domingo, 14 de julho de 2024

A esquerda pó de arroz

 Publicado no Jornal da Manhã em 17/07/2024.

Primeiro, temos de relembrar o significado de “esquerda”: na Assembleia Nacional que assumiu o poder após a Revolução Francesa, no final do século XVIII, tomavam lugar à esquerda do seu presidente aqueles que ganhavam seu sustento com o próprio trabalho. Eles eram partidários da revolução e do fim da monarquia. À direita, tomavam lugar ricos negociantes, empreendedores, empregadores, proprietários de terras e de bens: os burgueses. Eles eram leais à monarquia. Resumindo, era já o embate trabalho x capital.

E a expressão tão brasileira “pó de arroz”? Ela tem história bem controvertida, mas aceita-se que resulte da mistura de conflitos raciais, sociais e futebolísticos, no início do século XX, no futebol carioca: em alguns times mais racistas, os jogadores negros e pardos usavam o pó de arroz para branquear a pele; tentavam assim ser menos discriminados pela cartolagem e pelos torcedores racistas. Afinal, tratava-se do aristocrata esporte bretão, importado das elites da Inglaterra.

O pó de arroz tinha então dois significados: para quem o usava, era uma tentativa de ser aceito pelos racistas, e assim poder praticar sua arte; para os racistas que o viam, e sabiam que era uma maquiagem, era uma maneira de driblar o próprio preconceito. Uma hipocrisia, para perdoar os próprios instintos racistas. E para franquear a manifestação da paixão nacional: o futebol. Atualmente, as lutas por igualdade racial afastaram o uso do pó de arroz. Mas são feridas abertas, o racismo ainda não foi superado.

Aliás, como bem destacou o músico e literato José Miguel Wisnik em seu livro “Veneno remédio: o futebol e o Brasil” (Cia. das Letras, 2008), o futebol é o único esporte que para o planeta! Porque é esporte popular, que pode ser praticado na praia ou na várzea, e no qual os resultados são muitas vezes imprevisíveis. Não é o mais rico que ganha sempre, como nos esportes dos poderosos. Amiúde prevalece a raça, a alma, a atitude. Ou pelo menos era assim até pouco tempo atrás, quando o deus dinheiro ainda não tinha estendido seu manto também sobre o futebol.

Há mais de dois séculos, quando se consolidou a Revolução Industrial, a luta trabalho x capital vem se acirrando, e produzindo seus frutos: hiperconsumismo, concentração da riqueza, disseminação da pobreza, crises sociais, éticas, ideológicas, políticas, ambientais, de segurança...

Bem recentemente, fala-se em direita e esquerda radicais. É fácil enxergar a direita radical: ela se manifesta no fascismo, na truculência, no autoritarismo, no negacionismo, na desinformação, que levam ao caos, à ignorância, à guerra... E o que é a esquerda radical? Aqui muito cuidado: não confundir esquerda autêntica com esquerda radical. Existem sim aqueles radicais que condenam o sistema, e até defendam fazê-lo de forma arbitrária e violenta. Mas tais radicais não podem ser chamados de esquerda, se são conduzidos por impulsos pessoais e não causas coletivas, de classe. A esquerda autêntica comunga com as aspirações da classe de trabalhadores, secularmente explorada pela direita dona do capital.

E a esquerda pó de arroz? É possível a esquerda disfarçar-se para não sofrer a repulsa e o preconceito da direita? Não! Convicção política não é o mesmo que futebol. Hoje, até o futebol nos ensina: os negros afirmam sua negritude numa luta sem cessar pelo reconhecimento de sua identidade.

A esquerda precisa aprender com o futebol, e firmar-se na luta de classes com sua identidade e autenticidade. Tem que abandonar o clientelismo, o corporativismo e o fisiologismo interno, que são marcas da direita. Ainda que isso signifique reveses momentâneos nas urnas. A firmeza de ideais e a perseverança hão de mostrar à população que urge a humanidade encontrar formas mais justas de distribuir a riqueza que o trabalho produz e de incluir socialmente os trabalhadores. Senão, em breve será o colapso. Não é possível fazer de conta que não existe a luta de classes. Na verdade, guerra de classes.

A esquerda autêntica tem que mostrar e defender seus princípios. Se for uma esquerda “pó de arroz”, só vai implodir-se e prolongar o injusto sistema que vivemos.

3 comentários:

  1. Já está se dissolvendo a olhos vistos .

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  2. esse embate esquerda x direita se perdeu no tempo. A direita conseguiu criar uma massa de alienados e desinformados que sem nenhuma consciencia politica faz do voto que seria sua arma principal um mero exercicio de pobreza mental, as vezes ate votando nos candidatos mais poderosos ou com melhor aparencia.
    Se não tivermos uma revolução na educação (e isso leva tempo) o fosso so aumentara.
    abs. Carlos SA

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  3. A esquerda e a direita são produtos de uma visão de sociedade e de mundo. Sempre vão existir.

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