Divirto-me, toda manhã bem cedo, esparramando no
jardim quirera misturada com alpiste e painço e depois ficar, ao longe,
observando a passarada ciscar: avoantes, rolinhas, pássaros-pretos, canários-da-terra
e, ultimamente mais raros, pardais e tico-ticos. É um furdunço, entremeado com
desnecessárias escaramuças, que parecem resultar mais da necessidade de alguns
dos pássaros satisfazerem seus egos dominadores do que de legítimas disputas
pelo alimento.
Curioso, as pendengas acontecem entre membros da mesma
espécie, não as vejo entre os pássaros de espécies diferentes. Que estranha lei
da natureza é essa, que faz os iguais competirem movidos pelo impulso do
predomínio, e não da solidariedade! Talvez um instinto útil na sobrevivência e
evolução das espécies: a competição favorece que os genes do mais forte gerem os
descendentes, que terão maior probabilidade de sobreviver.
Os seres humanos parecem ter semelhanças e
diferenças com esta regra mostrada pelos pássaros: competimos sim, sem
necessidade ─ a não ser a da dominação ─ entre nós, mas também exterminamos o
diferente. Nunca houve uma espécie tão devastadora de outras espécies como nós.
Ainda atualmente, após milênios de civilização e de reflexão sobre a vida e a
natureza humana, parecemos pouco ter superado os instintos que observamos nos
pássaros e outros animais. Fato agravado pela nossa engenhosidade inventiva,
que nos faz capazes de destruir toda a vida no planeta.
Noutros aspectos também somos muito parecidos com o
bando de pássaros ciscando a quirera. Às vezes, muitos deles entretidos com os
grãos e, subitamente, sem causa compreensível para mim que os observo, eles
estrondam numa revoada sincronizada com impressionante exatidão, assustados por
algo que me escapou. Depois de muito observá-los, constatei que o ato de ciscar
nunca é desatento e relaxado. Os pássaros sempre estão muito ariscos,
espreitando todos os lados à espera de algum perigo iminente. Um mais nervoso,
que de repente voe assustado, desencadeia pronta reação de todo o bando. Pareceu-me
compreensível, eles são inofensivos granívoros, vulneráveis presas de muitos
predadores que frequentam os jardins e parques da cidade, desde os pequenos
gaviões até os felinos domésticos.
Pobres presas! Sempre estressadas, sempre alertas,
sempre amedrontadas. E às vezes debandadas por alarmes falsos; o medo cria o
motivo para a fuga intempestiva, mesmo que não exista uma razão real. Nisto
também os humanos se parecem com elas? Parece que sim. Além de competirmos
entre nós, estamos sempre amedrontados e paralisados por perigos muitas vezes
irreais: a vingança dos deuses, a ditadura do proletariado, a morte precoce, a
ideologia comunista, a invasão dos sem-terra...
Quando a humanidade deixará de ser enxotada ─ ou
entrevada ─ pelos propositais alarmes falsos que cultivam o individualismo, a
ignorância e a alienação?
Prezado Mário
ResponderExcluirJá dizia Freud, sobre o Complexo de Édipo, que este se estrutura por meio de três paixões: Ódio, Amor e a paixão pela ignorância. E veja só, é justamente esse complexo que nos estrutura psiquicamente. É por esse percurso apaixonado que estruturados o nosso psiquismo. É claro que podemos sair do Édipo, mas até isso acontecer, muita gente morre antes, completamente consumido por essas paixões.
A Humanidade... Os defeitos de outras espécies copiamos sempre. Nada de copiarmos o que têm de bom. Essa teoria de nos encantarmos com alarmes falsos é digna de muita análise.
ResponderExcluirA realidade é que: somos todos animais do planeta. A impressão que dá, é que a inteligência humana está fadada a permanecer sempre neste plano em fase de teste... Portanto, continuaremos levando sustos com certos alarmes falsos...
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