domingo, 14 de abril de 2024

Hipocrisias

 

Não, não sou escritor. Sou autor, aspirante a escritor. Sim, considero-me poeta. [aHHá tempos contraí o delírio dos poetas, que sonham acordados, e que enxergam o avesso do mundo. Mas não sou ainda um escritor. Estou a caminho de sê-lo, vamos ver se chego lá. Isabel Allende diz, muito apropriadamente, que para dizer-se escritor é preciso já ter publicado ao menos três romances. Ao publicar meu primeiro ─ e único até o momento ─, compreendi o que ela quis dizer. Quanto aprendi com esse primogênito! E quanto ele me mostrou o que ainda tenho a aprender! Ele me deu a sensação de que eu fora capaz de consertar a resistência do chuveiro, mas não por isso possa considerar-me um eletricista. Seria presunção, hipocrisia.

Então censuram-me: “Você está se desvalorizando, subestimando seu talento”. Será? Tenho algum talento? Sim, acho que tenho. Ele se revelou ainda no ensino fundamental, quando surpreendia professores e colegas com ocasionais textos e tiradas inspirados. Era como o brilho fosco e fugaz de uma gema bruta coberta pela pátina da ferrugem. A vida ─ ou fui eu mesmo? ─ não calhou os acasos para remover a pátina, lapidar a gema. Imprescindíveis para revelar o brilho. Agora, liberado das outras obrigações, dedico-me a tentar remover a pátina incrustada. Aspiro aperfeiçoar o autor, alcançar o escritor. Tarde! Ainda terei tempo e disposição?

Seria excesso de timidez? Incapacidade de compreender que a vida é feita de convicções e ilusões? Ou seriam hipocrisias? Quanto preferimos nos satisfazer com a aparência ao invés de enxergar a essência! A aparência é flexível, podemos adaptá-la conforme nosso gosto, nossa necessidade, o gosto do outro. A essência é a verdade, implacável, gostemos ou não. Então fazemos de conta. Somos hipócritas. A civilização atual é a civilização da hipocrisia. Martirizamo-nos com guerras, miséria, corrupção, tiranias, mas não abrimos mão de privilégios, mentiras, orgulhos e ostentações. O parecer, o ter e o poder são mais toleráveis que a rigidez da essência, da verdade.

Somos hipócritas até na denominação que nos atribuímos: Homo sapiens. Temos sapiência? O que temos, que nos distingue, é apurada racionalidade. É ela que nos faz ora sapientes, ora dementes. Somos sapiens e demens. E parecemos estar vivendo a civilização da demência. A racionalidade empenhada na desinformação, na escandalosa acumulação de riqueza por poucos, na depredação da Terra e da sensibilidade humana, nas guerras de conquista, na destruição da ética, da espiritualidade.

Não são só os falsos escritores: são falsos democratas, falsos profetas, falsos pensadores, falsos libertadores, falsos eruditos, falsos artistas. Habituamo-nos à falsidade e à hipocrisia. Até a cultura e a arte tornam-se falsas. Perdeu-se a autenticidade, o significado, a essência. Mas um lampejo da essência ainda arrebata mais que todo o brilho falso da aparência. É o lado Homo sapiens a resistir.

As hipocrisias são efêmeras. Se sobrevivermos a elas, logo nos perguntaremos como foi que nos metemos nesse desastrado caminho.

domingo, 7 de abril de 2024

Talento e vocação

 Publicado no Jornal da Manhã em 09/04/2024.

Vamos aqui considerar como “talento” aquela habilidade nata edificante, que engrandece o indivíduo e contribui para o convívio social pacífico e próspero. Diferente de outras habilidades, que podem ser nefastas, como a do projetista de minas terrestres explosivas, ou a do exímio ladrão profissional. E vamos considerar como “vocação” o chamado, o desejo e empenho em firmar-se numa determinada habilidade, seja profissional, artística, esportiva, científica...

Bem-aventurada aquela pessoa na qual convergem talento e vocação! Quem tem talento para ser um músico, e deseja firmemente sê-lo, superará obstáculos, e terá grande chance de tornar-se um músico bem-sucedido. Mas quem tem talento para ser um escritor, e não deseja nem se empenha em sê-lo, talvez nunca escreva nada. Para concretizar-se, o talento deve vir acompanhado da vocação.

Há ainda outras componentes decisivas nessa relação entre talento e vocação. A oportunidade, concedida pelo ambiente, natural ou social, em que a pessoa vive e evolui, é uma delas. Alguém com talento para a música que nunca seja apresentado a ela, nem a um instrumento musical, dificilmente poderá tornar-se um músico. A menos que seu talento seja tão prodigioso que ele encontre a música nos sons da natureza, e crie seus próprios instrumentos. Alguém com talento para a literatura que nunca venha a conhecer um livro, nem a linguagem escrita, dificilmente poderá tornar-se um escritor.

Outra componente é a circunstância. Entre os sobreviventes de um acidente aéreo na floresta, por exemplo, um hábil escriturário da cidade pode ser forçado a revelar-se um competente intérprete da ignorada linguagem da selva. E pode salvar a todos. Um milagre da “Santa Necessidade”.

Uma condição essencial para que o talento se manifeste é a aceitação do dom natural. Mas é possível que o talentoso nunca descubra seu talento ─ dizem que esta é a situação mais comum ─. Ou até saiba dele, mas o rejeite, influenciado por modismos, preconceitos ou imposições sociais. A mulher agregadora e líder nata pode vir a ser segregada e sabotada num meio ferozmente patriarcal, e pode optar por anular-se. O poeta sensível pode preferir o anonimato numa sociedade machista e mercantil. Ou ainda, uma talentosa cozinheira nata pode ser convencida que cozinhar seja tarefa de escravas e serviçais, e assim prefira nunca desenvolver e praticar seu condão.

Há ademais o outro lado: o desejo, a vocação, divorciada do talento natural. Neste caso, a eventual realização do desejo, a transformação da vocação em comprovada habilidade, vai depender da combinação de outros fatores. Sobretudo, de firme dedicação. Vai ser preciso adquirir uma habilidade que não se possuía naturalmente. Isso é possível, com empenho e perseverança. E desde que a pessoa seja capaz de vencer as limitações para construir-se talentosa na sua vocação. E de reconhecer quais os limites intransponíveis. Não é plausível que um deficiente visual venha a tornar-se um fotógrafo renomado. Nem que alguém dotado para ser um velocista torne-se um campeão de levantamento de peso pesado. Nem que a pessoa com aguda deficiência de atenção transforme-se numa revisora de textos eficiente.

Em qualquer dos muitos casos possíveis ─ estes aqui lembrados são só uma parca amostragem ─, é essencial que cada ser humano tenha oportunidade e estímulo para reconhecer, valorizar, praticar e desenvolver seus talentos. Educação e inclusão social são capitais para que isso aconteça, e devem ser prioridade de um governo democrático.

É bem crível que todos nós, sem exceção, tenhamos nossos talentos natos. Lograr descobri-los e exercê-los realizaria o indivíduo e acrescentaria à sociedade.

domingo, 31 de março de 2024

Páscoa, luta pelo poder e luta de classe

 Publicado no Jornal da Manhã em 02/04/2024.

A luta pelo poder é uma reminiscência dos instintos básicos de sobrevivência e dominação, que regem todas as espécies vivas. Os instintos básicos do Homo sapiens não são diferentes dos répteis ancestrais. Mas os seres humanos já são mais que répteis. Evoluímos deles, desenvolvemos o cérebro límbico emocional, o neocórtex racional e, dizem, um incipiente cérebro (hipofisário?) amoroso e solidário. Mas ainda não evoluímos o suficiente para que a resposta comportamental e social do cérebro reptiliano torne-se subordinada aos cérebros que nos distinguem como humanos. Ainda somos muito os répteis!

A onipresente luta pelo poder que se observa entre os seres humanos é manifestação dos instintos básicos do cérebro reptiliano. O empenho em dominar não é nenhuma novidade, sempre existiu, desde a pré-história. A novidade são atributos dados pelo cérebro límbico e o neocórtex. Hoje nos associamos em etnias, bandos, nacionalidades, crenças, convicções... que rivalizam ferozmente entre si. E criamos armas poderosíssimas para os confrontos reptilianos que promovemos.

A luta pelo poder confunde-se com a luta pela posse. A engenhosidade humana não propiciou só as armas de destruição em massa. Propiciou também formas de exploração dos recursos do planeta e do trabalho, de maneira que produzimos muita riqueza. Em consequência do instinto de dominação, o preço das riquezas produzidas é calamitoso: para o planeta depredado, para as massas de trabalhadores, exploradas e excluídas.

A consciência, a revolta e um crescente senso de solidariedade vêm alimentando sinceras revoluções: em Paris, na Rússia, na Nicarágua, na Venezuela... Todas elas bastante frustradas nos seus anseios originais. Parece o vulcão que esporadicamente explode e então se acalma, para em seguida continuar a acumular a pressão até a próxima explosão. O instinto de dominação é inexorável; ou logra as massas revoltosas em renovados arranjos exploradores, ou desperta a ira de tiranos alhures, que logo intervêm para debelar ameaças de igualdade.

As revoluções sinceras, movidas pela consciência de que existem os exploradores e os explorados, pela identidade com os explorados e pela solidariedade e busca por uma sociedade mais justa, é a luta de classe. Sua inspiração maior é a constatação das injustiças, e de que a Mãe Terra provê riquezas que, se compartilhadas, significariam o bem viver para toda a humanidade. A verdadeira luta de classe promove a inclusão dos excluídos. Uma tarefa desafiadora: a classe dominante dispõe de todos os recursos para defender seu domínio. Inclusive os meios de comunicação, que aperfeiçoam incansavelmente métodos de alienação, manipulação e doutrinação.

A Páscoa tem algo a ver com a luta de classe? Ora, a Páscoa não celebra a ressurreição daquele que foi crucificado por representar a luta contra os opressores e a favor da solidariedade entre os oprimidos? E Cristo personificou um desafio ainda maior: a revolta dos dominados através do amor, com paz.

Dois mil anos depois, acho que se hoje Cristo estivesse de novo entre nós, seria de novo sacrificado. E antes, torturado na prisão de Guantánamo, como terrorista, ameaça ao sistema.

quarta-feira, 20 de março de 2024

Práticas democráticas

 Publicado no Jornal da Manhã em 20/03/2024.

Estamos vivendo, no Brasil, uma época de grave ataque à democracia. Aliás, um fenômeno mundial. A intolerância, a truculência, a ignorância e a tirania crescem em todo o mundo. Analistas sérios interpretam que seja uma inevitável e periódica crise, uma explosão de ressentimento com o capitalismo, o consumismo, o neoliberalismo, arranjos que só fazem concentrar riquezas e disseminar miséria.

Infelizmente, esquemas de condutas antidemocráticas acabam por estender-se às pessoas e às agremiações que se supõem e tentam permanecer democráticas. Talvez seja um fenômeno natural: numa sociedade em que predominam os logros e hipocrisias midiáticas e institucionais para manter os privilégios e o status quo, parece inevitável que todos, mesmo aqueles que sonham com um mundo mais inclusivo e justo, acabem contaminados pelas práticas que se revelam manipuladoras, discriminadoras e mantenedoras da sociedade exatamente tal como está hoje. Com todas as suas imperfeições, com consequências que beiram a tragédia: crise climática e ambiental, pandemias e epidemias, guerras, crescente criminalidade e impunidade, corrupção, segregacionismos, aumento da pobreza, desinformação, tapeação religiosa...

A reação à mudança, mesmo entre as pessoas supostas progressistas e democráticas, é um traço da natureza humana: o Homo sapiens é movido sobretudo pelos instintos de agressividade e dominação, que tiveram (ainda têm?) importância fundamental quando pensamos em preservação e evolução da espécie. Como resultado, sempre surgem os “donos” dos espaços em que vivemos. O planeta tem seus pretensos donos. As cidades, os bairros e as ruas têm seus donos. Às vezes, a padaria, o ônibus, o mercado têm seus donos, que julgam que os presentes têm que escutar e acatar suas bravatas. As instituições culturais, educacionais, científicas têm seus donos. Eles disputam prestígio e poder, resistem visceralmente às mudanças. E os partidos políticos têm seus donos, que também não querem mudar, ainda que se declarem progressistas.

Mas mudar, adaptando-se às contínuas transformações do ambiente e da cultura, é vital. Sob pena de extinção frente às alterações ao longo do tempo. A evolução tem nos ensinado isso ao longo da história da Terra e da civilização.

Os expedientes para pretensamente perpetuar a imutabilidade são rasos: decisões tomadas em encontros sigilosos; longos atrasos nos encontros supostos abertos; excessivo e desigual tempo de fala aos “donos”, que só fazem comunicar as decisões já tomadas; interdição do debate franco e amplo; fomento ao divisionismo entre concepções divergentes, evitando a construção de consensos mais amplos, refletidos, inclusivos...

São muitos os estratagemas, que acabam tolerados por parecerem fazer parte do jogo democrático normal do embate de ideias. Não é um jogo normal! É um jogo viciado, que dissimula os ardis para preservar os donos. E estes, tão imbuídos que estão do papel de donos, não percebem quando estão ultrapassando os limites entre a democracia e um fingido autoritarismo.

Com lideranças que não conseguem despojar-se do papel de donos, que não conseguem formar novas lideranças e nem cativar e agregar a parcela da população cansada de uma sociedade de dominação e privilégios, os ditos progressistas não precisam de inimigos externos: já lhes bastam os internos.

sábado, 16 de março de 2024

Babel silenciosa

 

Aquele imenso prédio estava lá já havia uns três anos. Ele mudara a vizinhança do nosso bairro, antes mais calmo e humilde, então bem condizente com uma pacata cidade média interiorana e provinciana. Erguia-se majestosa torre, ocupara com o cinza do cimento e o brilho falso dos reflexos dos vidros o que antes era nosso céu e nosso sol. Interditou nosso arrebol matinal verdadeiro nas manhãs de primavera e outono. Imenso tapume geométrico e escuro. Trazia o ruído dos carros da avenida para dentro do nosso antes quieto quarto de dormir. Excedendo-se nas traquinagens, trazia também os trens fantasmais da ferrovia distante. Façanhas dos sons viajando nas entranhas do vento e rebatendo na exagerada torre.

Relaxado na rede nordestina estendida na varanda do quintal de casa, nas tardes de folga lia os livros amigos que me reclamavam a distinção daquele lugar tão acolhedor. Enquanto lia, espiava a intrusa torre de quando em quando. Para divagar, descansar os olhos. Parecia que ela também me vigiava. Via nela sinais da presença humana: plantas nas sacadas, algumas janelas entreabertas. Ao anoitecer, umas poucas luzes acendiam-se. Mas nunca via nenhum humano. Onde estariam eles? Seriam efêmeros e nômades visitantes, tragados de seus lares pelo crescente turbilhão da cidade que se agiganta, convulsiona e engole os desprecavidos? Seria o prédio só um avaro dividendo dos grãos alimentícios exportados para o mundo, convertidos em investimentos destinados ao abandono, pois não há tanta gente que possa pagá-los para moradia?

Uma tarde, à rede lendo contos fantásticos que me transportavam às aldeias moçambicanas de nacionalidade e concretude incertas, pus-me a divagar, libertando as cismas, a observar aquela torre tão concreta. Ela cortava retilínea o azul sem fim do céu e as brancas nuvens, estas tão curvilíneas, baças e intangíveis quanto as quimeras humanas.

Entretanto, observando bem, a torre não era tão concreta. Ainda faltavam os humanos que lhe dessem a cara de urbe verticalizada pela cupidez humana ─ aqueles monumentos excessivos, açodados, competindo a sofreguidão de seus projetistas e financiadores.

Mas, surpresa! Desta vez vejo ao longe a figura de uma pessoa ─ parece uma senhora ─ a lidar numa das sacadas que têm plantas, lá no alto. Detenho-me a observá-la; pelas idas e vindas, deduzo tratar-se de alguém a realizar serviços. Possivelmente a diarista que trabalha enquanto os moradores estão fora. Não resisti: da varanda onde me encontrava, gritei alto para que ela pudesse me escutar: “Ó do prédio! Boa tarde!”. Tive de gritar algumas vezes, até que ela me escutasse e me localizasse, eu acenando os braços feito maluco, lá naquele quintal das casas térreas servilmente espalhadas pelo rés do chão, circundando o majestoso edifício.

─ Que bom que a vejo por aí ─ explico-me ─. É a primeira vez que vejo alguém nesse prédio. A senhora trabalha ou mora aí?

─ Trabalho. Venho uma vez por semana.

─ Bom saber que o prédio é habitado por pessoas! Andava a pensar se não seria povoado só por invisíveis fantasmas. Quem são os patrões?

─ Os patrões? Não os conheço.

─ Como não os conhece? Não está na moradia deles?

─ Ah, sim. Trabalho aqui já se vão três anos. Mas nunca os vi. Nem imagino quem sejam. Tenho a senha do portão eletrônico e as chaves. Peguei-as lá na imobiliária. Nem porteiro tem no prédio. Meu trabalho é só abrir as janelas pra arejar, tirar o pó e regar as plantas. Não tem nem louça pra lavar. Está sempre tudo impecável, como deixei na semana anterior.

─ E como fazem pra pagar?

─ Direto na conta bancária. E vem em nome de uma empresa. Não é nome de gente, não.

Ela diz que tem outros andares para cuidar no mesmo prédio. Todos no mesmo incógnito esquema. Faz-me um aceno de despedida, desaparece. Aumenta-me a suspeita que esse prédio simbolize a essência da civilização que estamos vivendo.

sábado, 9 de março de 2024

Capital eleitoral e capital civilizacional

 Publicado no Jornal da Manhã em 12/03/2024.

Outro dia escutei a expressão “capital eleitoral”, em meio às açodadas conversas que marcam o recrudescimento das atenções com as eleições que acontecem neste ano. A expressão foi utilizada com o sentido de capacidade de um candidato traduzir-se em votos na eleição, seja pela notoriedade ou força e pluralidade dos apoios.

O uso da expressão desencadeou-me uma cisma: o capital eleitoral não seria um inibidor de um outro capital, vamos chamá-lo de “capital civilizacional”? A capacidade de um nome angariar votos numa eleição merece reflexão. O político notório, já conhecido de várias outras eleições e mandatos, é o melhor? Não seria preferível dar voz e liderança a novos políticos? Não é sabido que a política, quando carreira, tende a viciar, desviando o foco de ideais sociais legítimos no início, para, com o tempo, reles disputas eleitorais? Não são muitos os pensadores que defendem que não deveria ser possível a reeleição, justamente para que haja renovação? Não é sabido que a “notoriedade” amiúde é comprada com conluiadas manipulações midiáticas e apoios financeiros criminosos?

Ademais, a precária democracia representativa que vivemos hoje, responsável por muitos dos vícios dos políticos, privilegia os já ocupantes de cargos. Verbas, recursos, benefícios favorecem os que exercem mandatos. E as leis que mantêm esses privilégios são “eleitas” em escolhas muitas vezes secretas, nos parlamentos. Como é possível, numa democracia representativa, os supostos representantes do povo votarem secreto? Então deixou de ser representativa, passou a ser corporativista, fisiológica, clientelista.

E o que seria o tal “capital civilizacional”? Em primeiro lugar, seria o fazer boa política sempre, e não só às vésperas de eleições. Esta última é a política eleitoreira, que pode perpetuar os políticos que não têm ideia do que seja o espírito público. A política civilizatória atuaria continuamente, formando consciência histórica, social, cultural, ambiental, econômica... Ou seja, uma verdadeira educação para a civilização, visando reduzir os conflitos resultantes das injustiças e da escandalosa concentração da renda das riquezas produzidas pelo trabalho. Talvez o capital civilizacional não aparecesse como resultado eleitoral nas próximas eleições; mas alimentaria uma consciência política mais duradoura e consistente, mais refratária às manipulações, ilusões e logros midiáticos destinados a eleger lobos para cuidar do rebanho de cordeiros.

Acreditar e abraçar o investimento no capital civilizacional é um desafio considerável. O ser humano não costuma ter paciência de aguardar resultados a longo prazo. Queremos plantar a árvore e colher logo seus frutos. Falta-nos paciência, humildade, e, sobretudo, solidariedade e verdadeiro espírito público. A regra geral entre os seres humanos, e os políticos atuais, é a meta eleitoral, não a meta social, a meta civilizatória. Não costumamos plantar para que toda a sociedade colha os frutos. Plantamos para que nós mesmos, e nossos apaniguados, sejamos os beneficiados.

Enquanto priorizarmos o capital eleitoral em detrimento do capital civilizacional, a sociedade que vivemos continuará vítima das distorções e conflitos que ela mesma gera: ignorância, desmandos, tiranias, criminalidade, guerras, crises ambientais, sanitárias...

domingo, 25 de fevereiro de 2024

Bando de narcisistas

 Publicado no Jornal da Manhã e no Diário dos Campos em 27/02/2024.

Uma querida amiga psicanalista explicou-me o verdadeiro sentido da palavra “narcisista”: não é, como eu pensava, só aquele que se apaixona pela sua imagem no espelho; é, sim, aquele que julga que sua imagem é a única aceitável, e que rejeita e condena todas as demais. Rejeitando o diferente, empenha-se em doutriná-lo e em transformá-lo na própria imagem; ou, se for o caso, simplesmente exterminá-lo.

O narcisismo é, portanto, algo muito mais destrutivo que o egocentrismo. Este é só um filho do narcisismo, irmão do egoísmo, indiferença, frivolidade, alheamento, vaidade, soberba, inveja, ciúme, ambição, negacionismo, agressividade, hipocrisia, clientelismo, fisiologismo... É o narcisismo que empurra os seres humanos a serem dominadores e violentos. É ele que move os tiranos e as tiranias às conquistas e às guerras. É ele que seduz para os desatinos de poder, de exploração, de concentração e acúmulo de riquezas  moléstias que estão a sacrificar a humanidade.

Cada ser humano, e, como resultado, toda a humanidade  que é a soma de todos nós  trava dentro de si a luta mortal entre o narcisismo e seu oposto, a solidariedade. O narcisismo nega, afasta, separa. A solidariedade compreende, une, agrega.

O surto de narcisismo que a civilização atual está vivendo, manifesto nas guerras, no segregacionismo, nas teologias da prosperidade e da dominação, na disseminada crença em mentiras rasas, parece ter uma finalidade evolutiva. Ao longo dos milênios, surtos de narcisismo sucederam-se: impérios expandiram-se, e depois sucumbiram, suplantados por novos arranjos civilizacionais mais lúcidos, inclusivos e equilibrados.

Esse talvez seja o lado transformador dos surtos de narcisismo, como este que ora vivemos: a doença engendra a sua própria cura. O narcisismo, no seu tresloucado desvario, acaba por despertar para a lucidez, o discernimento. Aquilo que era uma patologia latente, oculta, revela-se. E, revelada, pode ser melhor diagnosticada, compreendida, tratada e curada.

No passado já houve exemplos marcantes da consequência transformadora do narcisismo: o obscurantismo da Idade Média engendrou a luminosidade do Renascimento; o totalitarismo do fascismo e do nazismo engendrou o culto à democracia. Mas parece fazer parte do desígnio da evolução que os surtos de narcisismo e de discernimento se alternem indefinidamente. Até quando? O que ainda falta à humanidade para enfim reconhecermos os milagres da engenhosidade humana e da generosidade do planeta, que nos acolhe e supre nossas necessidades e sonhos?

Talvez o que falta seja que, na luta íntima que travamos entre o narcisismo e a solidariedade, nossa vontade coloque-se firmemente em favor desta última. Decerto assim agindo, algum dia ainda aprenderemos a respeitar o diferente. Compreenderemos, enfim, que a diferença enriquece e dá plenitude ao ser humano.

Urge que aprendamos essa lição! Antes de exterminarmos a espécie humana. A evolução está a nos testar, a verificar se somos viáveis e merecedores do milagre da vida. Ou se é necessário extinguir-nos para transferir a oportunidade para outra espécie mais qualificada. A natureza vem fazendo isso ao longo da história do planeta, desde muito antes de nós humanos. A diferença é que hoje somos capazes de exterminarmo-nos, e até de destruir o planeta.