domingo, 30 de abril de 2023

Endogenia e nanismo – contemplando o próprio umbigo

 

Tentando traduzir de forma simples, “endogenia” é tudo aquilo produzido dentro de um sistema fechado, seja ele uma célula, um organismo ou um clã. O endógeno é fruto de uma reprodução sem a participação de contribuição externa. Há então uma tendência de reprodução ad aeternum dos traços dos ancestrais.

Uma consequência da endogenia é o agravamento de caracteres não evolutivos, que não conseguem adaptar-se às inevitáveis transformações do ambiente natural e social. Entre os humanos, um atributo físico bem visível decorrente da endogenia é a baixa estatura de populações que não se misturam com outras, e sempre têm filhos baixos. Porém este é um exemplo perceptível mas grosseiro; a endogenia é responsável por consequências menos visíveis e mais graves, como a tendência a desenvolver moléstias mortais e deficiências neurológicas congênitas. Ela pode conduzir à extinção da estirpe.

Há muitos tipos de endogenia. Fala-se em endogenia genética, acadêmica ou científica, cultural, social... A indesejável “imobilidade” ─ ou o “provincianismo” ─ decorrente da endogenia tem levado a reparadores esforços de interação, principalmente em áreas cognitivas. Um reflexo disso é a valorização da interdisciplinaridade nos meios científicos: o enfrentamento dos grandes desafios atuais da humanidade, nas questões ambientais, de saúde e segurança pública, geopolíticas, econômicas, sociais, urbanísticas, alimentares, demográficas, energéticas... demandam a soma de saberes de diversas áreas de conhecimento. Mesmo da antes subestimada etnociência dos povos originários, com os quais temos muito a aprender. Somos ainda fruto de uma educação disciplinar, compartimentada em “blocos” de conhecimento, que dificultam enxergarmos os desafios integradamente, holisticamente. Ainda temos forte propensão ao individualismo e ao narcisismo.

“Nanismo” é uma palavra que tem a mesma raiz de “nanico”, de nánnos = muito pequeno. A endogenia, cristalizando certos atributos pela falta de intercâmbio, conduz à pequenez. Seja da estatura, dos conhecimentos, das ideias, dos gostos, das amizades, das fantasias, dos sonhos... Pode conduzir à pequenez de todo nosso ser: o físico, o orgânico, o intelectual, o cognitivo, o emocional, o estético, o afetivo, o espiritual...

Há quem tema que o intercâmbio e a interdisciplinaridade possam levar à perda da identidade e da acuidade. Talvez, neste caso, a palavra melhor fosse então banalização ─ promiscuidade ─ e não intercâmbio. É a delicada questão de saber preservar, ao mesmo tempo, as raízes e as asas: as raízes que nos garantem a identidade e a comunhão com os ancestrais e a terra mátria; as asas que nos revelam a grandeza e riqueza do diverso e a real dimensão do nosso ser frente aos demais.

Nos intercâmbios, há sempre que cuidar de discernir entre o que acrescenta, preservando a identidade, e o que é tentativa, muitas vezes subliminar, de impor caracteres hegemônicos: a ditadura dos modismos, exotismos, extravagâncias e modernismos. É a forte pressão para anular nossa singularidade, uniformizando-nos num rebanho de ávidos consumidores de produtos, ideologias e valores que nos são estranhos.

Enfim, há que se abrir, coexistir, interagir, permutar. Com amorosidade e criatividade. Sabendo reconhecer e preservar a própria identidade e a identidade do outro.

6 comentários:

  1. Atualmente somos submetidos a uma espécie de “lavagem cerebral” coletiva, na qual somos conduzidos a escolher o “lado certo”: homo ou hétero, direita ou esquerda, branco ou preto, pobre ou rico, etc. Isso nos conduz ao isolamento de grupos, cada um cada vez mais débil social e intelectualmente. E está ficando cada vez mais difícil fugir dessa armadilha.

    ResponderExcluir
  2. Pensei em muitas coisas enquanto lia, absorvia e encantava-me com tamanha sensatez e lucidez. A palavra que define o texto e seu autor é admiração.

    ResponderExcluir
  3. Parabéns, Mário. Excelente reflexão, longe de ser nanica.

    ResponderExcluir
  4. O nível de interação a que este texto conduz é impressionante. Digo isso, porque aparentemente seria um assunto que não prenderia minha atenção, no entanto, em um desabrochar de botão em rosa, ele foi se expondo graciosamente e me inebriando com seu perfume.
    Passei para o Silvestre trabalhar em sala de aula, no ensino médio.

    ResponderExcluir
  5. Seus textos são sempre valorosas fontes de informação. Obrigada!

    ResponderExcluir

Aos leitores do blog que desejarem postar comentários, pedimos que se identifiquem. Poderão não ser postados comentários sem identificação.