sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Conferência Municipal do Meio Ambiente de Ponta Grossa

 Publicado no Jornal da Manhã em 14/11/2024.

Ponta Grossa realiza, nos dias 21 e 22 deste mês, a 5ª Conferência Municipal do Meio Ambiente, nas dependências da UTFPR-PG. Tendo sido professor de Meio Ambiente e Sustentabilidade na UEPG por 15 anos, venho antecipar alguns temas que creio essenciais e que devem ser tratados no evento. São temas com relevância local, mas que estão estreitamente relacionados com os temas globais conectados com a emergência climática e suas consequências.

O primeiro tema é a questão dos recursos hídricos. Os mananciais superficiais dependem das chuvas, estas cada vez mais imprevisíveis. A água é mundialmente considerada o “ouro azul” do século XXI, crises hídricas serão inevitáveis. É necessário que o município gestione com firmeza a proteção de  seus mananciais, tanto as bacias hidrográficas – os mananciais superficiais – quanto as áreas de recarga do Aquífero Furnas – os mananciais subterrâneos –. As áreas de recarga do aquífero são as áreas de afloramento do Arenito Furnas, na parte leste do município. No caso, o que define a extensão da área a ser protegida é a área de ocorrência da unidade geológica, que ultrapassa o limite da bacia hidrográfica.

O segundo tema, é a proteção e efetiva implantação das unidades de conservação dentro do município. Destacam-se o Parque Nacional dos Campos Gerais, a APA – Área de Proteção Ambiental – da Escarpa Devoniana e o Parque Estadual de Vila Velha. Só não defende as UC’s quem é movido pela cupidez do lucro rápido e pela desfaçatez ambiental. É a ignorância de ainda não ter compreendido os vitais serviços ambientais prestados pelas UC’s: equilíbrio da biodiversidade e controle de pragas e polinizadores; regularização do ciclo hidrológico e preservação dos mananciais hídricos; consequente preservação da qualidade e produtividade dos solos agrícolas; retenção do carbono do solo e da biomassa, redução das emissões de gases estufa e equilíbrio do clima; proteção de patrimônio natural único para pesquisas científicas, educação e lazer junto à natureza. No caso de Ponta Grossa, a proteção das UC’s tem estreita relação com a proteção dos mananciais hídricos, tanto os superficiais quanto os subterrâneos. Um cuidado capital é que não se confundam unidades de conservação com destinos turísticos desregrados. A função ambiental, científica e educacional deve ser sempre prioritária em relação à função turismo e lazer.

O terceiro tema tem a ver com os arroios urbanos. Urge saneá-los. Ponta Grossa tem um sítio urbano peculiar: o centro e os principais eixos radiais da cidade situam-se em áreas elevadas. Deles diverge uma rede hidrográfica com vários arroios: Grande, Pilão de Pedra, Cará-Cará, Olarias, Ronda, Gertrudes – afluentes dos rios Verde, Pitangui e Tibagi. Esta particularidade coloca várias questões: altos bem urbanizados distando poucas dezenas de metros de encostas e fundos de vale caóticos; várias estações de tratamento de esgotos, uma para cada arroio. Ademais, a cidade é antiga: a captação de esgotos amiúde é feita indevidamente na rede pluvial, que os despeja diretamente na rede de drenagem. Por esse motivo os arroios da cidade ainda são poluídos, embora se alegue que ela seja uma das mais bem saneadas do país. É necessário um minucioso trabalho de verificação da destinação correta dos esgotos.

Que a 5ª Conferência Municipal do Meio Ambiente logre lançar as sementes de um futuro ambiental sadio para a cidade.

domingo, 10 de novembro de 2024

Envelhecimento: madurez ou azedume?

 

Dizem que o vinho quanto mais velho melhor. Será? Não é bem assim. O vinho de boa qualidade pode ser. O de má qualidade, azeda, vira vinagre. Mesmo o de boa qualidade, o envelhecimento tem que ser acertado: sem mudanças de temperatura, sem luz, sem sacolejos, sem trocas de fluidos através da rolha. E ainda, na hora de degustar, depois de desarrolhar, aguardar o tempo certo necessário para uma decantação ideal.

Dizem também que a amizade é como o vinho. Então valem para a amizade as mesmas ressalvas que valem para o vinho. E dizem também que o envelhecimento das pessoas é como o do vinho: traz a maturidade, a emancipação do ser humano, que com o passar dos anos livra-se de muitas das opressoras e hipócritas convenções de nossa sociedade. Ah, aqui não se têm dúvidas: se a velhice humana é comparável ao envelhecimento do vinho, pelos resultados – velhos ora sábios, ora amargurados ranzinzas, ora soberbos, ora alienados – deduzimos que por certo há os de boa e os de má cepa, há os que não tiveram o envelhecer – o decorrer da vida – que propiciasse um amadurecimento adequado.

Gosto de compartilhar um exemplo marcante da Geologia para exemplificar a velhice tão cheia de ranços e presunções, que nada se pode atribuir-lhe de sábia. A teoria geológica mais aceita até meados do século XX era a “teoria geossinclinal”, que vinha sendo aperfeiçoada há mais de cem anos. Ela explicava a ocorrência de fósseis marinhos no alto das grandes cadeias montanhosas admitindo movimentos verticais da superfície terrestre: ora depressões invadidas por mares, seguidas de soerguimentos formando as cadeias de montanhas. Essa teoria prevaleceu até depois da segunda guerra mundial. Cursei a graduação em Geologia na USP de 1971 a 1975, e boa parte de meus professores ainda era adepta da teoria geossinclinal.

Mas desde 1915, um jovem geocientista alemão, Alfred Wegener, então com 35 anos de idade, já publicava artigos e defendia em encontros científicos uma hipótese alternativa à teoria geossinclinal: a “teoria da deriva continental”. Baseado em vários argumentos – nítido ajuste de continentes, tal como entre África e América do Sul, semelhanças dos fósseis, rochas, estruturas geológicas e evidências paleoclimáticas em continentes hoje afastados – Wegener advogou que no passado as terras emersas estavam unidas num único grande continente, a Pangeia. Assim, ao contrário da teoria geossinclinal, a deriva continental falava em movimentos horizontais da crosta terrestre. Mas o jovem geocientista não soube explicar o mecanismo que causaria a desagregação da Pangeia e a deriva de seus fragmentos, as placas tectônicas. Os velhos e catedráticos doutores, que se presumiam os donos da verdade sobre a dinâmica terrestre, condenaram a brilhante teoria de Wegener à ridicularização. Mas, passadas algumas décadas, com as evoluções tecnológicas devidas às duas guerras mundiais, o mapeamento do fundo dos mares e o desenvolvimento das técnicas de datação radiométrica das rochas, as ideias do jovem cientista foram finalmente sendo aceitas.

Atualmente é graças à tectônica de placas que se orientam as prospecções de recursos minerais e energéticos, e se faz a gestão de desastres naturais de natureza geológica. As modelagens apoiadas na teoria são fundamentais. Entretanto, talvez mais que a evolução da ciência, a deriva continental e a moderna tectônica de placas tenham tido que aguardar a morte de uma presunçosa e velha geração de geocientistas, que se considerou ofendida com a revolucionária teoria de Wegener.

Aqueles velhos geocientistas não tinham amadurecido como um bom vinho. Retardaram por meio século a evolução das Geociências.

sábado, 2 de novembro de 2024

O chupim do nosso jardim

 

Nosso jardim da casa na Vila Placidina, em Ponta Grossa, embora pequeno, é um santuário de pássaros. Uma pitangueira, uma caramboleira, uma aceroleira, um pote com água fresca, duas garrafinhas com água adocicada, um prato com alpiste e painço, um comedouro com mamão e bananas, quirera esparramada no chão, os insetos e vermes da terra, vasculhada pelas aves, dão conta de fazer aquele reduzido espaço, perto do centro da cidade, sempre muito cheio de vida. São sanhaços, sanhaços-papa-laranja, sabiás-laranjeira, sabiás-do-campo, sabiás-poca, bem-te-vis, cambacicas, saís-azuis, colibris, avoantes, canários-da-terra, rolinhas, chupins, joões-de-barro, corruíras. Mais raramente guaxos, tiés-sangue, saíras-preciosas e, estranhamente, pardais e tico-ticos; estes dois últimos antes eram comuns, mas passaram a quase não mais serem vistos. Nestes últimos dias, para nossa surpresa, apareceram pela primeira vez um jacuguaçu e uma saracura-do-mato. Pareceu-nos que a natureza anda mesmo desorientada.

É um rico divertimento ficar observando os pássaros, aprendendo seus hábitos e comportamentos. Constata-se que há os que são pacíficos, há os briguentos, há os tímidos. Todos têm preferências alimentares bem definidas. No comedouro de frutas, uma rígida hierarquia: os sabiás-do-campo têm prioridade, e costumam comer em família, até quatro indivíduos; depois vêm, na ordem, os sabiás-laranjeira, os sanhaços e, no final, o tranquilo bem-te-vi, que costuma tolerar os sanhaços enquanto bica as bananas. Sabiás-laranjeira e bem-te-vis sempre vêm sozinhos – salvo quando vem junto um filhote –. Os sanhaços aparecem em até sete indivíduos ao mesmo tempo, quando ruidosas balbúrdias chegam a jogar no chão as frutas do prato. As avoantes e os chupins chegam aos bandos para ciscar a quirera no chão, os canários-da-terra vêm quase sempre aos casais, no prato de alpiste e painço, e também na quirera.

Não sei por qual razão destes tempos desarrazoados, os antes predominantes pardais e tico-ticos têm desaparecido. Uma pardaloca às vezes vem bicar as frutas do comedouro, junto com os sanhaços. Mas o que nos chamou a atenção no início deste ano foi uma extremosa mãe tico-tico, alimentando um filhote de chupim já bem maior que ela. Aparentemente embaraçada em sua transvertida tarefa, ela ora conduzia o filhotão às frutas, ora à quirera no chão, ora ao prato com alpiste e painço. E ele, chiando de protesto, seguia-a obsessivo, abrindo um bico enorme, onde cabia toda a cabeça da mãe adotiva. Uma visão bizarra, às vezes até revoltante. A natureza não se cansa de nos surpreender com suas traquinagens.

Talvez por ser a preferência alimentar dos tico-ticos, era mais comum ver mãe e filhotão no prato de alpiste e painço. Mas, justamente para evitar que os pássaros maiores, tais como as avoantes, rolinhas e os chupins, acabassem com os grãos destinados prioritariamente aos pequenos canários-da-terra, protegi o prato com uma tela de arame com duas aberturas pequenas, que só deixam passar os pássaros menores: não só os canários, mas também os pardais e os tico-ticos. Um graveto fora da tela, junto às aberturas, serve de poleiro para os pássaros. Então, a mãe tico-tico entrava pela abertura, enquanto o filhotão aguardava chiando, protestando, abaixado, tremulando as asas, bico aberto, empoleirado no graveto. A mãe pacientemente entrava e saía pela abertura, levava os grãos do prato para o bico do birrento chupim.

Passados meses, os chupins continuam frequentando a quirera esparramada no chão. No início, só um chupim adulto – que creio ser uma fêmea, por não exibir o brilho azulado típico dos machos – frequenta o prato com alpiste e painço. Ela vem sozinha, pousa no poleiro fora do prato, não consegue passar pela abertura pequena, então enfia a cabeça e alcança alguns grãos mais próximos. De quando em quando, saltita no poleiro, como a sacudir o prato para fazer que mais grãos cheguem ao alcance do seu bico. Engenhosa, parece ter aprendido o método com uma extremosa mãe granívora.

Deduzimos que é o filhotão – então seria filhotona – que víamos meses atrás, agora já um chupim adulto. Resolvemos dar-lhe o nome de Macuna, sincopado de Macunaíma. Apesar da implicância pelo fato de a considerarmos fruto de um cruel parasitismo, ela acabou conquistando nossa simpatia; pela criatividade, pela confiança e assiduidade com que frequenta o prato de grãos e nos diverte com seu engenho.

Mas eis que ela continua nos surpreendendo. Agora, tem vindo acompanhada de um chupim com o característico brilho azulado dos machos. Ela está compartilhando seu aprendizado com um companheiro recente. E dentro em pouco, possivelmente veremos de novo uma extremosa mãe tico-tico visitando o prato de grãos com um filhotão chupim. Nos perguntaremos então se ele será um filho-neto adotivo, fruto das artimanhas da natureza.

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Frei Betto e a mosca azul

 

A mosca azul – reflexão sobre o poder” (Editora Rocco, 2006) é um imperdível livro de Frei Betto (Carlos Alberto Libânio Christo). Apesar de escrito há quase duas décadas, é oportuníssimo para se pensar em como agem nossos dirigentes e o que anda acontecendo em nossa sociedade.

Frei Betto é frade dominicano, jornalista e escritor laureado, ganhador do Prêmio Juca Pato (1985) e do Jabuti, este duas vezes (1982 e 2005). O frei revela no livro que, embora tenha participado do primeiro governo Lula (2003-2004), sua formação religiosa e política foi nas Comunidades Eclesiais de Base e na Pastoral Operária. Ele nunca foi filiado a nenhum partido, mas declara-se um religioso que enxerga que fé e política caminham juntas, e a fé cristã é aquela que Cristo ensinou, repartindo o pão com os pobres.

O livro narra a trajetória dos movimentos populares no Brasil, até a criação do Partido dos Trabalhadores (1980) e a eleição de Lula para o governo federal (2002). Analisa como o sonho de uma sociedade livre e justa no início catalisou expressiva parcela da população brasileira, e como, após a chegada ao poder, a força do sonho inicial foi sendo dissipada pela reação conservadora e por erros ou impossibilidades do governo e do PT: enfoque mais econômico que de ideias e princípios, lideranças desvinculadas da base, divisão entre tendências conflitantes, oportunismo de carreiristas... Frei Betto alerta que o alimento da mudança é a quimera, mas que amiúde o logro prevalece, o ideal dos pobres passa a ser a ilusão burguesa. Diferencia três tipos de militantes: os pelegos (visam benefícios pessoais), os ideológicos (teóricos dogmáticos distantes das bases) e os orgânicos (os identificados com os pobres e o sonho legítimo de liberdade e justiça).

A formação e prática religiosa de Frei Betto capacitou-o a uma acurada percepção das múltiplas faces que tem o ser humano, a exemplo de um cristal facetado. Temos faces angelicais e diabólicas. Por esse motivo é essencial cultivar a face solidária e a aspiração de um projeto de nação livre, justa, inclusiva. A face diabólica a ser superada é narcisista, mentirosa, que faz caixa dois e falsas promessas, é clientelista e fisiológica, despreza os que não lhe servem de degrau ascendente.

Frei Betto adverte para o erro da mera disputa de cargos eleitorais, a inexistência de um projeto de nação, a política de resultados superando a de princípios, o descolamento das bases, a míngua da formação política, o desparecimento dos núcleos de base: “O partido deixa de ser ferramenta de transformação da sociedade para tornar-se quase que somente a via de acesso de seus quadros ao poder”.

O autor ressalta que as elites manipulam o falso e camuflado paradoxo entre justiça e liberdade: um terço da humanidade goza os privilégios da suposta liberdade do mercado, que penaliza outros dois terços, vítimas da ausência de justiça, que concentra renda e dissemina pobreza. A questão da sonhada harmonia entre justiça e liberdade não é ideológica, mas é ética: é preciso despertar para o crime de lesa-humanidade que é o arranjo que beneficia uma minoria às custas da exploração e exclusão da maioria.

O livro indica alguns caminhos para a saída dos impasses da esquerda e superação da indiferença e desesperança, que acometem sobretudo os jovens: retomar o trabalho de base, reinventar a estrutura sindical, reativar o movimento estudantil, abordar questões indígenas, étnicas, sexuais, femininas, ambientais... Se fosse escrito hoje, possivelmente Frei Betto também recomendaria perícia no uso dos modernos meios de comunicação, como ferramenta de contato com as bases e de combate à desinformação e à mentira.

No último capítulo, Frei Betto dedica-se a declarar sua convicção de que fé cristã e política são inseparáveis. Ele relembra que a vida de Cristo foi uma vida de militância, de pregação, de convício com os pobres e do sonho de justiça e liberdade. A mística cristã é o amor. É ele o caminho para o mundo de justiça e liberdade que almejamos.

sábado, 12 de outubro de 2024

Dilema civilizacional - a mosca e a janela de vidro

 Publicado no Jornal da Manhã em 15/10/2024.

Na sala de uma moradia há, de um lado, uma ampla janela de vidro, fechada, que dá para um iluminado jardim, com apetitosas flores e frutos. Do outro lado da sala, uma porta dá para o interior da casa, mais escuro que o luminoso jardim. Duas moscas tentam chegar ao jardim. Malogradas, batem-se repetidamente contra o para elas invisível vidro. Já estão extenuadas, quase mortas. Uma delas repousa um instante de recuperação, e volta a bater-se contra o vidro. Até tombar sem vida. A segunda, resolve usar outra forma de percepção que não seja só a visão, que lhe mostra o ambicionado jardim, mas não o vidro. Olha em volta, vê a porta, não tão atraente, mas uma possível saída. Voa para ela, consegue chegar a outro aposento da casa, depois a outro, até encontrar uma janela aberta, e assim sai para a liberdade do ar livre. Se procurar, ainda vai poder encontrar o jardim. A outra mosca, jaz no vão da janela.

Os seres humanos parecem comportar-se como estas moscas. A janela de vidro intransponível, contra a qual nos batemos, ignorando-a ou negando-a, é o cuidado que deveríamos ter para com a natureza, que nos provê a vida, e a solidariedade para com o próximo, que nos provê a justiça e a paz. A natureza já não consegue se recuperar no planeta finito que está superpovoado e superexplorado. A teimosia em bater-se contra o vidro é a cobiça, a compulsão de ter, de poder, de competir, de sobressair-se. O jardim luminoso que nos seduz talvez seja o sonho de emancipação, de paz, de fraternidade. O caminho alternativo – a menos fascinante e mais longa porta de saída para a sobrevivência, a liberdade e o devir esperançoso – é o controle de nossas pulsões, o discernimento, a sobriedade para com a natureza, a compreensão dos inevitáveis limites, a amorosidade para com o próximo. Tarefa que nos parece assaz penosa.

Se teimarmos fazer como a mosca que se debate impulsiva contra o vidro, vamos acabar como ela. É bem provável que não só venhamos a perecer, mas também causemos uma extinção em massa no planeta. Apesar do colapso, a Terra há de se recuperar, como já fez outras vezes após cataclismos naturais: novas espécies, mais evoluídas, povoarão o planeta após a infausta experiência humana. Temos imitado esta mosca negligentemente suicida: na ânsia de dominar, de enriquecer, de se sobressair. As crises que a humanidade vivencia hoje – climática, hídrica, sanitária, política, social, educacional, cultural, religiosa, de segurança, de guerras, de foragidos, de desinformação, ética, moral – e a impotência para resolvê-las, escancaram o quanto estamos agarrados ao papel da mosca suicida.

A humanidade há de ter um lado mais evoluído, algo que a distinga da mosca que não é cega da visão, mas é cega de capacidade de reflexão e de cooperação. As crises que vivenciamos hoje não resultam de um sistema econômico cruel, de uma nação imperialista guerreira, de um arranjo político e social falido. Todos estes desatinos é que são resultantes do lado ainda primitivo da índole humana, da teimosia de continuar batendo-se contra o vidro da janela, ao invés de refletir para encontrar uma saída viável. Infelizmente, esta cegueira de bom senso é alimentada por um avançado sistema de manipulação da opinião, que tange multidões, dissemina mentiras e semeia desesperança, reduzindo o gênio humano ao mesmo comportamento da mosca suicida.

Vê-se logo que a estória das duas moscas é muito simplista. Há também aquelas que têm empatia com a congênere que se debate cega, e mostra a ela o caminho da saída. Há aquelas que, chegando ao cobiçado jardim, vão tentar tirar egoístico proveito dele. Talvez até construam anteparos de vidro para isso.

Mas, com certeza, o ser humano é mais que a mosca cega de discernimento. Só é preciso lembrá-lo disso.

domingo, 29 de setembro de 2024

Crise hídrica e guerra mundial

 Publicado no Jornal da Manhã em 28/09/2024.

Os eventos recentes escancaram que já estamos vivendo as consequências do aquecimento global e da emergência climática: enchentes catastróficas, secas prolongadas, recordes de temperatura, incêndios... As previsões são que os eventos climáticos extremos serão cada vez mais frequentes e agudos.

A água tem sido considerada a substância chave para o Século XXI. Por isso é chamada “o ouro azul” do século. A distribuição da água potável no planeta deverá sofrer profunda crise com as mudanças climáticas. Atualmente, segundo a UNICEF (órgão da ONU para a infância), a escassez de água já penaliza cruelmente a humanidade: 2,1 bilhões de pessoas sofrem de insegurança hídrica, 4,5 bilhões não contam com serviços de saneamento seguros. E esta atroz realidade só vai piorar.

No Brasil, parecemos não querer nos preocupar com a água. Afinal, o país é o detentor dos maiores volumes de água doce do planeta. Mas a despreocupação está dando origem à negligência, à ruína. Poluímos águas superficiais, incendiamos a vegetação nativa e degradamos solos que são essenciais no ciclo da água, causamos a depleção de aquíferos... Com os incêndios na floresta, os “rios voadores”, que transportam umidade da Amazônia para o Centro-Oeste, Sul e Sudeste do país, estão se transformando em torrentes de fumaça e fuligem. Atenção: comprometer a capacidade da Amazônia de abastecer os rios voadores que irrigam o Brasil causaria mais danos que um ataque nuclear ao nosso país.

Com o agravamento da emergência climática, as águas subterrâneas passam a ter importância estratégica crescente. Os aquíferos – as unidades rochosas que acumulam água nos seus poros e vazios – fornecem água de boa qualidade, em volumes que podem suprir as necessidades humanas por muito tempo. A água subterrânea tem algumas vantagens: não depende das mudanças nas precipitações; a água é de boa qualidade e em volumes apreciáveis; dispensa tratamento prévio; os poços podem ser perfurados no local de uso, evitando redes de distribuição. Mas a água subterrânea também tem suas vulnerabilidades: se poluídos, os aquíferos tornam-se praticamente irrecuperáveis. Assim, diante da emergência climática, nunca foi tão importante cuidar da proteção dos aquíferos.

A cidade de Ponta Grossa no Paraná – um exemplo bem oportuno – é abençoada com a existência de um generoso manancial subterrâneo em seu subsolo: o Aquífero Furnas. Em estudos realizados em 2010, os poços tubulares profundos que exploravam águas desse aquífero na cidade já tinham possibilidade de produzir 30% da demanda. Decerto essa capacidade cresceu com a perfuração de novos poços desde então; novos estudos têm que ser feitos.

A preservação da qualidade da água do Aquífero Furnas depende de ação firme. É urgente um regramento municipal que regule o uso da terra nas áreas de recarga do aquífero: na porção leste da cidade, onde aflora o Arenito Furnas, é essencial a condição de proteção de manancial, que evite qualquer atividade potencialmente poluente. Lá não é lugar para aterros sanitários, uso de agrotóxicos, efluentes da indústria e da pecuária. O que implica inclusive a remoção do lixo contido no encerrado Aterro Botuquara para outro local. Ademais, a exploração pelos poços também tem de ser regulamentada, para evitar a depleção e a poluição pela contaminação com águas impróprias, provindas de unidades rochosas justapostas.

Enquanto, com o agravamento das crises na Ucrânia e no Oriente Médio, a humanidade se preocupa com o risco de uma nova guerra mundial, urge a atenção com a água, diante do incerto futuro climático. Sua escassez pode ser igualmente devastadora.

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

O deus dinheiro, o messias Narciso e a escrava Terra

 Publicado no Jornal da Manhã em 20/09/2024.

Estaremos já colhendo os sinais de autoextinção da humanidade? Os desastres de Mariana e Brumadinho, a pandemia de Covid-19, o aquecimento global e derretimento das calotas polares, as inundações no RS, a aguda seca e as queimadas atuais, o desregramento e a disseminação da desinformação, os temores com o descontrole e a sublevação da inteligência artificial, as guerras cognitivas e por procuração, o risco crescente de confrontos nucleares, a ascensão de radicalismos, segregacionismos e limpezas étnicas, a chamada teologia da dominação... Estes são só alguns sinais mais recentes da insanidade que nos conduz a uma tragédia final.

Há várias alternativas concretas para o fim da civilização atual: cataclismos climáticos que nos privassem da água, de alimentos e de ar respirável; uma pandemia incontrolável; uma guerra nuclear generalizada; a bestificação das massas manipuladas, encolerizadas e armadas; a destruição por uma inteligência artificial revoltada... Muitas ficções – ou seriam previsões? – têm abordado estes temas. Acrescentam outros, naturais, como o impacto de um meteorito destruidor, terremotos, vulcões e tsunamis avassaladores. O tema do colapso da civilização nunca esteve tão presente nos nossos temores e suas manifestações na literatura, no cinema.

O deus dinheiro tem sido o guia da humanidade há séculos. Inventou-se até a teologia da prosperidade. Ele abençoa o lucro, e condena a solidariedade humana e a natureza. Narciso, no sentido freudiano – tudo que não é imagem especular é condenável e deve ser dominado ou destruído –, é o messias do deus dinheiro. Seus mandamentos ensinam a ganância, a competição, a supremacia, a improbidade, a agressividade, a incúria moral e ambiental, o desperdício. O planeta Terra tornou-se a escrava a ser explorada sem misericórdia, até sua completa ruína.

Para lembrar algumas séries e filmes que tratam das fictícias distopias provocadas pela demência humana, podemos citar O dia depois de amanhã, O exterminador do futuro, Matrix, Interestelar... Mas são muitos títulos. Além dos que tratam de fenômenos naturais, como 2012, Não olhe para cima, Impacto profundo, Destruição final – o último refúgio... Também são muitos títulos. Será que tanta criação artística calamitosa estaria dando vazão a um justificável temor de nossa própria insanidade?

O deus dinheiro e os deslumbrados narcisistas estão exaurindo a capacidade de regeneração da escrava Terra. Agimos como um vírus mortal, que, no afã de disseminação e dominação, não consegue parar antes de sacrificar o hospedeiro. Matando-o, acaba por também sacrificar a si mesmo. Será que o tino da espécie humana é igual ao desse incauto vírus, que se autodestrói? Será essa uma providência das leis naturais, para controlar organismos predadores que ameaçam o milagre que é a multiplicidade da vida no planeta Terra?

Se essa lei natural que extermina organismos nocivos realmente funcionar, estamos correndo sério risco. Mas ainda nos resta uma centelha de discernimento. Quem sabe ainda logremos aprender a conviver com os diferentes entre nós, com as outras espécies, e dentro dos limites de recuperação da natureza?

Oxalá aprendamos!