impedindo a divulgação das atas restantes, a grande maioria; as primeiras atas divulgadas eram de redutos oposicionistas, elas não permitiam uma projeção dos resultados; mesmo sem as atas, o governo declarou a vitória de Maduro, aparentemente baseando-se nos boletins de urnas, mas sem as atas que os confirmassem; a oposição alegou fraude, afirmou que o resultado anunciado era falso; EUA e seus aliados, principalmente a Europa Ocidental, reconheceram a vitória da oposição; Rússia, China e outros reconheceram a vitória de Maduro; Brasil, México, Colômbia e outros esperam pela divulgação das atas para enfim se manifestarem sobre a eleição.

Mas faltam muitas informações verídicas nesse imbróglio! Quem promoveu o ataque hacker a partir da Macedônia do Norte? Elon Musk? A quem esse ataque interessava? Como podem EUA e outros reconhecerem a alegada vitória da oposição? Com base em que dados? E como podem Rússia e China reconhecerem a anunciada vitória de Maduro? Por quais motivos não nos chegam dados seguros do que realmente aconteceu?

Não é novidade que os EUA sabotam o governo e a estabilidade venezuelanos, desde que nosso vizinho sul-americano assumiu o controle do petróleo do país, as maiores reservas do mundo da principal fonte de energia. Não é novidade que os EUA patrocinam, direta ou indiretamente, a sabotagem de governos e países que tentam manter-se soberanos, sem submeter-se ao mando da nação que perpetrou o maior ato terrorista da história: as bombas de Hiroshima e Nagasaki. Não é novidade que os EUA promovem guerras, golpes e lawfares (Vietnam, Irã, Coréia, Chile, Iraque, Cuba, Argentina, Afeganistão, Líbia, Síria, Paraguai, Brasil, Ucrânia, Palestina...) para proteger seus interesses econômicos e geopolíticos, favorecendo suas transnacionais e o deus mercado. Não é novidade que o “espectro da total dominação”, a ambição estadunidense de ser uma potência hegemônica, conduz à desinformação, à ignorância e ao extremismo, que engendra regimes autoritários mundo afora.

E a grande mídia, o que tem feito? Aqui entre nós, só se vê uma servil vassalagem à desinformação, que interessa aos EUA e seus agregados. Não se consegue ter acesso a duas opiniões. Só a opinião de que Maduro é um ditador, a Venezuela uma ditadura, a eleição uma fraude. Que vergonhoso papel da grande mídia e seus profissionais. Poderiam ao menos dar voz aos dois lados do imbróglio; não o fazem porque não estão comprometidos com a verdade, mas sim com alinhamentos fisiológicos que vêm de longe.

O imbróglio na Venezuela está personificando hoje os absurdos a que a ambição hegemônica dos EUA, e a subserviência da grande mídia, podem conduzir.

domingo, 14 de julho de 2024

A esquerda pó de arroz

 Publicado no Jornal da Manhã em 17/07/2024.

Primeiro, temos de relembrar o significado de “esquerda”: na Assembleia Nacional que assumiu o poder após a Revolução Francesa, no final do século XVIII, tomavam lugar à esquerda do seu presidente aqueles que ganhavam seu sustento com o próprio trabalho. Eles eram partidários da revolução e do fim da monarquia. À direita, tomavam lugar ricos negociantes, empreendedores, empregadores, proprietários de terras e de bens: os burgueses. Eles eram leais à monarquia. Resumindo, era já o embate trabalho x capital.

E a expressão tão brasileira “pó de arroz”? Ela tem história bem controvertida, mas aceita-se que resulte da mistura de conflitos raciais, sociais e futebolísticos, no início do século XX, no futebol carioca: em alguns times mais racistas, os jogadores negros e pardos usavam o pó de arroz para branquear a pele; tentavam assim ser menos discriminados pela cartolagem e pelos torcedores racistas. Afinal, tratava-se do aristocrata esporte bretão, importado das elites da Inglaterra.

O pó de arroz tinha então dois significados: para quem o usava, era uma tentativa de ser aceito pelos racistas, e assim poder praticar sua arte; para os racistas que o viam, e sabiam que era uma maquiagem, era uma maneira de driblar o próprio preconceito. Uma hipocrisia, para perdoar os próprios instintos racistas. E para franquear a manifestação da paixão nacional: o futebol. Atualmente, as lutas por igualdade racial afastaram o uso do pó de arroz. Mas são feridas abertas, o racismo ainda não foi superado.

Aliás, como bem destacou o músico e literato José Miguel Wisnik em seu livro “Veneno remédio: o futebol e o Brasil” (Cia. das Letras, 2008), o futebol é o único esporte que para o planeta! Porque é esporte popular, que pode ser praticado na praia ou na várzea, e no qual os resultados são muitas vezes imprevisíveis. Não é o mais rico que ganha sempre, como nos esportes dos poderosos. Amiúde prevalece a raça, a alma, a atitude. Ou pelo menos era assim até pouco tempo atrás, quando o deus dinheiro ainda não tinha estendido seu manto também sobre o futebol.

Há mais de dois séculos, quando se consolidou a Revolução Industrial, a luta trabalho x capital vem se acirrando, e produzindo seus frutos: hiperconsumismo, concentração da riqueza, disseminação da pobreza, crises sociais, éticas, ideológicas, políticas, ambientais, de segurança...

Bem recentemente, fala-se em direita e esquerda radicais. É fácil enxergar a direita radical: ela se manifesta no fascismo, na truculência, no autoritarismo, no negacionismo, na desinformação, que levam ao caos, à ignorância, à guerra... E o que é a esquerda radical? Aqui muito cuidado: não confundir esquerda autêntica com esquerda radical. Existem sim aqueles radicais que condenam o sistema, e até defendam fazê-lo de forma arbitrária e violenta. Mas tais radicais não podem ser chamados de esquerda, se são conduzidos por impulsos pessoais e não causas coletivas, de classe. A esquerda autêntica comunga com as aspirações da classe de trabalhadores, secularmente explorada pela direita dona do capital.

E a esquerda pó de arroz? É possível a esquerda disfarçar-se para não sofrer a repulsa e o preconceito da direita? Não! Convicção política não é o mesmo que futebol. Hoje, até o futebol nos ensina: os negros afirmam sua negritude numa luta sem cessar pelo reconhecimento de sua identidade.

A esquerda precisa aprender com o futebol, e firmar-se na luta de classes com sua identidade e autenticidade. Tem que abandonar o clientelismo, o corporativismo e o fisiologismo interno, que são marcas da direita. Ainda que isso signifique reveses momentâneos nas urnas. A firmeza de ideais e a perseverança hão de mostrar à população que urge a humanidade encontrar formas mais justas de distribuir a riqueza que o trabalho produz e de incluir socialmente os trabalhadores. Senão, em breve será o colapso. Não é possível fazer de conta que não existe a luta de classes. Na verdade, guerra de classes.

A esquerda autêntica tem que mostrar e defender seus princípios. Se for uma esquerda “pó de arroz”, só vai implodir-se e prolongar o injusto sistema que vivemos.

domingo, 30 de junho de 2024

O que há de errado nas finanças do Governo

 Publicado no Jornal da Manhã em 02/07/2024.

Outro dia vi, no espaço destinado ao leitor de jornal de Ponta Grossa, o artigo “Há algo de muito errado nas finanças do Governo”, de autoria de renomado jurista brasileiro. No artigo, os erros são diagnosticados pelo tamanho da dívida pública, pela falta de confiança do empresariado brasileiro, pela alta do dólar e queda da bolsa, e até pela malograda importação de arroz para fazer frente à tragédia no Rio Grande do Sul.

Não sou nem renomado jurista, nem analista financeiro, mas sinto-me obrigado a manifestar minha opinião sobre o tema. Primeiro, o tamanho da dívida não é nenhum absurdo. Todos os países trabalham com dívidas. Os EUA, país imperialista idolatrado pelos financistas brasileiros, têm dívida proporcional ao PIB muito maior que o Brasil. Segundo, interessa aos rentistas e especuladores uma dívida alta, pois eles são os credores dessa dívida, e recebem – sem pagar impostos – um dos maiores juros do planeta. Estes juros altos, estabelecidos pelo preposto dos rentistas na presidência do Banco Central, são os maiores responsáveis pela dívida pública do País. E, como dizem economistas fidedignos, gasto governamental com infraestrutura, que aumenta a dívida, não é gasto, é investimento. Que gera empregos, distribuição de renda, aumento da arrecadação, bem-estar social e prosperidade da Nação.

A alegada falta de confiança do empresariado brasileiro, anunciada em nota de repúdio divulgada na imprensa, merece questionamento. A elite do empresariado brasileiro merece confiança? Não há analistas que dizem que é uma elite ainda ressentida por não ter sido indenizada pela abolição da escravatura, e ainda enxerga o trabalhador como mão de obra a ser explorada e tratada como coisa? A elite tem dado várias demonstrações de que não pensa no País, mas pensa em seus lucros. É assim na sabotagem econômica dos governos, na participação em privatizações vergonhosas, nas operações destinadas a manipular o dólar e a bolsa, na sempre presente maciça campanha contra os governos socialistas, e não neoliberais, na sonegação de impostos.

A alta do dólar e a queda da bolsa são resultado de ataques desse ser impessoal, nervoso e idiossincrático, que é o mercado. Manipulado pelas especulações das elites econômicas. O mercado responde ao deus lucro, e não a princípios e ética humanizadas. O mercado é um deus antropófago, que devora seres humanos para gerar riqueza cada vez mais concentrada, nas mãos de poucos já locupletados tiranos.

A malograda importação de arroz parece ter sido mesmo um erro. Prontamente corrigido pelo Governo. Ele também comete erros! Como todo Governo, como todo ser humano. Errar é humano. A reação ao erro é que faz a diferença. Os rentistas, os críticos do Governo socialista – este empenhado em diminuir o abismo econômico da sociedade – vêm errando há muito tempo, e não aprendem: só fazem recrudescer o erro. E assim desencadeiam as muitas crises que vivemos hoje: sociais, econômicas, ambientais, éticas, religiosas, sanitárias, de segurança...

O que há de errado nas finanças do País é a elite econômica atrasada, que não abre mão de seus ganhos escorchantes. E usa seu porta-voz – a grande mídia – para lograr a população. Passos para a solução são a diminuição dos juros (taxa Selic), taxação dos juros da dívida, imposto de renda progressivo para os mais ricos, taxação de fortunas e heranças, investimento em infraestrutura, criação de empregos e distribuição de renda.

sexta-feira, 14 de junho de 2024

O espelho da ignorância humana

 Publicado no Jornal da Manhã em 14/06/2024.

Vi esta expressão num disseminado vídeo desse veneno remédio que é o advento das mídias sociais. O “espelho da ignorância humana” referia-se à boçalidade, ao ultradireitismo e neonazismo, que parecem estar tomando conta do planeta. Marcas desse desvario da humanidade são muitas: as ondas de refugiados pelo mundo; as hipocrisias que cercam a guerra na Ucrânia e o genocídio na Palestina; os desastres que não são naturais, como o do Rio Grande do Sul, pois resultam da insanidade do aquecimento global provocado pelo homem; o empenho bélico e econômico de dominação hegemônica do planeta...

A mais tradicional revista alemã, o Der Spiegel, em edição de maio passado, estampa na capa a bandeira do país europeu marcada pela suástica nazista, e faz a inevitável pergunta: “Não aprendeu nada?”. Toda a Europa está de novo sofrendo um surto de barbárie e totalitarismo, o mesmo que a assolou na primeira metade do Século XX. E não é só a Europa que se desumaniza. Não aprendemos nada?

Outro dia, enquanto fazia uma compra num modesto comércio da cidade de Ponta Grossa, deparei-me com três homens, um deles sócio proprietário do local, o outro um freguês idoso, abonado, raivoso e desocupado, o terceiro um peão muito humilde. Conversavam quase aos berros, desqualificando e crucificando o governo atual e seus representantes. Seus supostos argumentos vinham dos intestinos das desinformações que infectam as mídias sociais. Compartilhavam e reforçavam ignorância.

Decerto o governo atual e seus membros têm coisas criticáveis, tal como qualquer ser humano e qualquer governo as tem. Mas o que traduziam as bravatas daqueles homens ruidosos? Veio-me a expressão: “O espelho da ignorância humana”. Só consegui dizer a eles que eu acredito e dou apoio a esse governo que eles criticavam. Porque é um governo que representa a solidariedade, o esforço de ser mais justo com a distribuição das riquezas e com as oportunidades oferecidas. Prioridades deste mundo atual, com oito bilhões de almas, doutrinadas dia e noite para o consumismo, a ignorância, a competição, a supremacia, a intolerância...

Disseram então que “eles” – os governantes odiados que eles crucificavam – estavam querendo nivelar por baixo; a pobreza compartilhada. Mas mudaram um pouco o tom das críticas, elas passaram a ser mais genéricas, impessoais, não nominais. Pareciam reconhecer, no íntimo, que seus argumentos e acusações eram caluniosos e vergonhosos. Senti que esperavam que eu me retirasse para incluir-me em suas críticas viscerais, não racionais. Na hora não tive a presença de espírito de dizer-lhes que, se a riqueza produzida no mundo fosse fraternalmente compartilhada, não haveria miséria, nem sofrimento. Todos teriam bem-estar, dignidade e segurança.

A ignorância está sendo prosperamente cultivada entre nós. É preciso acordar desse mórbido transe coletivo, desse pesadelo que acomete a humanidade. É preciso recuperar o que existe de humano em nós.

Discernimento e solidariedade são qualidades que distinguiram o Homo sapiens das demais espécies, fizeram-nos prosperar. Parece que estamos perdendo essas qualidades para a desinformação e a doutrinação.

Será que, ao contrário de evoluirmos, voltaremos a nos equiparar aos nossos ancestrais selvagens?