domingo, 2 de março de 2025

TVI – Transtorno da Voracidade Insaciável

  Publicado no Jornal da Manhã em 06/03/2025.

Não, não se trata da voracidade alimentar. Se bem que ela também ande merecendo boas reflexões sobre suas causas e consequências, para a saúde pessoal e social. Também não se trata de algum quadro clínico descrito por psicanalistas ou profissionais de saúde, pelo menos não que eu saiba. Trata-se sim de uma invenção para dar pretexto para abordar uma doença que parece estar acometendo nossa civilização, cada um de nós: a insaciável voracidade de poder, notoriedade e de ganho financeiro ou material.

Vendo o livro “O despertar de tudo – uma nova história da humanidade” (de David Graeber e David Wengrow, Companhia das Letras, 2021), nos convencemos que há muito tempo o desenvolvimento da inteligência e da sofisticação humanas vem acompanhado do crescimento do TVI. Muito agudamente, desde pelo menos 10.000 anos atrás, quando a agricultura, a irrigação, as primeiras cidades propiciaram os excedentes de grãos e a noção de propriedade. Desde então, estoques e cultivos significaram posses a negociar, ou bens alheios a serem saqueados.

Os autores mostram que até menos de dois séculos atrás, antes da conclusão do extermínio ou total catequese das culturas nativas ameríndias, ainda existiam sociedades que não conheciam o dinheiro, e estranhavam como os invasores europeus precificavam bens essenciais à sobrevivência da comunidade. Já na nossa civilização globalizada, ficamos na dúvida se o ar puro e a luz solar também já não estejam sendo precificados. De resto, tudo já o foi.

10.000 anos pode parecer-nos muito tempo, mas diante da evolução das espécies, inclusive do autodenominado Homo sapiens, não é. Nossos ancestrais são reconhecidos como tal desde cerca de 300.000 anos atrás. É como se fosse o último ano de quem já viveu outros 30. Mas mudamos demais nestes últimos 10.000 anos. Mudamos nas coisas que inventamos. Será que mudamos na estrutura emocional e psíquica, na capacidade de discernimento, naquilo que é de verdade necessário para que uma população de mais de oito bilhões de seres seja capaz de sobreviver, sem destruir os suportes à vida que o planeta é capaz de suprir e sem nos autodestruir?

Temos aprendido com o tempo, temos nos adaptado. O TVI é só um sinal de que estamos sempre nos reequilibrando diante de desajustes que nós mesmos, a humanidade, criamos. A inescapável obrigação das espécies estarem em constante busca do equilíbrio consigo mesmas e com o meio que habitam. Senão, fenecem, extinguem-se. Dão lugar a novas espécies, melhor adaptadas. Será que seremos capazes de superar o TVI?

O Homo sapiens tem uma singularidade, celestial e infernal, que o distingue das demais espécies: a engenhosidade. Inventamos incomparavelmente. Coisas para salvar, libertar, destruir, dominar. Tudo transformado em coisas para mercadejar. Temos engenhosidade, nos falta a inteligência de saber usá-la. Por enquanto, o TVI tem nos conduzido às muitas crises atuais: ambiental, sanitária, política, social, econômica, ética, religiosa... A humanidade está doente. Nós, seres humanos, estamos doentes. Todos nós, alguns mais, outros menos, somos portadores do TVI. Não é só a avareza dos bilionários, é também a corrupção e a desonestidade disseminadas, o hiperconsumismo, o desperdício, o imperialismo, a beligerância, o fundamentalismo, a intolerância, a soberba, o narcisismo...

Oxalá sejamos capazes de nos curar do Transtorno da Voracidade Insaciável.

Um comentário:

  1. O que parece estar no radar da Humanidade é se tornar capaz de se superar nesse transtorno. Como se tivesse concorrência até nisso.

    ResponderExcluir

Aos leitores do blog que desejarem postar comentários, pedimos que se identifiquem. Poderão não ser postados comentários sem identificação.