Publicado no Jornal da Manhã em 25/04/2023.
Não sem alguma dor no coração, tive de esparramar
aquelas iscas formicidas próximo ao carreiro das cortadeiras que estavam
devorando as plantas do jardim. Inclusive o jasmineiro que tanto apreciamos,
que enche o ar noturno de um perfume que nos transporta para um imaginário
mundo de benquerenças.
Conhecem essas tais iscas? São diabólicas, para as
formigas. Têm forma, cor, tamanho e cheiro que fazem que as formigas tenham a
ilusão de que são a salvação do formigueiro. Bem à mão, colocada pela
providência à beira do caminho. É impressionante vê-las, instantes depois que
derramamos a isca. Como todo aquele organizado exército transporta crédula e
diligentemente as iscas venenosas para dentro do formigueiro! Quando imagino a
ação mortal das iscas-bomba no fulcro da colônia, não consigo deixar de pensar
como nós, humanos, somos mortais para os restantes seres do planeta: para
proteger as plantas do jardim, exterminamos uma surpreendente colônia de
formigas, que muito teriam a nos ensinar em termos de organização,
engenhosidade e dedicação.
Mas o formicídio que me aperta o coração
desperta-me a compreensão de que não somos assassinos só de formigas.
Exterminamos, intencionalmente ou não, muitos outros seres vivos, animais e
vegetais. E, perversamente, atentamos também contra os próprios humanos. Não
promovemos só formicídios, cometemos também genocídios.
A isca granulada venenosa e apetitosa que
espalhamos para as formigas pareceu-me muito semelhante às iscas que a supermoderna
guerra cognitiva nos oferece, a nós, seres humanos. Aqui precisamos dividir a
humanidade em duas partes: uma delas é o dono do “jardim”, que quer preservar
suas plantas ─ no caso, as plantas são a riqueza, o poder, os privilégios ─; a
outra parte é o exército de formigas trabalhadoras, que, na verdade, são a
razão de existir da outra parcela ─ sem os trabalhadores, que são quem de fato
produz tudo que é necessário para a sobrevivência da humanidade, não existiriam
nem mesmo os exploradores privilegiados da elite que é dona do “jardim”.
Quais são as iscas que nos são oferecidas na guerra
cognitiva, que, se não nos exterminam, fazem nos idiotizar e nos escravizar,
naquilo que alguns críticos de nossa sociedade chamam de “a servidão
consentida” ou “a servidão voluntária”? A guerra cognitiva não precisa de armas
físicas: o combate dá-se dentro de nossa cabeça. As armas ─ que são as iscas ─
são insidiosas mensagens que nos incutem convicções, opiniões, medos, ódios,
fobias de todos os tipos, violência, ignorância, confusão... Não é preciso nos
matar. Aliás, se o contingente obreiro fosse morto, quem trabalharia para
produzir as riquezas dos ricos? A guerra cognitiva usa o mesmo logro que usamos
com as formigas: oferece-nos algo que parece ser o alimento da colônia, na
verdade é o embuste que, se não nos mata, faz-nos fanáticos e obedientes
servidores da vontade alheia.
As formigas do jardim deram-me uma lição: como
somos parecidos com elas! Transportamos para dentro de nossa sociedade as iscas
venenosas destinadas não a nos destruir, mas a nos idiotizar e nos acomodar à
servidão consentida: a mentira, o medo, a violência, a apatia, a desesperança, a
falta de sensibilidade e de amorosidade...
Mas ainda acredito que sejamos mais espertos que as
formigas cortadeiras.
Triste mas verdadeiro. Somos destruídos pelas informações, negações,.mentiras etc....Não creio que vá melhorar .
ResponderExcluirUm texto espetacular e análogo ao cenário atual. Analogia perfeita formigas-seres humanos.
ResponderExcluirQue sejamos capazes de usar a nossa inteligência!
ResponderExcluirSimplesmente brilhante!!!!
ResponderExcluirabs.
Carlos SA
Excelente texto...
ResponderExcluirSempre inteligente o que o Mário Sérgio escreve. Uma habilidade incrível com a escrita. Parabéns!
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