Publicado no Jornal da Manhã em 06/03/2025.
Não, não se trata da voracidade alimentar. Se bem que ela
também ande merecendo boas reflexões sobre suas causas e consequências, para a
saúde pessoal e social. Também não se trata de algum quadro clínico descrito
por psicanalistas ou profissionais de saúde, pelo menos não que eu saiba. Trata-se
sim de uma invenção para dar pretexto para abordar uma doença que parece estar
acometendo nossa civilização, cada um de nós: a insaciável voracidade de poder,
notoriedade e de ganho financeiro ou material.
Vendo o livro “O
despertar de tudo – uma nova história da humanidade” (de David Graeber e
David Wengrow, Companhia das Letras, 2021), nos convencemos que há muito tempo
o desenvolvimento da inteligência e da sofisticação humanas vem acompanhado do
crescimento do TVI. Muito agudamente, desde pelo menos 10.000 anos atrás,
quando a agricultura, a irrigação, as primeiras cidades propiciaram os
excedentes de grãos e a noção de propriedade. Desde então, estoques e cultivos
significaram posses a negociar, ou bens alheios a serem saqueados.
Os autores mostram que até menos de dois séculos atrás,
antes da conclusão do extermínio ou total catequese das culturas nativas ameríndias,
ainda existiam sociedades que não conheciam o dinheiro, e estranhavam como os
invasores europeus precificavam bens essenciais à sobrevivência da comunidade.
Já na nossa civilização globalizada, ficamos na dúvida se o ar puro e a luz
solar também já não estejam sendo precificados. De resto, tudo já o foi.
10.000 anos pode parecer-nos muito tempo, mas diante da
evolução das espécies, inclusive do autodenominado Homo sapiens, não é. Nossos ancestrais são reconhecidos como tal
desde cerca de 300.000 anos atrás. É como se fosse o último ano de quem já
viveu outros 30. Mas mudamos demais nestes últimos 10.000 anos. Mudamos nas coisas
que inventamos. Será que mudamos na estrutura emocional e psíquica, na
capacidade de discernimento, naquilo que é de verdade necessário para que uma
população de mais de oito bilhões de seres seja capaz de sobreviver, sem
destruir os suportes à vida que o planeta é capaz de suprir e sem nos
autodestruir?
Temos aprendido com o tempo, temos nos adaptado. O TVI é só
um sinal de que estamos sempre nos reequilibrando diante de desajustes que nós
mesmos, a humanidade, criamos. A inescapável obrigação das espécies estarem em
constante busca do equilíbrio consigo mesmas e com o meio que habitam. Senão,
fenecem, extinguem-se. Dão lugar a novas espécies, melhor adaptadas. Será que
seremos capazes de superar o TVI?
O Homo sapiens
tem uma singularidade, celestial e infernal, que o distingue das demais
espécies: a engenhosidade. Inventamos incomparavelmente. Coisas para salvar, libertar,
destruir, dominar. Tudo transformado em coisas para mercadejar. Temos
engenhosidade, nos falta a inteligência de saber usá-la. Por enquanto, o TVI
tem nos conduzido às muitas crises atuais: ambiental, sanitária, política,
social, econômica, ética, religiosa... A humanidade está doente. Nós, seres
humanos, estamos doentes. Todos nós, alguns mais, outros menos, somos
portadores do TVI. Não é só a avareza dos bilionários, é também a corrupção e a
desonestidade disseminadas, o hiperconsumismo, o desperdício, o imperialismo, a
beligerância, o fundamentalismo, a intolerância, a soberba, o narcisismo...
Oxalá sejamos capazes de nos curar do Transtorno da
Voracidade Insaciável.
O que parece estar no radar da Humanidade é se tornar capaz de se superar nesse transtorno. Como se tivesse concorrência até nisso.
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